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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tiago Rodrigues: “Populismo de extrema-direita é tratado como se tivesse lugar à mesa da democracia”

“Catarina e a Beleza de Matar Fascistas” é a nova criação do diretor do Teatro Nacional D. Maria II. A estreia é em Guimarães neste sábado. Em entrevista, o autor diz confiar no bom senso do público.

Finalmente, a peça que poderia ter sido —  e que já é outra coisa. Esteve para se estrear na Áustria em maio. E no mês seguinte no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Mas a pandemia não permitiu. Depois esteve para se inspirar nas decisões do polémico juiz Neto de Moura — que agora assina como Joaquim Moura, depois de em 2017 ter desagravado um caso de violência doméstica e fundamentado uma decisão jurídica na Bíblia e no Código Penal de 1886. Mas perante as críticas a essa opção, e com acontecimentos mais relevantes entretanto ocorridos, o texto já não inclui referências diretas ao juiz.

Catarina e a Beleza de Matar Fascistas, título evidentemente provocatório, assumido pelo autor, vê agora a luz do dia. Estreia-se neste sábado em Guimarães, às 21h30, no Grande Auditório do Centro Cultural Vila Flor. António Fonseca, Beatriz Maia, Isabel Abreu, Marco Mendonça, Pedro Gil, Romeu Costa, Rui M. Silva e Sara Barros Leitão são os oito atores em palco.

A mais recente criação de Tiago Rodrigues reflete as suas interpretações sobre a vida política portuguesa e internacional. Em entrevista ao Observador, o também diretor artístico do D. Maria II mostra-se preocupado com a “ascensão do populismo de extrema-direita” e diz que o texto agora encenado “pinta o retrato de um Portugal de 2028 com a extrema-direita com maioria absoluta na Assembleia da República”.

Mistura-se a realidade atual com a ficção distópica. Tanto quanto a informação disponível permite dizer, há um dedo apontado ao deputado e candidato presidencial André Ventura, do partido Chega. Na peça surge uma família imaginária que tem por tradição “matar fascistas” e que um dia, em 2028, se vê confrontada com uma recusa: Catarina, que deveria “matar o seu primeiro fascista, raptado de propósito para o efeito”, é afinal incapaz de o fazer. Está lançado o desafio ao espectador: a violência justifica-se, em nome de quê, em que circunstâncias, para que fins?

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A polémica já existia antes da estreia e mereceu a Tiago Rodrigues um longo texto no Facebook em agosto. Há hipótese de ela ressurgir neste fim-de-semana? O autor e encenador recusa controvérsias, ao mesmo tempo que parece intuí-las. Acredita no discernimento do público, insiste que pontos de vista de personagens não são opiniões partilhadas pelos autores dos textos dramáticos. Fala em objeto artístico e nota o óbvio: o teatro é político, sempre foi político. Mas será o texto capaz de desassossegar?

À estreia no sábado em Guimarães segue-se uma segunda récita no domingo, marcada à última hora devido à elevada afluência de público e às restrições atuais nas lotações das salas devido às regras sanitárias face à covid-19. Uma e outra sessões, onde ao todo irão estar cerca de 800 pessoas, estão já esgotadas.

Catarina e a Beleza de Matar Fascistas seguirá em digressão europeia: Theâtre Vidy-Lausanne, na Suíça, é a primeira paragem, de 30 de setembro a 3 outubro. Há datas em França, Itália e na Bélgica. O regresso a Portugal dá-se a 10 de fevereiro, no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e depois no D. Maria II, a 7 de abril.

