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Marco Mendonça levo o espetáculo ao Teatro do Bairro Alto, em Lisboa
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Marco Mendonça levo o espetáculo ao Teatro do Bairro Alto, em Lisboa

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Marco Mendonça levo o espetáculo ao Teatro do Bairro Alto, em Lisboa

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

No palco, Marco Mendonça quer mostrar como o blackface em Portugal “não é uma coisa pontual, não é uma coisa rara”

"Blackface" é um monólogo sobre a prática teatral racista, desde as suas raízes nos Estados Unidos da América aos casos portugueses. A peça chega ao Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, já esgotada.

Pintar a cara de preto para imitar artistas, representar pessoas racializadas ou servir como disfarce carnavalesco já levou a pedidos de desculpa públicos de líderes mundiais. A condenação é, para alguns, um capricho da geração woke, uma obsessão da brigada do politicamente correto. Para outros, a maquilhagem é uma representação sorridente do período da escravatura e racismo estrutural. E tem um nome: blackface.

O termo dá título ao monólogo que o ator e criador Marco Mendonça apresenta no TBA — Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, desta sexta-feira (17) a domingo (19). Blackface é uma das peças-fenómeno desta edição do Festival Alkantara, certame que conjuga disciplinas das artes performativas, a decorrer na capital até 26 de novembro. As três récitas esgotaram várias semanas antes da estreia.

É o primeiro espetáculo a solo do ator de 28 anos, que assina a direção artística do espetáculo (com Bruno Huca no apoio à criação e Gisela Casimiro no apoio à dramaturgia). “O rescaldo do que aconteceu ao George Floyd, aquela onda internacional de solidariedade e protesto, fez-me pensar que, enquanto potencial criador no tecido teatral português, me interessava falar sobre isto.” Nos últimos dois anos, lançou-se numa profunda investigação sobre o tema e mergulhou nas raízes desta prática que remonta aos “minstrel shows” dos Estados Unidos de finais do século XIX, em que atores brancos se disfarçavam de negros, maquilhando a cara com carvão de cortiça queimada e graxa, representando de forma simplista e pejorativa pessoas africanas e afro-descendentes. “Comecei a investigar, a perceber a origem, a altura em que se tornou popular, que eventualmente terá sido importado para a Europa e a ser mais notório cá”, recorda ao Observador. “Foi a parte interessante desta descoberta: perceber que em Portugal, afinal, fazia-se e faz-se blackface muito mais do que pensava.” O blackface “não é uma coisa pontual, não é uma coisa rara” e “mesmo sendo uma coisa bem intencionada, está a mexer com uma violência histórica”, argumenta.

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Nascido em Moçambique e radicado em Lisboa desde os 12 anos, Marco Mendonça lembra-se da primeira vez que se confrontou com um caso de blackface. Foi com as célebres paródias de Romão Félix, “Parafuso”, “um ator, performer português que fez muito sucesso nos anos 70 e 80, e que imitava um homem moçambicano muito estereotipado”. Começou por achar graça. “O meu pai trazia as cassetes de Portugal [para Moçambique]. Como era tudo em áudio, eu estava convencido que aquilo era mesmo um homem moçambicano que fazia sucesso pela Europa. Anos mais tarde percebi que era um homem branco que fazia sucesso a pintar a cara, a usar umas perucas e a fazer umas palhaçadas em cima de um palco. Lembro-me de ficar muito impressionado e de sentir que, de certa forma, tinha sido enganado enquanto criança, que tinha gostado muito de uma coisa que se calhar não era suposto gostar”, assume. “Hoje percebo que existe um contexto violento em que aquela prática é feita. Por mais engraçado que seja, também foi um processo de aceitar que não é aceitável.”

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Navegando na fronteira do que é uma “conferência musical, entre o stand-up e a fantasia, entre a sátira e o teatro físico, entre o burlesco e o documental”, Blackface alimenta-se desta e outras experiências pessoais do seu intérprete, fortemente influenciado pelo livro Sou Um Crime (ed. Tinta-da-China), de Trevor Noah. O criador faz um paralelismo entre a biografia do humorista sul-africano e a sua, procurando os limites do que pode ser representado em palco, pondo todos em cheque — incluindo o próprio.

É também uma viagem pela história do teatro português, com paragens em figuras como Francisco Gomes de Amorim, dramaturgo e romancista português da segunda metade do século XIX cujas peças tinham muitas personagens negras ou indígenas com papéis de relevo; ou momentos de particular simbolismo, como aquele em que a peça Os Negros, de Jean Genet, que se estreou em outubro de 1959, em Paris, subiu aos palcos nacionais. Marco Mendonça destaca a ocasião em que o texto foi levado à cena pelo Teatro Griot, corria o ano de 2017, numa encenação de Rogério de Carvalho. Procede à listagem do elenco: “Cleo Diára, Matamba Joaquim, Igor Regalla, Gio Lourenço, Laurinda Chiungue, Renée Vidal, Binete Undonque, Sandra Hung, Zia Soares, Orlando Sérgio, Angelo Torres, Mauro Hermínio.” “13 atores negros e negras aos quais poderíamos juntar mais 13, e mais 13, e mais 13”, reclama com fervor. “Isto”, diz apontando para reconhecíveis rostos brancos pintados de negro em loop na tela, “é uma escolha”. A União Negra das Artes (UNA) está a atualmente promover um “auto-mapeamento” para perceber a presença da negritude na cultura em Portugal. Mas o argumento de que não há atores negros, “talvez há 50 anos servisse, talvez há 60 anos servisse, mas desde há 30, 40 anos que esse argumento não serve”, nota o artista.

