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Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Se a Revolução Francesa fora a avó de todas as revoluções modernas, e as insurreições de 1848 a “perda da virgindade política” do movimento socialista, a Comuna de Paris ficaria para sempre como a sua amante mais querida. E, da reanálise do seu “guião”, qual paradigma revolucionário, bem cedo os dirigentes revolucionários perceberam a importância que tem o controlo da narrativa histórica como instrumento de conquista e domínio da consciência adquirida pelas gerações posteriores. Apresentada em versões a “preto e branco”, reduzida à luta de barricadas de “bons” contra “maus”, a História é hoje oferecida pré-mastigada, tipo fast-food, tornada atrativa para consumo generalizado de quem foi treinado a pensar pouco e, sobretudo, pela cabeça dos outros. Como resultado, a obesidade mental grassa e a ignorância virou poderosa arma de controlo social.
Sujeita a uma narrativa supremacista que impõe um determinado relato em que a ficção hollywoodesca se sobrepõe aos factos, a Comuna de Paris de 1971 não escapou à regra. Romantizada pela propaganda historiográfica dos apologetas, a imagética da Comuna teve impacto não só entre o marxismo sem-fronteiras mas, paradoxalmente, também entre os segmentos mais vanguardistas do nacionalismo francês e europeu. Com efeito, alguns pretenderam ver na revolta do lúmpen parisiense um epifenómeno do movimento revolucionário anti burguês de 1848, animada pelos mais telúricos sentimentos patrióticos do povo francês, reagindo à vergonha da derrota frente aos germânicos. Mas se descolarmos os vários cartazes propagandísticos, o que é que iremos encontrar? De facto, o que é que aconteceu em Paris, desde o Outono de 1870 até quase ao verão de 1871?
Os antecedentes
No centro germânico da Europa, a ocupação napoleónica trouxera um exponencial crescimento do nacionalismo alemão e quer a experiência do Zollverein (a união aduaneira iniciada em 1818) quer a Realpolitik do Ministro-Presidente da Prússia, Otto von Bismarck, haviam conseguido que um elevado número de Estados da Confederação Germânica se unissem ao reino da Prússia, controlado pela dinastia protestante dos Hohenzollern. De fora ficava o Império Austríaco dos católicos Habsburgo. Era o expediente possível na altura, a limitada Kleindeutsche Lösung, a solução da Alemanha menor; a Großdeutsche Lösung (o esquema da Grande Alemanha) seguir-se-ia quando possível (e sê-lo-ia com o Anschluß austríaco promovido por Hitler em 1938). E na sequência da conclusão do processo da Unificação Alemã, Bismarck queria agora proclamar o Deutsches Reich, o Império Alemão. A Dinamarca fora definitivamente derrotada em 1864 e entregara o Schleswig-Holstein, a Áustria fora contida e isolada, faltando agora a Oeste, a França ceder a Alsácia e a Lorena.
O estatismo autoritário de Bismarck procurou conciliar o militarismo prussiano com a nova ordem social que emergia do acelerado processo de expansão industrial alemão. Influenciado pelo pensamento socializante, dito de “cátedra”, o astuto estadista tentou evitar que se repetissem na Alemanha os excessos revolucionários com que a árvore jacobina dilacerara a França, instituindo um pioneiro sistema de previdência social que lhe trouxe o apoio de amplos sectores do operariado. As ideias que estruturavam o organicismo alemão tinham por referência axial a figura do Kaiser [César], geratriz da Autoridade. Apoiado no exercício desse poder emanante, Bismarck estava a conseguir mitigar a questão social, conduzindo a um equilibrado processo justicialista, justamente o oposto do que se iria verificar em Portugal, onde o progressismo burguês e jacobinazante iria ser o principal carrasco das organizações operárias.
Exímio na manobra política, o chanceler prussiano tinha decidido usar os rendilhados da Questão Dinástica Espanhola, criada pela acender do rastilho da Revolução pelo “pronunciamento” do almirante Juan Bautista Topete, e pela subsequente fuga da rainha Isabel II de Bourbon (1843-1868), como pretexto para provocar Napoleão III. Em Espanha, as forças progressistas emergentes provocaram a entrada em vigor de uma nova Constituição, fortemente marcada pelas ideias cripto-republicanas dos chamados demócratas e do radicalismo liberal. Mas, por influência do general Prim, uma espécie de Lord Paramount de Espanha, havia-se mantido a Monarquia como regime, pelo que um problema maiúsculo era arranjar um soberano, preferencialmente um não Bourbon. Depois de algumas tentativas frustradas junto da Casa reinante portuguesa, a escolha inclinou-se, aparentemente, para Leopold von Hohenzollern-Sigmarigen, o candidato de Bismarck.