"Catarina e a Beleza de Matar Fascistas" estreia-se neste sábado em Guimarães e tem uma sessão extra no domingo, ambas já esgotadas (PEDRO MACEDO)

PEDRO MACEDO

Nos textos de divulgação da peça surge uma pergunta: “Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor?” Que contributo dá a peça para a resposta?
Há várias perguntas na peça sobre a legitimidade da violência como arma política e sobre a violência como ferramenta para a construção de um mundo melhor. Não se pretende, porque também não seria possível, dar uma resposta. Através da ficção, da narrativa do teatro, a peça pretende contar uma história que nos permita questionarmo-nos a nós próprios e ao público, o que está acompanhado por uma dimensão poética, de beleza, de humor. Mas coloca-se muito a sério um assunto muito premente hoje: a presença da violência nos nossos quotidianos e a violência como caminho político, coisa que sempre marcou a história da humanidade, e certamente marcou o século XX, mas agora, com a ameaça à democracia por parte dos populismos de extrema-direita, pode vir a colocar-se no futuro. Inventámos personagens, uma família violenta que assassina os seus adversários políticos, que são fascistas, e uma jovem dessa família que no dia em que deve matar pela primeira vez se recusa a fazê-lo. Isto proporciona, por um lado, uma família em conflito; por outro, um debate sobre a legitimidade da violência e o ponto de vista pacifista, da não-violência, das regras democráticas, do debate político.

Mas há uma resposta?
Não temos nem desejamos ter resposta para as perguntas que nos colocamos e colocamos ao público. Muito mais do que respostas a peça tenta elaborar, através da ficção, as melhores questões sobre o assunto.

O ponto de vista pacifista é também o do autor?
O meu ponto de vista em relação à vida, e digo-o com a maior das convicções e facilidades, é o do pacifismo, sim, da não-violência, o que não quer dizer que alguém que tem uma posição não-violenta não possa questionar-se sobre a violência. Aliás, os grandes questionadores da violência, historicamente, não foram necessariamente mulheres e homens violentos, foram pessoas que pensaram a sociedade. Embora seja um tema delicado, que possa até perturbar, porque a violência é perturbante e é preciso tratá-la com rigor e cuidado em palco, não podemos omiti-lo. Não foi com omissões que o teatro se fez ao longo dos séculos, não é esse o nosso património cultural. Por isso, queremos levar a palco um tema premente, delicado, e conseguir inventar maneiras de o abordar com as ferramentas teatrais. Considero-me um democrata, um pacifista, mas não posso deixar de levar para palco diversos pontos de vista que não são os meus, são os das personagens. Tenho confiança na arte teatral e no público, que sabe distinguir uma frase dita por uma personagem daquilo que é uma convicção do autor de uma peça.

"Quando as regras da democracia começam a ser violadas pelo discurso muito naturalmente podem começar a ser violadas pela ação. Sabemos que um discurso perigosamente anticonstitucional, nomeadamente racista, tem o efeito de criar uma infraestrutura de impunidade pública"

Ao dizer que o público sabe distinguir está a antecipar alguma polémica?
Pelo contrário. O espetáculo é de uma enorme desconfiança em relação ao que é o futuro da democracia. Desse ponto de vista, pode ser considerado um espetáculo pessimista, porque pinta o retrato de um Portugal de 2028 com a extrema-direita com maioria absoluta na Assembleia da República e à beira de um regime que tem todo o aspeto de regime ditatorial. Da mesma forma que desconfia do futuro, é um espetáculo que confia plenamente no presente, no teatro e no público. O que é importante é que saibamos distinguir, e digo-o até por alguma controvérsia que já houve à volta do título do espetáculo, o que é uma obra de arte daquilo que é discurso político puro e simples ou participação cívica. A política tem lugar na arte ancestralmente, sempre teve. Sófocles tratava os grandes temas políticos de Atenas e dizia-se até que era uma personagem muito bem disposta na vida, embora escrevesse das tragédias mais pessimistas do seu tempo. Ele não é a voz de Creonte ou de Antígona, na tragédia Antígona, é o autor que proporciona que aquelas visões do mundo se digladiem em palco. Confio nos atenienses de 2020, sejam eles vimaranenses, portuenses, lisboetas ou parisienses. São capazes de perceber que numa sociedade politicamente polarizada, onde ouvimos discursos cada vez mais extremos, há personagens que dizem em palco coisas extremas, mas não são representantes do autor ou do coletivo de artistas, mas de um ponto de vista ficcional.

