Pioneiro na moda nacional, Nuno Gama é muitas vezes descrito como resiliente. Será essa característica que terá permitido ao criador atravessar as mudanças profundas na indústria, resistir às crises e recuperar da tragédia que foi o incêndio que em outubro de 1998 lhe consumiu o atelier em plena baixa do Porto, deixando-o sem nada. “Tornei-me tão mais forte à custa disso. Se não tivesse acontecido, não era a mesma pessoa que sou hoje.”
Foi o derradeiro teste. Nuno Gama aprendeu a não tomar nada por garantido e a aperfeiçoar a arte de renascer. Como em 2023, quando, em plena celebração de uma data redonda — a marca faz 30 anos —, resolveu desvincular-se da estrutura ModaLisboa. “Chegou a altura de fazer o meu caminho”, conta ao Observador, a um mês de apresentar um desfile em nome próprio no Castelo de São Jorge, em Lisboa.
Na ampla loja-atelier na Estefânia, na capital, trabalha sob a guarda dos fiéis Tejo e Sado, dois cães com iguais doses de imponência e doçura que orbitam em seu redor. É ali que o designer passa os dias. De manhã, responde a e-mails e resolve questões ligadas a lojas, clientes, fábricas, tecidos, botões, linhas, etiquetas. À tarde, recebe clientes e desenha como se veste o futuro.
Atualmente, a marca Nuno Gama produz 80% em fábrica e o restante em ateliers na zona de Lisboa. Tudo é feito em Portugal e privilegiando a manufatura. “Não temos produções gigantescas, não fazemos 500 peças de nada”. Nesta nova vida em Arroios (antes estava no Chiado), admite que perdeu o turista que está de passagem, mas manteve os clientes que o seguem quando é empurrado pelas rendas exorbitantes do centro. “Depois de fazer grandes investimentos nos espaços e nas obras e na decoração, custa imenso, mas hoje em dia a vida está assim. Adoraria ter uma loja na Avenida da Liberdade, mas ainda não deu para isso”. É sobre liberdade que recai esta entrevista.
Recordava há pouco o incêndio. O que aprendeu com a tragédia?
Aprendi a viver de maneira completamente diferente. Hoje tenho muito menos necessidade de coisas do que tinha anteriormente. Nesse dia, quando perdi tudo, percebi que estava tudo dentro de mim. É genial percebermos que se calhar não precisamos de ter tantas traquitanas penduradas em casa ou tantas molduras com os amigos, tantas coisas. O que realmente é importante na nossa vida está sempre dentro de nós. Aprendi nessa altura, mas já era do meu espírito. Cresci com uma mãe que me dizia assim: um Gama é um Gama. E um Gama nunca desiste. E um Gama vai para a frente. E um Gama faz. Mas há coisas… Sentir um pequeno cheiro a queimado é algo que ainda me deixa completamente nervoso e stressado.
Quando há 30 anos registou a marca Nuno Gama, o que sonhava?
O registo da marca é tardio. Foi em 1993, mas na realidade comecei muito antes. Comecei em 1984, 85, vendia fatos de banho para a [loja] Mr. Wonderful e para a Desfile. Depois fui para o Porto em 86 estudar. Estive sempre a fazer coisas, sempre a alimentar, mas não havia a marca Nuno Gama propriamente dita, embora já assinasse os fatos de banho com o meu nome. A marca só surge depois. A primeira apresentação que faço com [a marca] Nuno Gama é na Gare Marítima de Alcântara. Os miúdos vinham nos empilhadores, era uma coisa muito spiritual wear, com bordados, muito desportiva, tinham uns ténis com umas asinhas de anjo nos calcanhares. Agora já vi imensos ténis com asas de anjo, às vezes digo: já fiz isto. E eles ficam assim a olhar: mas já fizeste o quê? Já tens muita história aí para trás.
Sabia bem o que queria?