Napoleão III, não percebendo o engodo, confrontou a Prússia com um ameaçador e insultuoso telegrama que viria a servir de pretexto a Bismarck para declarar guerra à França. Como tantas vezes aconteceu na história de França, foi mais uma “entrada de leão com saída de sendeiro”. Os franceses foram derrotados pelos germânicos em Sedan e, em 2 de Setembro de 1870, o imperador Napoleão III viu-se forçado a abdicar. O Segundo Império soçobrou e, dois dias depois, pela terceira vez em França, ia ser proclamada a República. O novo Executivo, chefiado por Adolphe Thiers, a mãos com a contenção de insurreições por todo o país, mormente em Paris, não teve outro remédio senão assinar com as forças prussianas a rendição total. No rescaldo, surgiu a tal nova potência almejada por Bismarck – a Alemanha. Para supina humilhação dos franceses, a proclamação do Reich alemão e do seu Kaiser, o até aí rei da Prússia, Wilhelm von Hohenzollern, foi feita com pompa e circunstância na Galeria dos Espelhos do Palácio de Versalhes, em 18 de janeiro de 1971.
Quando a notícia da capitulação chegou a Paris, multidões enraivecidas, exasperadas pela vergonha da derrota, percorreram as ruas da capital francesa, levando à fuga da regente, a imperatriz Eugenia de Montijo, e de inúmeros membros das classes burguesas mais endinheiradas. A comoção popular propiciou o clima caótico que levara ao colapso do Segundo Império e permitiu aos deputados radicais e republicanos da Assembleia Nacional francesa proclamar, de novo, a República, na Câmara Municipal de Paris. Note-se que na primeira volta das eleições anteriores, em 1869, 4.438.000 tinham votado nos candidatos monárquicos bonapartistas e 3.350.000 na oposição maioritariamente republicana, ilustrando a profunda divisão entre a França rural, católica e conservadora e os grandes centros urbanos, como Paris, Marselha, Lyon ou Saint-Étienne, dominados pelos republicanos e pelos radicais. Ao saberem que os insurretos parisienses haviam constituído um Governo de Defesa Nacional, os prussianos resolveram marchar sobre a capital para pôr fim às suas veleidades de resistência.
Sob a crescente influência da I Internacional, fundada seis anos antes, e ainda inebriados nos eflúvios das revoltas dos anos 30 e das insurreições de 1848, as massas parisienses, agora dilatadas com os refugiados da guerra que buscavam proteção na cidade, exasperados pelo desemprego provocado também pelo conflito com os alemães, estavam profundamente radicalizadas. Embora divididas em várias fações, de acordo com os respetivos gurus revolucionários, quase todas propugnavam, em maior ou menos grau, o socialismo e a sua “república democrática e social”. Afinal de contas, não era Paris o solar de todos os movimentos radicais? As fações iam desde os socialmente menos extremistas como os “republicanos radicais” do então jovem Georges Clémenceau, à extrema-esquerda do carismático Louis Auguste Blanqui, organizada mais ou menos clandestinamente.
A 30 de Setembro, o exército alemão tinha já cercado Paris e acampara a menos de 2 quilómetros do perímetro externo de defesa da cidade A maioria das forças armadas francesas ou estava prisioneira dos germânicos ou encurralada por eles na praça-forte de Metz, o que, na prática, ia dar ao mesmo. Na capital as tropas de primeira linha mal chegavam aos 50.000 soldados. Havia algumas dezenas de milhares de recrutas recentes da Garde Mobile, muitos dos quais, oriundos da Bretanha, mal arranhavam o francês. A força armada mais numerosa era constituída pelos destacamentos da Garde Nationale, uma espécie de milícia cívica das várias circunscrições e bairros em que Paris estava dividida. Grande parte dos seus elementos não tinha qualquer preparação militar nem experiência de disciplina. Muitas unidades, sobretudo as oriundas do recrutamento nos bairros operários da cidade, estavam fortemente radicalizadas. Recusavam-se a vestir uniforme e exigiam a eleição dos oficiais, bem como o direito de rejeitar as suas ordens sem previamente as terem discutido “igualitariamente”.
À medida que os alemães apertavam o cerco, e as tentativas do Exército para o furar fracassavam, os grupos mais extremistas, apercebendo-se da fragilidade do Governo, iniciaram um processo de acosso revolucionário, entalando-o entre dois fogos. Quando a notícia de que Metz caíra e de que os seus 160.000 soldados se haviam rendido, os grupos revolucionários, nomeadamente os que se reviam em Blanqui, Félix Pyat e Louis Charles Delescluze, subiram a parada e deram início a violentas manifestações de rua.
Tentando controlar a agitação por um processo consensual, as autoridades de Paris levaram a cabo um plebiscito a 3 de novembro de 1870, questionando os habitantes se “tinham confiança no Governo de Defesa Nacional”; 557.996 disseram “sim” e 62.638 votaram “não”. Contudo, à medida que os rigores do inverno se acentuavam e a comida e os medicamentos rareavam, alguns bairros parisienses começaram a agitar-se novamente. Também os alemães denotavam cansaço e irritação com o prolongado assédio, pelo que Bismarck, em janeiro de 1871, deu ordem para que as suas peças de artilharia pesada, de longo alcance, iniciassem o bombardeamento sistemático da “cidade das luzes”. Os dirigentes do Governo provisório francês, sediado em Bordéus, entenderam que a guerra não podia continuar. Jules Favre, então ministro dos Negócios Estrangeiros, sem passar cavaco ao restante elenco do Executivo, procurou os prussianos para assinar um armistício definitivo. Conseguiu-o, embora de forma totalmente desastrada, aceitando pesadas sanções, nomeadamente a perda da Alsácia e da Lorena, questão indiscutível para Bismarck. Contudo, a troco de uma indemnização de 200 milhões de francos, Paris não seria ocupada; os seus defensores deporiam as armas mas não seriam detidos. E por especial pedido de Favre, Bismarck acedeu a não desarmar a Garde Nationale, “a fim de que se pudesse manter a ordem”.