Há portanto um ponto de vista político na peça.
O teatro deve ter o direito, se as pessoas que o fazem assim entenderem, de tratar todos os temas da atividade humana, que podem ser políticos, sociais, económicos. Poderíamos ir tão longe quanto dizer que até uma história de amor tem uma dimensão política, por muito íntima que seja. Aqui há confronto ideológico, há personagens nesta peça que defendem a violência como forma de intervir politicamente, outras excluem a violência do seu caminho, e há um confronto ideológico de visões do mundo distintas. Não houve o desejo, de modo nenhum, de que as personagens refletissem a nossa visão ou a visão de alguém. Este gesto é iminentemente artístico, é uma criação artística, que se ocupa de temas humanos, entre os quais temas políticos, mas também afetivos. Também se fala da relação entre pais e filhos, de confrontos de gerações, de amor e inveja entre irmãs. Portanto, a peça não é unidimensional mas também não é uma peça-manifesto.

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Já nos falou de populismo e de extrema-direita. Qual é a sua preocupação?
Enquanto cidadão, estou muito preocupado com a ascensão do populismo de extrema direita, não apenas em Portugal, e com a consagração do populismo no poder, nomeadamente no Brasil ou nos EUA. Independentemente de não se tratar de populismos de extrema-direita, são resultado de uma espécie de banalização de conceitos que não são democráticos, como a manipulação dos factos, a omissão da ciência como fator essencial para o debate e para as decisões políticas, ou uma espécie de autoritarismo completamente subjetivo, um posso, quero e mando demagógico. No caso português, preocupa-me que o populismo de extrema-direita esteja a ser institucionalizado e normalizado. Acredito que ele não tem lugar à mesa da democracia, mas é tratado como se tivesse, algo de que nos podemos vir a arrepender muito rapidamente.

Está a falar do Chega, mas o Chega foi eleito democraticamente.
Não estou a falar do processo democrático, estou a falar da normalização de um discurso que não é democrático apenas porque acontece na Assembleia da República e é propagado na comunicação social ou nas redes sociais. As vozes antidemocráticas não devem ser aceites só porque se multiplicam. A partir do momento em que um político cometa um crime, ou ataque a Constituição, o facto de ter sido eleito não é relevante. Um partido, um movimento ou um político são eleitos onde há um Estado de direito, regido por uma Constituição. Quando as ações desse político passam a ser ilegais ou anti-constitucionais devem ser tratadas como tal. Estou a distinguir muito claramente o que é o respeito pelo sufrágio. Quando um determinado representante é eleito democraticamente tem direito ao seu lugar, mas depois deve agir em função daquilo que são as regras democráticas e a Constituição da República. Não podemos permitir gestos anti-constitucionais, discurso de ódio, discurso racista. Isso deve ser completamente banido da democracia portuguesa. Se um eleito for apanhado num crime de corrupção ativa, ninguém dirá “mas ele foi eleito”. Não. Foi eleito, mas desrespeitou o seu mandato.

"Não há referências explícitas ao juiz Neto de Moura na peça. Abandonámos a intenção não tanto pela controvérsia que poderia gerar, mas porque já não era de atualidade."

E onde é que entra aqui a violência de que trata a peça? Antecipa um confronto real?
Quando as regras da democracia começam a ser violadas pelo discurso, muito naturalmente podem começar a ser violadas pela ação. Sabemos que um discurso perigosamente anticonstitucional, nomeadamente racista, tem o efeito de criar uma infraestrutura de impunidade pública, que permite ações racistas violentas e reações a essa violência. É preciso relacionar o discurso iminentemente racista, e a sua normalização, com o perigo das ações e da violência. Acredito que este é um momento para, não apenas no teatro, mas em geral, nos preocuparmos com a questão da violência.

Porque é que situou a peça em 2028?
É uma data que se justifica por nessa altura já terem acontecido mais duas eleições legislativas em Portugal. Isto se não houver nenhuma crise política com eleições antecipadas, coisa que não podemos prever. 2028 é um tempo em que a deterioração da democracia poderia chegar a permitir que um discurso populista e demagógico ganhasse uma maioria parlamentar em Portugal. Não é uma previsão, é uma visão distópica imaginária, ou seja, tento ser pessimista na peça para preservar o meu otimismo na vida.