A primeira ModaLisboa a sério despertou-me logo para o mercado internacional, porque apresentei a coleção e fui logo para fora. Tive a sorte ou a benção de ter uma grupeta de internacionais que vieram à ModaLisboa e que acharam que eu era diferente de todos os outros. Porque falava português, porque tinha uma história portuguesa. Diziam-me que num mundo já lotado de marcas e de ideias, era muito mais fácil eu ir pela minha diferença. Inclusive todos me disseram: “tens que vir para Paris, mas continuar aí. É assim, não percas a tua autenticidade, não percas a tua raiz portuguesa no teu trabalho, que isso é muito importante”. Quando comecei a fazer as feiras lá fora deparei-me com uma coisa que ainda existe, e que me incomoda e entristece, que é a ausência do reconhecimento da cultura portuguesa. Hoje estamos a ser descobertos pelo mundo, de alguma forma, mas são os outros que estão a fazer esse exercício. Acho que, tirando a Amália, o Eusébio a uma determinada altura, e o Cristiano Ronaldo… Temos algumas pessoas que conhecem uma cantora de fado… Mas são coisas um bocadinho isoladas, não há uma força.
É político, o Governo tem que conseguir, se calhar através do Ministério da Cultura, criar uma estrutura em que exista reconhecimento internacional do produto de cultura portuguesa. E o produto de cultura portuguesa é tudo o que tem a ver com a nossa cultura. O vinho é cultura, a música, que envolva todas as artes, como tudo aquilo em que nós nos diferenciamos de alguma forma. Ir lá para fora, mostrar coisas iguais ou parecidas aos outros, parafusos, se calhar não faz sentido.
O consumidor final, algures no mundo, ninguém sabe quem é a marca Nuno Gama, ninguém sabe que existe moda em Portugal. Ninguém sabe… É uma ausência total, é um desconhecimento total. Isso foi, é e continua a ser muito difícil. É um desafio muito grande que temos que ultrapassar. Espero que agora, com esta nova vaga de que estamos a ser invadidos internacionalmente por todas as línguas, se consiga encontrar um bom caminho e que se faça disso algo de bom para nós. Que saibamos aproveitar e a rentabilizar de alguma forma.
Esse elogio à portugalidade reflete-se no que têm sido as mais de 50 coleções que já apresentou. Já teve criações ancoradas nos heterónimos de Fernando Pessoa, recorreu aos Lenços de Viana, evocou o Galo de Barcelos, os Azulejos, Os Lusíadas, o fado. Até as Quinas e a Cruz da Ordem de Cristo identificam ao longe uma peça Nuno Gama. Portugal foi sempre a maior das inspirações para criar?
Tenho um orgulho diria quase anormal de ser português. Conheço muitas pessoas que gostam de ser portuguesas, têm algum orgulho, mas não tem a mesma coisa que eu tenho.
Não tem receio de ser acusado de nacionalismo?
Já me chamaram de tudo, os meus ouvidos já têm uma corrente de ar. Já estou numa fase da minha vida em que sei perfeitamente o que sou, quem sou, e a opinião dos outros é muito pouco interessante. A não ser daqueles que me dizem respeito, que são os meus clientes e que são o meu trabalho. O resto, as pessoas hoje dizem tanta coisa com tanta facilidade. Misturam tudo, não conseguem perceber a diferença de fascismo, nacionalismo, direita, esquerda e por aí fora. O que é importante é o que eu acredito, o que é que é válido, o que eu vejo. Nem isto pretende ser um guarda-roupa dessas coisas, dessa lista toda infindável que me mencionou. Não é isso, isso já foi feito, já existe. O que é interessante é o que é que isso causa em mim, que inspiração é que isso traz. Quando digo que isto é inspirado nos livros, não está aqui o Camões, não está aqui Os Lusíadas. Essa é a inspiração. O porquê da cruz estar dentro do “O” é porque o “O” simboliza o universo, simboliza o planeta. E a cruz é a ambição que eu tenho de levar essa cultura portuguesa além fronteiras de alguma forma. É a ambição que tenho desde o início, que era o sonho. Já havia esse desejo mundano e de internacionalização de alguma forma.
A missão da marca é mesmo essa: levar a cultura portuguesa além fronteiras, através da roupa, através deste trabalho. Na próxima coleção vou fazer o desfile no Castelo de São Jorge. E quando chega ao Castelo de São Jorge, tenho o Afonso Henriques (na praça de armas está desde 1947 uma cópia da estátua de D. Afonso Henriques, da autoria de Soares dos Reis, inaugurada em Guimarães em 1888). Este homem é o número um, é o nosso momento um. É genial de repente haver um homem que recebe uma quinta de herança e que diz assim: não, a quinta não chega, vou agarrar numa espada e vou fazer desta quinta um país, vou criar Portugal. Uau! É além das minhas capacidades perceber como é que alguém consegue ser tão grande ao ponto de querer dar isso aos outros, de nos querer dar essa portugalidade. Às vezes esquecemo-nos disso.
