No princípio era a dúvida. “Perguntamos muitas vezes: Será que isto é mesmo um espetáculo sobre a Palestina? Será que nós estamos aqui a dizer que é da Palestina?”, questiona o encenador João de Brites, sentado ao lado da coreógrafa Olga Roriz, que o interpela: “Nem necessita ser um espetáculo sobre a Palestina”.
1001 Noites — Irmã Palestina, que O Bando e Olga Roriz levam ao palco do Teatro São Luiz, em Lisboa, de 30 de maio a 2 de junho, é a segunda incursão numa tetralogia da histórica companhia dedicada àquela que é uma das mais importantes obras da literatura universal (e que nos próximos quatro anos ganhará vida pela mão de diferentes encenadores), 1001 Noites.
Desta vez, Roriz e Brites (cuja cumplicidade remonta aos anos 1990, quando a coreógrafa colaborou em peças de O Bando) partilham a direção artística de um elenco que junta em cena oito atores e bailarinos e 30 músicos, acompanhados pela Banda Sinfónica Portuguesa e dirigidos por Francisco Ferreira. Numa conversa com o Observador após um ensaio, João Brites fala sobre o que diz ser um “desafio estético-político de dirigir a dois”, “um exercício de cidadania que tem a ver também com o tema que estamos a abordar: se somos capazes de trabalhar uns com os outros, ainda que tenhamos manias e convicções diferentes.”
“Este é um espetáculo sobre a morte, sobre o castigo, sobre a culpa, sobre o género, sobre o machismo, sobre o poder. É muita coisa que está ali inserida dentro que se torna em algo universal também ao mesmo tempo”, diz ao Observador o encenador e fundador de O Bando, que defende as 1001 Noites como um “texto basilar da existência”, um “documento extraordinário para percebermos como nos comportamos uns com os outros”, que “parece que contem aqui uma espécie de códigos de conduta, de relações entre as pessoas.”
Dos milhares de páginas das 1001 Noites, obra composta de narrativas do Médio Oriente e do Sul da Ásia, originalmente surgidas em língua árabe no século IX, trabalhou a partir das traduções de Hugo Maia e escolheu histórias procurando “abordar a questão da diferença, do outro”. “Por isso é que a Doniazade (irmã de Xerazade) é sempre de um país estranho, estrangeiro”, repara. No caso de Irmã Palestina, Doniazade é interpretada pela bailarina palestiniana Maria Dally.
Um ano e meio e cinco residências depois, o espetáculo mostra-se no Teatro São Luiz, em Lisboa, na ressaca de uma récita única no Coliseu do Porto, inserido no FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica. Depois chega ao Cine Teatro São João, em Palmela, de 7 a 16 de junho, e a 6 de julho pode ser visto durante o Festival de Teatro de Almada.
Voltando à dúvida. Sendo ou não um espetáculo sobre a Palestina, é inegável o peso que nele comporta as notícias que chegam do Médio Oriente, a escalada do conflito, a ofensiva em Rafah, ou mesmo os temas do texto, que aludem à violência, à fome, à guerra.
Brites e Roriz têm uma certeza: 1001 Noites — Irmã Palestina é uma peça “sobre a humanidade, sobre a guerra, sobre a paz, sobre a quantidade de guerras que a gente vê e que não vê… E também sobre a Palestina”, nas palavras do encenador, que rejeita o rótulo de “espetáculo bandeira”. Ainda assim, a coreógrafa admite: “[Escolher uma] Irmã Palestina não é inocente, óbvio, é escolhida a dedo”. Mesmo, como Brites deixa soltar, “sabendo que provavelmente vai prejudicar a distribuição do espetáculo”.
Que implicações pode ter, em 2024, apresentar uma peça de teatro com a palavra Palestina no título? “Na altura não refletimos”, diz o fundador de O Bando. “Não refletimos, mas depois confrontamo-nos”, continua Olga. Torna João: “Sou subsidiado há 50 anos, só um ano ou dois é que não tive apoio, reconheço que realmente é incrível, fui sempre independente, sempre fiz o que quis, por vezes arriscadamente, por vezes em conflito, por vezes sem dinheiro. Não era agora que ia começar a fazer alguma coisa em que não me revisse”. O encenador não se atrever a aflorar o assunto em detalhe, rematando apenas: “Sabemos como é. Provavelmente há sítios que nem nos convidam para ir porque se chama assim. Porque algumas pessoas vão dizer: então também não pode ser a Irmã Israelita?”