Organizadas precipitadamente, com o intuito de uma nova Assembleia Nacional poder ratificar o armistício, a 8 de fevereiro há eleições gerais e dos 645 deputados eleitos, 400 são favoráveis a uma ou outra forma de monarquia e “pela paz”. O mesmo acontecia com os 200 republicanos moderados, 80 dos quais eram ex-monárquicos orleanistas, que aceitavam como dirigente de referência Adolphe Thiers. Mas havia igualmente uma posição radical “pela continuação da guerra”, com Georges Clémenceau e Léon Gambetta e a extrema-esquerda de Blanqui. Estes grupos controlavam 37 dos 42 deputados eleitos por Paris. Como Thiers fosse o político mais consensual, foi eleito chefe do Executivo e a paz com as forças de ocupação alemãs foi definitivamente selada a 24 de fevereiro de 1871.
Uma das primeiras medidas de Thiers foi restabelecer a ordem e a autoridade na anárquica Paris. Como exercício de poder, a propósito da propriedade de umas duas centenas de canhões que a Garde Nationale, já em roda livre, entendia serem seus, a 18 de março de 1871, ordenou às depauperadas forças do exército ainda disponíveis que subissem a Montmartre (à colina onde em 1875 seria construída a basílica do Sacré-Cœur para expiar os crimes dos communards), em que se encontravam a maioria das peças em causa, e assumissem a sua posse. Imprudentemente, nem esperou pelos reforços que o regresso dos prisioneiros, entretanto libertados pelos alemães, lhe poderia proporcionar. De acordo com um modelo insurreccional bem conhecido, uma multidão ameaçadora interpôs-se entre os militares e os canhões.
À medida que a tensão crescia, os cavalos que era suposto rebocarem a artilharia nunca mais chegavam e, perante a indecisão do comando, as unidades permaneciam imobilizadas, sujeitas à atrição das invectivas revolucionárias, combinadas com a sedução orquestrada da “confraternização”. Rodeados pela populaça, muitos soldados não aguentaram a pressão e começaram a quebrar a formação, juntando-se aos manifestantes. Quando o comandante da força, o general Claude-Martin Lecomte, ordenou que fixassem baionetas e apontassem as armas, os soldados, perturbadíssimos, não obedeceram e alguns atiraram-se sobre os oficiais acatando, ao invés, as palavras de ordem dos revolucionários. Lecomte e outro oficial entretanto detido, o general Jacques Clément-Thomas (um ardente republicano que havia sido exilado por Napoleão III), foram linchados nessa tarde.
A Comuna controla Paris
Thiers, por sugestão do governador militar de Paris, face ao clima de insurreição generalizada, ordenou então a evacuação das forças militares ainda leais ao Governo legítimo e a sua reconcentração em Versalhes. Perante esse recuo, as unidades mais extremistas da Garde Nationale ocuparam o vazio de poder deixado pela retirada do Exército. Num ambiente de barricadas improvisadas e de “vigilância popular” onde o grito mais frequente era o “Viva a república universal! Viva a Comuna!”, estava proclamada a revolução e assumia a sua condução um auto-intitulado Comité Central da Garde Nationale. Decidiram assumir a designação de Commune de Paris, inspirados na memória da insurreição da Comuna de 1792, responsável pelos terríveis massacres de 2 a 7 de Setembro desse ano e pelo Terror que se lhes seguiria (de Abril de 1793 a Julho de 1794). A 26 de março foram realizadas eleições para o Conselho da Comuna, tendo participado 227.300 eleitores dos cerca de 485.000 registados, ou seja, uma abstenção superior a 53%. E pela desistência amedrontada dos “moderados” apenas 63 dos 92 membros do Conselho eleitos assumiram realmente os seus lugares.
No programa do Conselho da Comuna, dado a conhecer a 19 de abril, podia ler-se: “A Revolução da Comuna, levada a cabo pela iniciativa popular do 18 de março, inaugura uma nova era de política experimental, positiva, científica. É o fim do velho mundo governamental e clerical, do militarismo, do funcionarismo, da exploração, da agiotagem, dos monopólios, dos privilégios, aos quais o proletariado deve a sua servidão, a Pátria as suas desgraças e os seus desastres.” Estava representado quase todo o espectro revolucionário: republicanos jacobinos “centralistas”, anarquistas “federalistas” e “colectivistas” da linha de Proudhon, extremistas “blanquistas”, radicais “internacionalistas”, socialistas “independentes”, etc. E cerca de um terço eram membros da maçonaria sujeita à orientação do Grand Orient de France.