Os desfiles performáticos têm sido o seu apanágio. Ocupou o Terreiro do Paço com uma cavalaria montada da GNR, apresentou um desfile em que os modelos partiram 78 pratos contra a calçada portuguesa. Em março, os manequins foram com flutes de champanhe para a passerelle. “Ele era e é sempre muito apoteótico”, descrevia-o a Eduarda Abbondanza, diretora da Moda Lisboa, aquando do documentário sobre a sua carreira, em 2016. Sempre olhou para o desfile como um momento muito além da apresentação de uma coleção?
É o momento de tudo: do trabalho, da coleção, da moda portuguesa. É uma fusão de imensas coisas. Há aqui um mistério absolutamente fascinante e inebriante que é, de repente, há uma ideia que faz sentido na minha cabeça. Faz sentido mediante aquilo que estou a sentir, a minha inspiração, o meu conceito. Faz sentido. Respiro fundo, dou o peito às balas e lá vou defender a minha camisola. Defendo as minhas ideias, tenho que as apresentar da melhor maneira possível e tenho que justificar a presença das pessoas. É muito importante o lado do espetáculo, da mise en scène. Saio muito poucas vezes, até porque tenho estes dois (aponta para os dois cães, que repousam a seu lado) dependentes de mim que nunca ficam sozinhos. Quando saio, gosto de ver uma coisa boa. Tenho que dizer assim: ainda bem que saí, ainda bem que abdiquei do meu tempo para vir aqui. Seja estar com os meus amigos, estar numa festa, ir a um restaurante, ou o que for. Tem que valer a pena. E é esse ter que valer a pena que justifica muitas vezes as coisas todas. É as pessoas saírem de lá e dizerem assim: “há uns anos estive num desfile na Praça do Comércio com a charanga da GNR e com cavalos, e com manequins”.
É isto que dá status, coesão e renome à marca. Roupa, por si só, é muito difícil. A roupa é muito parecida e é demasiado efémera. Tudo isto muda de seis em seis meses radicalmente. Não somos propriamente uma linha de vestuário tão básico quanto isso. Um fato é um fato, mas a maior parte das coisas roda. Há uma série de coisas que fazem com que a marca seja desejada, com que a marca seja falada. Quando as pessoas dizem: “o desfile Nuno Gama não posso perder.” Mas és cliente? “Não, não sou”. Já compraste? “Não, nunca comprei”. Mas porque queres ir? “Porque o desfile é espetacular e adoro”. Cada um de nós acaba por ser embaixador da marca de alguma forma. Gostei, não gostei. Até mesmo os que dizem mal fazem parte da engrenagem. Não sei se gosto daquela coisa de “bem ou mal o importante é que falem”. Não sou muito pelo lado negativo das coisas.
Acha que isso é um problema na moda nacional? É discutível dizer que existe sequer crítica de moda em Portugal.
Sim, infelizmente a crítica de moda desapareceu. Nunca tivemos muita crítica porque as pessoas inclusivamente, às vezes, eram um bocadinho… Houve muita gente que saiu de uma secretária, gostava de moda e resolveu tornar-se crítico de moda. Não é tão linear como isso. Não houve propriamente uma formação para lá chegar. É o que há. Mas não falo da crítica profissional, aliás, lamento que não exista essa crítica profissional porque acho que é extremamente saudável as coisas serem observadas de uma forma pragmática, objetiva. Isto é bom, isto é mau. Tem qualidade, está bem feito. Esse tipo de coisas. Essas coisas são fáceis de avaliar. Já o gosto é muito relativo. O que a Joana gosta é o que a Joana gosta. O que eu gosto é o que eu gosto. A opinião daqueles que não são meus clientes, como disse há bocadinho, vale o que vale.
Em 2022, dizia ao jornal Público: “Está tudo a fazer a mesma coisa, isso é um bocado assustador. Já não posso ver fatos de treino à minha frente.” Como é que, aos 30 anos de marca, mantém a capacidade de inovar?