Na verdade, a ideia inicial era fazer 1001 Noites — Irmã Chinesa, mas uma incompatibilidade de agenda da atriz destacada para o papel acabaria por dar permitir mudar os planos para dar origem a Irmã Palestina como segunda parte da tetralogia que ficará completa com Irmã Chilena, encenada por João Neca, e Irmã Indiana, por Miguel Jesus.
“Não importa o que faça na peça, vão sempre ver-me como palestiniana”
“Sinto uma responsabilidade por fazer parte desta peça. Especialmente pelo timing“, diz Maria Dally. A palestiniana de 32 anos tinha acabado de sair de Portugal quando recebeu um e-mail da companhia Stereo 48, com a qual trabalha na Cisjordânia, falando-lhe de uma audição para o espetáculo. Dally, que tinha estado um mês a fazer voluntariado com o marido numa pequena quinta perto de Tomar, deu meia volta, longe de imaginar o espetáculo e a importância que a sua identidade nele teria.
“Para mim, especialmente sendo palestiniana, ser a Irmã Palestina tem um significado. É um ato político também”, conta ao Observador, após um ensaio. Comunica em inglês, ao contrário do que faz em palco, onde o árabe que verbaliza não é traduzido. Lemos-lhe no corpo as palavras que não compreendemos. Maria não antecipa a reação do público, mas espera que se “conecte” com a peça. “Espero que consigam ver a justiça, a injustiça de matar alguém, mas sem saber porquê, se não saber se a verdade é mesmo a verdade ou não. São questões com as quais lidamos enquanto palestinianos, mas também as pessoas em Portugal”, diz. “Toda a gente pensa de forma diferente. Falamos sobre o mesmo assunto, mas cada um tem a sua perspetiva.”
Como na peça, uma espécie de matrioska que se monta e volta a desmontar com episódios e narrativas vistos sobre distintos prismas e tempos. “Há muitas camadas, há histórias dentro de histórias. Fala de violência, tal como a que acontece no mundo, e especialmente agora no Médio Oriente, na Palestina. Mas nós apresentamos isto numa forma não direta. Não estamos a falar da guerra. Apresentamo-lo de forma a que qualquer pessoa, independentemente da nacionalidade, consiga sentir-se conectado com isto. Todos passaram por momentos menos bons. Falamos sobre o que se passa em todo o mundo: a violência.”
Maria, que nasceu num lugar a que chamam territórios de 48 (por terem sido ocupados por Israel em 1948), vive num contexto singular que a obriga à violência de viver diante do que considera opressor. Identifica-se como palestiniana, mas aos olhos do Estado de Israel é israelita árabe, tal como consta no seu passaporte. “Como artista, não é fácil”, diz. “A arte também é uma mensagem. Não faço arte só porque adoro dançar. Tem de haver algo mais. De onde venho, ao escolher ser artista e bailarina, não consigo olhar para a arte sem ver política. Não posso fugir da minha identidade. Não importa o que faça na peça, vão sempre ver-me como palestiniana”.
Não tem qualquer ingenuidade sobre a sua presença em palco, enquanto mulher artista palestiniana, sobre um espetáculo com o título Palestina. “Tudo é muito importante. Falamos muito sobre isso com o João e a Olga. É uma responsabilidade não só minha. De toda a equipa. Decidimos criar esta peça com este título. O nome tem desde logo um significado, uma posição”, crê. “A peça tem uma mensagem muito profunda. Queremos mudar alguma coisa. Para mim há um significado em fazer isto, especialmente sabendo de onde venho. Escolhi ser artista para chegar a mais pessoas. Não vou mudar nada, não vou fazer magia, mas se alguém me ouvir… Se mudar uma única pessoa ao longo da vida… já fiz muito.”
São Luiz Teatro Municipal, Lisboa, de 30 de maio a 2 de junho. Quinta a sábado, às 20h, domingo, às 17h30. Bilhetes de €12 a €15.