Como seria de esperar, face a tão díspar e exaltada assembleia, rapidamente o Conselho se cindiu em duas tendências: a “maioritária”, que defendia o primado da política sobre o social, constituída pelos jacobinos, os “blanquistas” e os “independentes”, e outra, “minoritária”, que entendia que as medidas sociais se deviam sobrepor ao “autoritarismo centralizador” dos outros; estes eram sobretudo os “colectivistas”, os “proudhonianos” e os radicais “internacionalistas”. A 1 de maio, por imposição dos “maioritários” foi criado o Comité de Salvação Nacional que os “minoritários” recusaram, por entenderem que tal organismo era “contrário às aspirações democráticas e autonomistas da Comuna”. A liberdade de imprensa foi restringida apenas se permitindo a publicação de jornais favoráveis ao Comité. E a bandeira vermelha substituiu a tricolor republicana.
Não cabe no âmbito deste ensaio descrever ou analisar em detalhe a governação da Comuna. Mas na medida em que ela, provavelmente mais que a própria Revolução Francesa, acabou por se tornar na referência iconográfica e metodológica de todas as futuras insurreições esquerdistas, e não só, há que caracterizar minimamente os acontecimentos que mais a marcaram. Além do anunciado no seu radical programa, o Comité Executivo da Comuna declarou a coluna da Praça Vendôme, que homenageava Napoleão Bonaparte e as suas vitórias, “um monumento de barbarismo” e “um símbolo da força bruta e do falso orgulho” que deveria ser destruído. A “sentença” foi o ponto de partida para todo um programa de destruição de edifícios públicos e privados que pudessem simbolizar mesmo que remotamente, o poder do Estado e das classes mais endinheiradas.
Pela sanha destruidora de “comandos” incendiários dos communards, atuando sob as ordens do Comité Executivo, ardeu a casa do próprio Adolphe Thiers, bem como inúmeras outras nas ruas Royale, do Faubourg de Saint-Honoré, Saint-Florentin, de Rivoli, du Bac, Sedaine, de Lille, etc. Também as residências de Jules Michelet, de Prosper Merrimée e de muitos outros literatos, com todo o seu riquíssimo espólio cultural, não escaparam à fúria dos communards. Num clima de desvairo total, eventualmente estimulado pela enorme frustração coletiva decorrente da crescente incapacidade de defesa militar, foram incendiados o Palácio das Tulherias e a Biblioteca Richelieu do Louvre, que lhe era adjacente, por ordem do ex-sargento Jules Bergeret, graduado em “general” comandante militar de Paris. Depois da sua criminosa iniciativa, Bergeret enviou uma mensagem ao Comité dizendo que “os últimos vestígios da realeza acabaram de desaparecer; quero que o mesmo aconteça a todos os monumentos de Paris.” Na sequência foram ainda queimados o Palácio da Justiça, o Palácio d’Orsay, o Palácio da Legião de Honra, o Palais-Royale, a Caixa dos Depósitos, o Ministério das Finanças, várias igrejas e, finalmente, a própria Câmara Municipal. O Governo publicaria posteriormente uma lista com mais de duzentos edifícios destruídos ou afetados pelas chamas, onde se incluía o teatro do Bataclan.
Como aconteceria mais tarde noutras insurreições, como nos nossos 5 de Outubro de 1910 e 14 de Maio de 1915, na revolução socialista das Astúrias (1934) e na Guerra Civil Espanhola de 1936-1939, a Igreja Católica foi um dos principais alvos da repressão terrorista da Comuna. Algumas centenas de sacerdotes e religiosos de ambos os sexos foram presos e cerca de três dezenas de templos encerrados. Por instigação dos periódicos anti-clericais, unidades da Garde Nationale levaram a cabo inspeções às caves e criptas das igrejas, à procura de evidências de alegado sadismo e de práticas criminais. Detidos vários sacerdotes, foram conduzidos ao comando da Polícia, onde o comissário da Segurança Pública, Raoul Rigault, os interrogou. Perante a pergunta “qual é a vossa profissão?”, responderam: “Servidores de Deus”; a “onde é que ele mora?”, contestaram “em toda a parte”. O comissário mandou então o amanuense registar: “F. [fulano] e S. [sicrano] dizem-se servidores de um tal Deus. Em estado de vagabundagem”. A 25 de abril, um grupo encarregado de proceder ao inventário do convento dos Dominicanos, no n.º 92 da Rua Charonne, afirmou ter encontrado na cripta da capela o “corpo de uma religiosa”.