A Catarina do título é Catarina Eufémia, a ceifeira alentejana que terá sido premeditadamente assassinada pela GNR em 1954 quando protestava pelo aumento da retribuição?
Não é Catarina Eufémia, mas é de algum modo influenciada por ela. Na peça, as personagens da família, que são sete, todas se chamam Catarina. Foi uma escolha poética que fizemos, inspirada de alguma forma por Catarina Eufémia, tentando ao mesmo tempo que as personagens sejam um misto de indivíduos, cada qual com as suas características mas todos com a mesma visão do mundo. Desta forma, a personagem que não quer matar tem muito mais dificuldade em defender  o seu ponto de vista. É uma família totalitária e violenta, que obriga, pela tradição e pela educação, a que todos ajam da mesma maneira. Portanto, a capacidade de revolta desta Catarina, a primeira pacifista da família, de se indignar contra esses hábitos tem de ser muito maior.

Depois de Guimarães e de uma digressão europeia, a peça passa pelo Porto a partir de 10 de fevereiro e por Lisboa a 7 de abril

PEDRO MACEDO

Sempre haverá uma personagem inspirada no juiz Neto de Moura?
Não há referências explícitas ao juiz Neto de Moura na peça, embora possa haver algumas frases que herdámos de um tempo em que pensámos ainda fazer essas referências explícitas. Acontece que entre a ideia da peça e a data da estreia houve profundas mudanças. Por um lado, as últimas eleições legislativas, em que pela primeira vez passámos a ter a presença na Assembleia da República daquilo que considero um populismo de extrema-direita. A nossa visão daquilo que poderia ser um resíduo de fascismo na sociedade portuguesa, uma herança da ditadura, passou a ser muito menos importante quando comparado com a ameaça de uma tendência fascizante no futuro. A segunda mudança foi a pandemia. Senti que fomos forçados a não imaginar o nosso futuro. Um efeito colateral da pandemia — não o mais grave, porque o mais grave são as vítimas — foi o de nos roubar coletivamente a capacidade de nos projetarmos no futuro e imaginarmos o que vamos ser daqui a uns anos. O futuro estava encostado ao nosso nariz, como num dia de nevoeiro, em que se estendermos a mão e já não vemos a mão. O futuro era amanhã: quantos infetados, quantos recuperados, como está a pandemia a evoluir? Mesmo agora, a incerteza em relação ao futuro é muito grande. Pensei que o teatro que desejo fazer, com as pessoas com quem trabalho, teria a obrigação de nos permitir, com o público, uma projeção no futuro. Daí também o 2028. Nesse sentido, a figura de Neto de Moura já não era de tanta atualidade. Abandonámos a intenção não tanto pela controvérsia que poderia gerar, mas porque já não era de atualidade.

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É possível fazer teatro com as regras sanitárias que incluem distanciamento social?
É um misto de angústia e de esperança, este regresso às salas. Por um lado, a angústia natural que as pessoas vivem face à evolução da pandemia nos próximos meses, de nos sentirmos receosos, embora cumprindo todas as regras de segurança. Por outro, há esperança, porque já temos condições, regras e capacidade para atravessarmos isto mais juntos e voltarmos a fazer teatro e outras atividades fundamentais nas nossas vidas. Sinto que temos condições para retomar a atividade, embora com limitações, o que tem sempre um impacto artístico.

Diria que as regras sanitárias estão a condicionar a liberdade artística?
Não iria tão longe, porque não têm essa intenção. Inevitavelmente, são uma condicionante. Temos de ensaiar as peças de outra maneira, temos de observar o uso de máscaras e de distância até muito tarde. Quando um espetáculo estreia, ou nos últimos ensaios, os atores já não têm máscaras, por vezes há toque, mas foi preciso ter o cuidado de fazer testes de rastreio antes disso. Respeitando as regras de saúde pública, vamos sendo o mais livres possível. Não diria que há aqui qualquer espécie de atentado à liberdade artística.

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