É procurar. A primeira vez que fui à feira de tecidos em Paris, a Première Vision, devíamos estar em 1988. Nunca tinha estado profissionalmente naquela feira. Ninguém me tinha ensinado. Sabia desenhar roupas, escolher tecidos, sabia muitas coisas, mas não sabia milhões de outras coisas. Nesse dia tomei a decisão de conversar com os tecidos. Converso com as coleções de tecidos. O toque, o que é isto? Sentir e deixar que isso desperte os meus sentidos, de forma a perceber: isto é um casaco, isto é uma blusão, isto é uma calça, isto é muito duro, o cair.
É um instinto que tem apurado?
Sim, sim. E há uma coisa que me chega permanentemente dos clientes: a “vestibilidade” das peças, o bom acabamento, os bons tecidos. Há pessoas aqui que dizem: “até tenho medo de vestir alguma coisa, porque parece que as coisas se agarram a nós”. Estão bem feitas, estão bem cortadas, as matérias primas são boas. Isso é uma coisa que tem a ver com a família. Tem a ver com a avó Bina na Casa das Tortas, a religiosidade com que aquilo tudo era feito. Recordo-me que, na altura, apareceu uma manteiga mais barata do que a Vaqueiro, e ela disse: “nem pensar, as tortas têm que ser feitas com Vaqueiro, mexidas desta maneira, a esta velocidade”. Estas coisas passam [para nós]. Às vezes rimo-nos, mas passam.
Faltam duas semanas para a ModaLisboa, o que é que podemos esperar desta coleção?
Não vou fazer a ModaLisboa, vou apresentar a minha coleção sozinho este ano, a 21 de outubro, no Castelo de São Jorge.
É a primeira vez que apresenta fora da ModaLisboa?
Não, já apresentei antes fora da ModaLisboa, mas dentro do calendário. Desta vez vou apresentar mesmo isolado, porque são os nossos 30 anos, quero fazer uma coisa, uma homenagem à marca, uma homenagem a este caminho, a todos os que estiveram connosco, os que trabalham connosco, quero fazer algo especial. E não só, quero abrir também o público, assegurar que os meus clientes são todos convidados e que estão todos presentes.
Em que momento é que tomou essa decisão?
Tomei a seguir à última ModaLisboa, quando me apercebi que não iria conseguir fazer as coisas como acho que devia fazer e como gostaria de fazer dentro da estrutura. Precisava de sair para o fazer.
Saiu da estrutura ModaLisboa?
Saí da estrutura ModaLisboa, não vou apresentar a coleção com a ModaLisboa.
E na próxima estação, voltará?
Gostava de continuar assim.
Como descreve a sua relação com a ModaLisboa?
(risos) Ótima!
Apresentaria no Portugal Fashion?
Não faz sentido. As instituições de que estamos a falar têm os seus prós e contras, como tudo na vida. Neste momento chegou a altura de fazer o meu caminho. Não faz sentido não estar a fazer aquilo que acho que devo fazer, deixar de fazer o meu espetáculo porque estou dentro do que quer que seja. Nunca estive dentro de nada, nem o meu pai nem a minha mãe me engaiolaram nunca na vida. O meu pai bem que tentou, coitado, bem que sofreu, mas era maior do que eu, é maior do que eu. Nunca pertenci a nenhum grupo. Sou amigo das pessoas que gostam de mim, com as quais convivo, mas não pertenço a nada nem a ninguém. Sou livre, sou livre e estou cheio de vontade de fazer coisas. Isso é que é importante.
Tem estrutura financeira para montar um desfile sozinho?
Vou à procura dela. Não tenho estrutura financeira neste momento, mas vou à procura dela através de sponsors e dessas coisas todas para conseguir fazer.
Acha que de alguma forma pode comprometer o futuro da marca ao desvincular-se de uma associação que, duas vezes por ano, permite a realização deste tipo de eventos?
Não é a minha forma de pensar, não é esse o meu raciocínio. Penso de outra maneira: vou fazer isto porque acredito, porque este é o meu caminho, porque quero fazer isto. Sempre fui de ir para a frente. Há aqui alguma coisa que não está bem, vamos arranjar uma solução. Se calhar não temos algumas coisas que poderíamos ter ali, então vamos à procura de outras. O que é que faltou este tempo todo? O que é que precisei durante este tempo todo e não tive? Então, bora à procura.