Na véspera, o jornal La Commune, tinha igualmente anunciado a descoberta de “mais de vinte metros cúbicos de ossadas humanas”, nos subterrâneos da igreja de Saint-Laurent. O Journal Officiel perguntava então: “Quem é o assassino? Quem são as vítimas?”. No mês seguinte, a 21 de maio, o mesmo periódico voltará à carga, publicando “um segundo relatório sobre a investigação dos crimes cometidos na igreja de Saint-Laurent”. E, sobre o assunto, foi publicado um panfleto ilustrado onde, para excitar a populaça, se dizia: “Estas mulheres foram seguramente adormecidas com clorofórmio e depois violadas e emparedadas vivas, há dez, quinze anos no máximo. Mães de família crédulas que confiais aos padres a honra e a vida dos vossos filhos, vós para quem qualquer ataque contra o clero é calúnia ou blasfémia… vinde ver estas caves hediondas”. Como era evidente, tratavam-se de ossários mantidos nas criptas de algumas igrejas como ainda hoje pode ser visto pelo público na Capela dos Ossos da igreja de São Francisco, em Évora.
A 5 de abril, na sequência de uma revista às casas dos Jesuítas nas ruas Lhomond, des Postes e de Sèvres, os jornais revolucionários informavam que “haviam sido encontradas quantidades consideráveis de armas e munições”; dois dias depois, seriam “oficinas de bombas artesanais”. Tornou-se habitual ver as imagens e as alfaias do culto serem usadas em paródias e pantominas de rua, com imitações de cortejos processionais e celebrações litúrgicas. E logo no início de maio, muito antes da ofensiva de reconquista das tropas do Governo, já vários tribunos exigiam o abate imediato dos padres e religiosos presos, nomeadamente do arcebispo Georges Darboy. E muitos deles iriam mesmo ser executados durante a “semana sangrenta”, de 21 a 28 de maio, incluindo Darboy.
Depois da ocupação de alguns fortes estratégicos da periferia de Paris, a 21 de maio, as tropas do Governo, comandadas por general Patrice de MacMahon penetram finalmente na linha de defesa interior de Paris. O responsável da Comuna pela Guerra era o jornalista Louis Charles Delescluze que tinha no imigrante polaco Jaroslav Dombrowski, ex-oficial do exército imperial russo, o seu principal colaborador operacional. As suas tropas eram constituídas essencialmente por unidades da Garde Nationale e por desertores do Exército que nunca conseguiram opor uma resistência eficaz às tropas do Governo. Quando estas entraram no tecido urbano da cidade viram-se confrontadas com barricadas e com a necessidade de recorrer à batalha de rua, com tiros à queima-roupa. E foi o início dos combates e das chacinas que ficariam historicamente conhecidos como a “semana sangrenta”. Perante a recusa em depor as armas por parte das forças communards, quem fosse encontrado com armas, resíduos de pólvora nas mãos ou marcas do coice das coronhas no ombro era identificado e sumariamente executado. De acordo com o historiador Maxime du Camp, foram assim passados pelas armas cerca de 1.350 communards enquanto no tiroteio dos confrontos morriam à volta de 5.300 revolucionários.
A questão da verdadeira ordem de grandeza das execuções de communards foi sempre um ponto de discórdia entre os historiadores. Maxime du Camp, com a publicação de Les convulsions de Paris em 1881, foi um dos percursores na análise séria do tema. Os números de du Camp, que reviam em baixa os valores propalados pela propaganda apologética da insurreição, resultaram de uma investigação exaustiva nos registos da morgue e dos cemitérios de Paris, posteriormente complementada com as descobertas de sepulturas coletivas improvisadas. O trabalho do historiador, membro da Academia Francesa, foi desqualificado pela historiografia marxista que o acusou de ser “o texto chave na construção e promulgação da memória reacionária sobre a Comuna”. Os escritores e propagandistas apologéticos repetiram sempre a marca dos “entre 20.000 e 30.000”, tirando partido do equívoco popular no entendimento da expressão de cunho militar “baixas” (mortos, feridos, desaparecidos e prisioneiros) com “mortos”. Mas mais recentemente, em 2016, o historiador britânico Robert Tombs (Paris, bivouac des révolutions. La Commune de 1871) procedeu a uma nova análise dos registos documentais, cifrando o número de mortos entre seis mil e sete mil, confirmando assim a investigação precoce de du Camp.
Mesmo durante os combates, a debandada já tinha começado, com muitos dirigentes e soldados a trocarem o uniforme por roupas civis para melhor se escapulirem da cidade, enquanto o exército francês mantinha o seu metódico avanço e ocupação do tecido urbano. O poder central do Comité Executivo da Comuna desintegrara-se e agora era cada freguesia, cada bairro e cada um por si. As últimas instruções do Comité haviam sido para que se executassem os presos a que chamavam eufemisticamente “reféns”. Foram selecionados uns quantos e, entre linchamentos e execuções, acabaram por ser abatidas 67 pessoas, na sua maioria sacerdotes, polícias, oficiais e figuras políticas que se haviam oposto aos desmandos dos insurretos.