“Talvez no século XIX não fosse bem assim, mas hoje em dia é diferente, certo? No século XXI é diferente, certo?”

Há quase uma década, primeiro no Tumblr e, mais tarde, no Facebook e Instagram, que a página Blackface Portugal compila imagens de pessoas brancas caracterizadas de pessoas negras no meio audiovisual português. Grande parte é proveniente do programa de imitações da TVI, A Tua Cara Não Me É Estranha (a adaptação portuguesa do original espanhol, Tu Cara Me Suena), mas não só. Em setembro de 2020, foi resgatada uma fotografia do humorista Eduardo Madeira nos bastidores do programa 5 Para a Meia-noite, da RTP, dois anos antes. Vestia a pele da tenista Serena Williams. A imagem, tornada viral, levaria o humorista a pronunciar-se. “Foi depois deste sketch que decidi não voltar a fazer blackface. Refleti bastante, falei com muita gente e concluí que em pleno século XXI não faz qualquer sentido. Sou frontalmente anti-racista”, comentou na publicação da página de gestão anónima.

“Creio que o caminho deve ser mesmo o da consciencialização dos atores, autores e realizadores a não usarem este tipo de solução. A temática do blackface em Portugal não era tão presente na Europa, e em Portugal, até há pouco (como sempre foi nos USA). Mas os tempos mudam e o tema tornou-se necessário e atual.” Filomena Cautela, então apresentadora do programa, diria também, numa entrevista ao jornal Público, que fora um erro. “Não é o meu lugar dizer se é ofensivo. Se ofendeu alguém e se existem pessoas que, pela história do que é o blackface viram ali um blackface, mesmo que eu ache que não tenha visto e que não tenha sido feito [um blackface], eu tenho a obrigação de dizer ‘isto nunca mais acontece’”, afirmou. “Pedimos desculpa se foi ofensivo, pedimos desculpa se parece que fomos ignorantes em relação a isto. Sabemos perfeitamente o que é o blackface, pedimos desculpa e não tencionamos repetir.”

Será este monólogo uma busca por um mea culpa coletivo? “Quero ferir suscetibilidades”, não esconde o criador. “Não está na nota de intenções do espetáculo, mas se acontecer não me vou sentir mal por isso.” A leveza do tom não anestesia o confronto. Não há meias palavras ou subtileza no discurso, antes objetividade e clareza. Sob a forma de cantiga, o monólogo de 90 minutos inclui uma nomeação extensiva de figuras do entretenimento do português cujos rostos pintados de negro surgem projetados na tela. “Marco Horácio, Herman José, Manuel Marques, Maria Vieira, Márcia Breia, Rita Lelo, Nuno Lopes, Bruno Nogueira, Toy, Marina Mota, Eduardo Madeira, César Mourão, Jorge Mourato, Fernando Rocha, Ricardo Araújo Pereira, José Carlos Pereira, Mico da Câmara Pereira, Maria Sampaio. Ena, tantos.” O motivo para pôr os nomes na mesa di-lo-á mais adiante: “Enquanto o problema não tiver um nome é difícil para um número considerável de pessoas acreditar que ele existe.”

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

“Embora não esteja propriamente a julgar ninguém, interessa-me passar a ideia de excesso. Não é por ter sido aquela pessoa em específico, mas é por terem sido estas todas juntas que o assunto deve ser pensado e discutido”, explica. Também pelo palco desfilam outras figuras emblemáticas: Judy Garland, Fred Astaire ou Robert Downey Jr. O impacto, sabe, não será o mesmo. “Para muitas pessoas, o termo blackface ainda não existe enquanto conceito”, justifica. “O problema chama-se blackface. E associado a esse problema estão vários nomes do contexto mainstream do entretenimento português. É muito fácil as pessoas dizerem que talvez tenham visto uma vez na televisão há uns anos. Não, já aconteceu muitas vezes. No programa A Tua Cara Não Me É Estranha, nas suas seis ou sete temporadas, o blackface foi utilizado para cima de cem vezes. Não é uma coisa pontual, não é uma coisa rara, não é uma coisa que se viu alguém a fazer há uns anos ou que se viu alguém na escola a mascarar-se de pessoa negra. Não é uma coisa que acontece numa esfera privada, é uma coisa que acontece a nível público”.

É diferente uma caracterização num programa de imitações ou casos como o de uma escola em Matosinhos que em 2019 pediu aos alunos que se mascarassem de “africanos”? E a tradicional dança “Baile dos Pretos”, em Penafiel? “São formas de estereotipar e retratar de forma abusiva e tendenciosa pessoas negras. Já devia haver um maior entendimento do contexto da utilização destas práticas”, crê.