O que não teve durante estes anos e vai poder ter agora no desfile que prepara?
Por exemplo, convidar os meus clientes todos. Fazer as coisas como imagino a 100% e não ter que ser condicionado por uma estrutura seja ela qual for. Imagino, se calhar, voltar a ter um circuito internacional de buyers, compradores e uma série de coisas que torne as coisas mais interessantes do que só fazer um desfile e ir embora para casa.
Perde uma série de facilidades logísticas com as quais uma marca, quando está alocada a uma estrutura, não tem que se preocupar, como a questão dos buyers…
Mas nós já não temos nada disso. A ModaLisboa não tem nada disso. A ModaLisboa basicamente dá-nos uma sala, alguns manequins e nós é que temos que tratar de tudo o resto. Nada mais. Mais importante: há toda uma história que eu quero contar. Há todo um percurso que quero honrar e respeitar. Os meus clientes que quero que estejam presentes. Trazer outras pessoas. Trazer outro tipo de coisas. Fazer um investimento naquilo que acho que é importante e que pode ajudar a internacionalizar a marca. E ir à luta por isso.
Em março de 2019, Nuno Baltazar bateu com a porta com o Portugal Fashion por não acreditar no projeto e na sua direção. O designer apontava a falta de transparência, a dualidade de critérios entre criadores e falhas gravíssimas nos bastidores dos desfiles. Na altura, alguns criadores pronunciaram-se e Nuno Baltazar sublinhou que o Nuno Gama disse: “finalmente, alguém diz alguma coisa”. Há uma cultura de silêncio na indústria sobre o funcionamento das estruturas?
Havia e há. Eu saí do Portugal Fashion pelos mesmos motivos, mais ou menos. Não estava satisfeito e saí do Portugal Fashion há uns anos. Na altura fui perseguido, 500 mil coisas que aconteceram. Isto já foi há muitos anos, há muita gente que já não se lembra, a maior parte das pessoas nem se calhar eram nascidos. Mas eu não sou de ir lá declarar guerra. Sou de dizer assim: acho que isto está errado por A mais B igual a C. Podemos mudar? Não. Então, tchau, vou à minha vida.
Fez isso sempre com ambas as estruturas a que pertenceu — ModaLisboa e Portugal Fashion?
Fiz sempre isso toda a minha vida, com toda a gente, com tudo. Fiz com as minhas relações, faço com os amigos, faço com quem tiver que fazer. Esta ideia, quanto a mim, errada, que nós temos, que o mundo é à nossa medida, isso não existe. Temos que respeitar a individualidade de cada um de nós. Não existe verdade, não existe certo, não existe errado. Quem sou eu, o que é que eu sei da sua vida para a julgar a si ou para me julgar a mim? Basicamente é isso que está aqui em causa, não é? Não estou contra ninguém. Se as pessoas querem vestir cor-de-rosa, vistam cor-de-rosa! Se as pessoas querem pôr uma gaiola na cabeça, metam o raio da gaiola na cabeça! Vou fazer aquilo que acho e como acho. Livre.
Em 2020, 25 designers de moda portugueses enviaram um manifesto ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e ao primeiro-ministro, António Costa, a pedir um estatuto profissional e uma Ordem dos Designers. O manifesto de moda de autor era designado por “Uma Voz”. O Nuno não fez parte.
Não.
Porquê?
Porque achava que a pessoa que estava a liderar isso estava a ser manobrada por outra pessoa que estava por trás e como, mais uma vez, eu sou um homem livre, não aceitei. Aliás, juntamente com mais duas ou três pessoas que também não assinaram, acho que foi o Nuno Baltazar e a Maria Gambina, salvo erro, expusemos a nossa versão da situação. A maior parte dos meus colegas que o fizeram acharam que, independentemente disso tudo, se calhar a ideia do que era proposto era mais importante do que o resto. Como, sinceramente, já vi muitas coisas erradas ao longo destes 50 anos da minha vida acontecerem, quando não me cheira não faço parte.
Expuseram-no entre vós, criadores, nunca falaram publicamente sobre o assunto?
Eu não. Expus os meus pontos de vista, fiz perguntas a quem de direito que nunca me foram respondidas, do envolvimento ou não de algumas pessoas por trás da pessoa que estava a dirigir o projeto, como não foi respondido…
Quem é que estaria por trás?