As tropas governamentais tinham sofrido 877 mortos, 6.454 feridos e 183 desaparecidos em combate. A descrição da seleção e do abate dos “reféns” era pavorosa pelo que a repressão do Governo foi rápida e impiedosa. Émile Zola, enquanto jornalista de Le Sémaphore de Marseille, foi dos primeiros repórteres a entrar em Paris durante a “semana sangrenta”; a 25 de maio relatou que “nos tempos civilizados, nunca um crime tão terrível assolou uma grande cidade, […] Os homens da Câmara Municipal não podiam ser senão assassinos e incendiários. Foram derrotados e fugiram do exército regular como ladrões, vingando-se nos monumentos e nas casas […] Os incêndios de Paris extravasaram o limite do exaspero do exército […] Os que queimaram e os que massacraram não merecem outra justiça que a bala de um soldado”. Anatole France, por seu lado, descreveu a Comuna como “um comité de assassinos, um bando de vândalos, um governo de crime e de loucura”.
Por todo o lado se constituíram Conselhos de Guerra que, no apuramento de responsabilidades, pronunciaram 10.137 condenações, das quais 93 à morte, 251 a trabalhos forçados, 4.316 a deportação (uma grande parte para a colónia da Nova-Caledónia, no Pacífico) e a penas de prisão. Dos condenados à morte serão efetivamente executados 23, já que as revisões de penas, a amnistia parcial de março de 1879, e a geral de julho de 1880, acabaram por perdoar a todos os culpados. E, numa lógica muito francesa de engagement de gauche, a Assembleia Nacional, em 29 de novembro de 2016, branqueou a história da Comuna de Paris e reabilitou todas as vítimas da repressão levada a cabo pelas tropas do Governo legítimo de Thiers.
O ideário subjacente à formulação da Comuna estava fortemente influenciado pelo pensamento radical “federalista” de Proudhon. Quer os anarquistas (de vários tons), quer os comunistas “autoritários”, quer os socialistas radicais olharam sempre para a Comuna como o paradigma da sociedade “liberta das grilhetas”. Marx, no seu discurso A Guerra Civil em França, escrito durante a Comuna e dado à luz em julho de 1871, louvou as iniciativas dos communards, descrevendo-as como o modelo para o governo revolucionário do futuro para “a emancipação do proletariado”. “Os seus mártires estão gravados no grande coração da classe operária; os seus exterminadores foram já cravados pela história no pelourinho eterno de onde nem as orações de todos os seus padres os conseguirão redimir», acrescentou. Engels secundou o seu parceiro, ressaltando que a Comuna fora a primeira expressão da “ditadura do proletariado”, um conceito eminentemente “blanquista” que, posteriormente, Lénine e Mao Zedong tanto usariam nas suas construções ideológicas. Mas a sua postura laudatória não excluiu a reflexão crítica; ambos os pensadores comunistas entendiam que a Comuna tinha falhado porque não fora suficientemente repressiva das forças reacionárias, porque mantivera o recrutamento militar apenas voluntário e não fora capaz de impor aos anarquistas e aos socialistas anti-autoritários o processo do centralismo de mando para a conquista do poder.
Lénine irá mais longe e insistirá em reprovar a “excessiva magnanimidade para com os inimigos de classe” bem como a incapacidade dos líderes communards em perceber a importância de operações militares ofensivas numa guerra civil. Mikhaïl Bakúnine foi igualmente um grande apoiante da insurreição, mas vendo-a com uma abordagem distinta, discordante mesmo. Olhou-a como “uma rebelião contra o Estado” e, contrariamente aos comunistas, por entender que os communards tinham maioritariamente rejeitado a “ditadura revolucionária”. Tal como aconteceria posteriormente com outras tentativas de branqueamento de ocorrências revolucionárias, também vários próceres do pensamento “avançado”, mesmo os ditos “liberais”, sempre branquearam os acontecimentos de Paris durante a Comuna, empolando teses “justificativistas”. Para muitos deles, os crimes cometidos haviam sido resultado não do espírito jacobino presente no socialismo de base dos communards mas da “raiva espontânea das massas reprimidas pela burguesia capitalista”, das “anormais condições climatéricas daquele inverno” ou até mesmo como resultado da fúria dos “coitados deslocados à força para a periferia de Paris pelas drásticas alterações urbanísticas ordenadas por [Georges-Eugène] Haussmann” pouco tempo antes.
Consequências da Comuna de Paris em Portugal
Em Portugal, a proclamação da Terceira República em França mas sobretudo os ecos da insurreição da Comuna de Paris voltariam a agitar os ávidos “crentes da nova aurora” que viam no regime republicano e no socialismo a panaceia para todos os males de que padecia a Nação. Quatro dias após o início da Comuna de Paris, tinham tido início em Lisboa as célebres “conferências democráticas do Casino Lisbonense”; duraram de 22 de março a 26 de junho de 1871. Foram impulsionadas por Antero de Quental que, sob a influência das ideias revolucionárias de Proudhon, incutiu no chamado “grupo do Cenáculo»” o entusiasmo para as concretizar. Na cabeça de Antero fervilhava um amargo cocktail em que sobre um pessimismo intrínseco de base se misturava um desejo quimérico de transmutar a fé cristã da juventude numa utopia revolucionária.