“O blackface em Portugal não é uma coisa pontual, não é uma coisa rara, não é uma coisa que se viu alguém a fazer há uns anos. É uma coisa que acontece a nível público”

“Existe uma ideia de que em Portugal as coisas não são assim tão más. O sistema que aqui decide não contratar pessoas negras ou não considerar atores negros para certos papéis não é mais amigável do que o sistema dos Estados Unidos onde nasceram os minstrel shows no século XIX”, acusa. “A ideia de que não existem atores negros ou não existem pessoas negras suficientes para que os produtos de ficção queiram refletir essa diversidade é uma ideia falsa.”

O dedo erguido, que alguns poderão ver como acusatório, recairá também sobre quem acusa. “Acabo a criticar-me a mim próprio no espetáculo. Essa questão de colocar nomes na mesa só fazia sentido se o último nome a ser colocado na mesa fosse o meu”, descortina. “Justamente por ter muitas vezes ignorado representações problemáticas de pessoas negras, ou a forma como se falava de pessoas negras em projetos que fiz e em coisas que assisti.” Ao culminar do espetáculo, num vídeo em jeito de confessionário que lhe protegera a identidade durante hora e meia, a imagem do ator revela-se por fim: “Já chorei demasiado. Já quis fugir do meu passado. Mas como me recuso a servir de exemplo para um lusotropicalismo discreto, decidi fazer um espetáculo só para dizer que fiz blackface. Podia só ter feito um post de Instagram sem gastar dinheiros públicos.”

A ironia é uma constante no palco — e fora dele. Nas últimas semanas, pequenos filmes divulgados nas redes sociais funcionam como “pistas para o humor que existe no espetáculo”. Num deles, o ator assume as funções de operador de call center na L.A.R., linha de apoio ao racismo, cujo slogan é: “Porque o racismo começa em casa”. Há telefonemas com pedidos de receitas para cachupa, ajuda para soletrar “Pindamonhangaba” ou mesmo tentativas para conseguir “contactos de artistas negros para fortalecer a candidatura à DGArtes”.

Tratar questões sérias de forma sarcástica, na fronteira com a paródia, é uma resposta ao conforto e alívio cónico que o blackface historicamente garantiu aos seus públicos? “É uma recorrência minha, fazer humor com coisas que são complicadas de gerir, às vezes até de compreender. O humor é uma boa forma de aliviar o peso destes temas”, confessa Marco Mendonça. “Toda a gente rir do quão ridículos os nossos antepassados já foram e do quão ridículas muitas pessoas ainda são hoje talvez possa ajudar a levar a sério numa próxima ocasião em que a coisa deva ser questionada e contestada”, espera o ator que quer assim “desconstruir conceitos que possam ser muito violentos e de uma compreensão difícil de engolir, mas que, num espetáculo, possam transformar-se em assuntos, possíveis de criar algum humor”. “Quero trazer algum ambiente de boa disposição e, principalmente, de não julgamento”, frisa. “Como artista negro, também não me interessa estar num lugar de simplesmente falar da tragédia que foi o passado colonial e a escravatura. Não me quero prestar a isso, entrar nesse sítio depressivo de uma análise histórica dura e pesada e sem escapatória nenhuma. Estou sempre à procura de escapatórias para o humor. Como é que posso rir disto, por mais terrível que seja?”

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Com Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, de Tiago Rodrigues, espetáculo do qual Marco Mendonça faz parte, ainda presente, o que leva o jovem ator a querer fazer espetáculos? “Sentir que posso estar a contribuir para uma discussão, para um pensamento, para uma reflexão”, contesta. Com a certeza de que não quer resumir o seu corpo a um instrumento político e a sua voz a um panfleto de questões identitárias. “Já tive a oportunidade de participar em projetos com esse cunho político muito forte e percebo a dureza de certos temas a serem trabalhados em cena. É um espaço de muita vulnerabilidade. É fácil entrarmos num lugar de alguma depressão quando a política nunca se descola do corpo criativo”, comenta. “Como ator e criador, sendo homem negro, talvez possa existir essa pre-conceção das pessoas de que tudo aquilo que venha a criar seja relacionado com o tema do racismo, ou com a minha vivência enquanto homem negro”, reconhece. “É importante para mim não me cingir sempre a esta ideia de vou fazer espetáculos porque quero fazer política. Quero fazer espetáculos porque quero fazer espetáculos. Fez-me sentido, como primeira criação, trabalhar sobre isto, para também conseguir relacionar-me melhor com este tema e perder a vergonha de dizer o que acho sobre certas coisas. E fazê-lo num espetáculo é uma ótima forma para mim de dizer o que quero.”

No fundo, “não quero que os meus pais saiam a pensar: “uau, blackface, sim, muito errado”, diz, divertido. “Quero que os meus pais se riam e se divirtam com o que estou a fazer. Mesmo que não percebam bem ou mesmo que percebam muito bem, mas que o mais importante não seja isso. Além de informar ou chamar a atenção para o que quer que seja, o objetivo primordial aqui é entreter. E criar possibilidades de entreter pessoas negras também”.

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