O que mais tarde se chamaria genericamente “a geração de 70” reunia jovens escritores e intelectuais de vanguarda como, por exemplo, José Duarte Ramalho Ortigão e Abílio Guerra Junqueiro. Alguns deles, como Adolfo Coelho, Antero de Quental, Augusto Soromenho, Augusto Fuschini, Eça de Queirós, Germano Meireles, Guilherme de Azevedo, Jaime Batalha Reis, Oliveira Martins, Manuel de Arriaga, Salomão Sáragga e Teófilo Braga, subscreveram um manifesto, publicado a 18 de maio de 1871 no jornal A Revolução de Setembro. Entusiasmados com o que se estava a passar em Paris, mostravam-se preocupados com o alheamento das elites portuguesas sobre as mudanças políticas e sociais por que o mundo estava a passar.
Para colmatar essa lacuna, propunham-se analisar a sociedade “como ela é e como deveria ser”, estudar todas as ideias e movimentos “avançados” e introduzir em Portugal as correntes “progressistas” que os deslumbravam. Com uma visão tendencialmente internacionalista, pretendiam “abrir uma tribuna onde tenham voz as ideias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século, preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos povos; ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim nutrir-se dos elementos vitais de que vive a sociedade civilizada, procurar adquirir a consciência dos factos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência modernas; estudar as condições da transformação política, económica e religiosa da sociedade portuguesa.”
Na ementa do novo restaurant servia-se “historicismo“ acompanhado pelo interesse pela “sociologia”, “puré” de crença no progresso das sociedades através da Ciência, salada “positivista” à maneira de Comte, com tempero de Littré e uma pitada de Taine, tiras de “evolucionismo” de Darwin, um menu de degustação das ideias de Karl Marx e, especialmente, de Proudhon; à sobremesa, “realismo” na arte como narrativa de um novo ideal de vida. Um dos seus mais insignes cultores, Eça de Queirós, afirmará nas Farpas, sobre as conferências: “Era a primeira vez que a Revolução sob a sua forma científica tinha em Portugal a sua tribuna”.
Foi na espuma e nos ecos da Comuna, mormente por força da ligação à I Internacional, que se começou a estruturar o movimento organizado do operariado português. As organizações de trabalhadores, até então essencialmente “mutualistas” e “assistencialistas”, sob os auspícios do “socialismo utópico” começam a transformar-se em núcleos verdadeiramente revolucionários, que promoverão pouco depois a primeira corrente de greves significativas em Portugal (1872). E assim nascia entre nós, com algum significado, o sindicalismo.
Antero de Quental reconhecerá que “ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades operárias e, adepto de Marx e de Engels, introduzia em Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores”, a AIT, vulgarmente conhecida como a I Internacional. A historiografia comunista refuta essa afirmação de Antero, a quem acusa de ser “partidário das teses pequeno-burguesas de Proudhon” e formado no “socialismo utópico”. A versão que dão é outra, de carácter mais formal. Salientam que, em março de 1872, uma missiva para o Conselho Geral da AIT, sediado em Londres, assinada por José Correia Nobre França (secretário-geral) e José Tedeschi (secretário para as relações exteriores), a Federação Portuguesa, constituída no ano anterior, afirmava: “Começamos por dar a adesão da Região Portuguesa, infelizmente a mais tardia da Europa a entrar no grande movimento de emancipação e libertação económica, política e social da classe operária e da humanidade sofredora”.
Quando, aparentemente, já se registavam casos isolados de greves operárias em Portugal, em 1852, um relojoeiro suíço, Giuseppe Domenico Fontana, que ficaria conhecido como José Fontana, contribuíra, juntamente com Antero de Quental, para a criação do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas. Mas será sobre o efeito da Comuna de Paris que o Centro assumirá um rumo já marcadamente socialista, apresentando em “manifesto” o anúncio do que se passaria a chamar a “revolução social”. Nele podia ler-se: depois do “clarão imenso das chamas ateadas pela Revolução Operária em Paris, nos Paços do Poder momentaneamente derrubados, […] no mundo social ia, necessariamente, dar-se uma extraordinária transformação.” Eram então figuras de proa da nova orientação do Centro Promotor personagens como Antero de Quental, José Fontana, Joaquim Pedro de Oliveira Martins, Eudóxio Azedo Gneco, Francisco Vieira da Silva, José Maria da Conceição Fernandes, José Correia Nobre França, José Maria do Casal Ribeiro, Joaquim Felizardo de Lima Camelo Pereira da Silva de Sousa Castelo Branco Vilhena e Bourbon (Felizardo Lima), João Bonança, Júlio Máximo Pereira, José Mesquita da Rosa, António Lúcio Fazenda e Manuel Gomes da Silva, entre outros.
Fontana e Quental intervêm na redação do opúsculo O que é a Internacional; o socialismo contemporâneo, o programa da Internacional; a organização da Internacional; as conclusões, dado à luz, anonimamente, em 1871. Em janeiro de 1872, também com Fontana, já então empregado da Livraria Bertrand, Antero ajudará a fazer evoluir os objetivos do Centro Promotor, fundando a associação Fraternidade Operária com o seu órgão de comunicação O Pensamento Social, jornal socialista. O semanário fora viabilizado pelos fundos proporcionados pela venda do folheto O que é a Internacional e saíra pela primeira vez em Fevereiro de 1872. José Fontana, depois de se ter filiado na Maçonaria, transformará a Fraternidade Operária no embrião do Partido Socialista Português, em 1875.
Em O Pensamento Social explicava-se que “o programa político das classes trabalhadoras, segundo o socialismo, cifrava-se em uma só palavra – abstenção [nos actos eleitorais]”. E prosseguia, num estilo escatologicamente apocalíptico: “Deixemos que esse velho mundo se desorganize, apodreça, se esfacele por si, pelo efeito do vírus interior que o mina. No dia da decomposição final, nós cá estaremos então com a nossa energia e virtude, conservadas vivas e puras, longe dos focos de infecção desta sociedade condenada”. No seu segundo número acelera a sua postura revolucionária, atacando mesmo a hipotética república: “Monarquia absoluta, aristocrática ou democrática, República centralizada ou federal, não têm outro fim do que absorver o trabalho de muitos por uns poucos, fazendo absorver, por grupos diversos, o trabalho das multidões.”. Note-se que para os socialistas a “questão do regime” era negligenciável ao contrário dos republicanos para quem a “questão social” se resolvia com políticas corretas e a subtração dos operários à influência da Igreja e do Trono.
É interessante notar os contactos que então se estabeleceram entre os dirigentes da Fraternidade Operária, como Fontana, Antero e Batalha Reis, e os refugiados libertários espanhóis que desde junho de 1871 por cá estavam, fugindo, por antecipação, da repressão das autoridades espanholas depois da débacle da Comuna de Paris. Designadamente Anselmo Lorenzo Asperilla, considerado o avô do anarquismo espanhol, Tomás González Morago que, após um encontro com Giuseppe Fanelli em 24 de janeiro de 1869, promovera a fundação da Federação Regional Espanhola da AIT e Francisco Mora Méndez que participara igualmente no processo de filiação nessa organização internacionalista. Mora viria depois a ser um dos fundadores do PSOE, em 1879. Todos eles iriam contribuir de forma decisiva para a estruturação clandestina em Portugal da secção regional da I Internacional e para a divulgação das obras de Mikhaïl Bakúnine, Proudhon, Kropotkine, e mesmo de Tolstói, abarcando desde o anarquismo “social” ao “individualista”, passando pelo “mutualista”.
Uma vez que as dificuldades criadas pela guerra franco-prussiana tinham impedido a convocação do V Congresso da AIT, fora organizada apenas uma Conferência do Conselho Geral, que se tinha realizado, entre 17 e 23 de setembro de 1871, em Londres. No encontro, que debateu profundamente os acontecimentos da Comuna de Paris, a Espanha fora representada por Anselmo Lorenzo enquanto Portugal se fizera representar por Friedrich Engels, na sua qualidade de “secretário correspondente para Espanha (sic)”. Finalmente, de 2 a 6 de setembro de 1872, teve lugar na cidade holandesa de Haia o V Congresso da Associação Internacional dos Trabalhadores. Para representar os núcleos portugueses da AIT fora nomeado, como “delegado” com “mandato imperativo”, o franco-cubano Paul Lafargue que estivera pouco tempo antes em Portugal (agosto de 1872) em missão prosélita.
Depois da derrota da Comuna algumas forças revolucionárias, propugnantes do “comunismo de Estado”, lideradas por Marx e por Engels, entendiam que a Internacional não poderia continuar como até então. E o Congresso iria ficar marcado pelo seu empedernido ataque às correntes proudhonistas e sobretudo às bakuninistas. Acabaria mesmo por levar à expulsão do inspirador desta última, Mikhail Bakúnine, e do anglo-francês James Guillaume. Em 27 de julho de 1869, Marx escrevera a Engels sobre Bakúnine: “Esse russo quer, evidentemente, tornar-se o ditador do movimento operário. Que tenha cuidado! Senão, será excomungado”. No duelo com Bakúnine, Marx escolherá preferencialmente a arma do “assassinato de carácter”, atacando-o pessoalmente através de calúnias e intrigas provocatórias, evitando sempre o debate aberto de ideias.
Com efeito, tal como estipulava o mandato (previamente orquestrado, ao que tudo indica) do delegado espanhol e português, o marxista Paul Lafargue, a “fantasiosa associação secreta” Aliança Internacional da Democracia Socialista, organização anti-autoritária atribuída a Bakúnine, foi “declarada uma sociedade perigosa e altamente prejudicial para a emancipação económica da classe trabalhadora”. Profundamente erodida pela ação dos marxistas, a AIT, depois de ter mudado, por sugestão de Engels, a sede do seu Conselho Geral para Nova Iorque, acabará por ser dissolvida no Congresso de Filadélfia, em 1876, perante a impotência do seu secretário-geral o americano de origem alemã Friedrich Sorge. Mas como dirá Domingos Abrantes “a palavra de ordem ‘Proletários de todos os países – uni-vos’ passou a ser um objetivo suportado pela força material de uma organização internacional que fazia do internacionalismo proletário condição das vitórias comuns dos trabalhadores em cada país”.