Isso são outros quinhentos, deixe lá isso sossegado agora.
O projeto não avançou. A existência de algum tipo de união ou de ordem ajudaria o setor?
Ajudaria, mas acho que há uma coisa que alguns colegas têm que perceber, que é: há muita gente que se divide pela diferença dos outros. A nossa diferença é a nossa mais-valia, é isto que torna a coisa rica, é isto que faz a marca, cada um ser diferente. Se fossemos todos iguais não tinha piada nenhuma. Isto não nos devia dividir, mas unir e unir com respeito. Tu tens a tua marca, fazes o que tu entendes, eu faço a minha e cada um segue a sua. Há aqui algum bocadinho de divisão e de energias mal canalizadas para aquilo que não é importante. Era preciso as pessoas ganharem algum distanciamento, olharem para o que é importante de forma objetiva e clara e juntarem-se naquilo que nos une. O resto, ninguém vai casar com ninguém, não temos que comer na mesma mesa, não temos que dormir juntos, não temos que viver 24 horas sobre 24 horas.
No mês passado, o designer Filipe Oliveira Batista — que agora está a viver em Portugal — deu uma entrevista e questionado sobre a moda portuguesa respondeu: “Não há contacto…” Esta falta de contacto é geral entre designers nacionais?
Isso, de certa forma, tem sido cultivado por todos nós. Várias vezes sugeri que nos juntassem, para um almoço ou para um jantar, para um convívio. Olha, vamo-nos conhecer. Quando estou no backstage da ModaLisboa, estou focado a fazer o meu trabalho, quero lá saber se está ali a Manuela, o Francisco, a Joaquina. O meu objetivo é fazer o meu trabalho, tenho que estar focado, assim como os meus colegas. No meu caso até há pessoas que dizem que fico muito mal-encarado, que estou de tal forma focado no meu trabalho e a ver tudo: se não há uma linha, se o manequim está bem vestido, se aquilo faz realmente sentido. Até ao último momento posso mudar tudo. Agora, faz sentido que se promova o encontro e se calhar as associações que existem poderiam fazê-lo. Aliás, já várias vezes sugeri que nos encontrássemos.
A questão é eterna: como designer, como é que vê o facto de um país tão pequeno continuar a ter dois eventos de moda, ModaLisboa e Portugal Fashion?
Um país tão pequeno é relativo. Temos Lisboa, a capital, e temos o norte, o Porto — se calhar até outra cidade, não sei se é o Porto —, como capital da têxtil, de alguma forma. A têxtil está toda a norte, não está a sul. É complicado porque há várias vozes, cada uma a puxar à sua sardinha. Não me parece que haja necessidade de haver dois eventos. Sou a favor de um excelente evento que promova realmente as coisas. Uma coisa muito bem estruturada: criadores de um lado, jovens designers do outro, marcas do outro, sem misturas nem confusões, porque isso foi sempre uma coisa má para toda a gente. Quando colocamos um jovem designer com alguém com 30 anos de marca, por muito boa, muito genial que essa pessoa seja, essa pessoa está a concorrer com alguém que já tem um trabalho mais maduro. A tendência é nivelar as duas coisas. Não faz sentido. Faz sentido que as pessoas comecem como comecei. Aliás, um dos sonhos da minha vida é criar uma fundação Nuno Gama, de forma a poder ajudar ao início de carreira na moda em Portugal.
Acompanha os novos designers, há algum criador cujo trabalho lhe desperte particular a atenção?
Não tanto quanto gostaria porque às vezes não me identifico com muitos projetos. Não me identifico muito com os conceitos da maior parte das coisas que vejo hoje. Se bem que há aí nomes a fazer coisas muito interessantes e já com futuros brilhantes garantidos à sua frente.
Em junho, o designer Diogo Miranda anunciou o fim da carreira na moda, 16 anos depois, na mesma altura em que se soube que Nuno Baltazar encerrava a loja na baixa do Porto e que declarava insolvência. São exceções ou casos sintomáticos do estado atual do setor?
Há várias coisas aqui. Acho que o país pensa que nós somos subsidiados pelo Estado, pelo Governo. Que fique claro que não temos subsídio algum, pelo menos eu não tenho subsídio nenhum e acho que os meus colegas também não têm. O que se calhar faria algum sentido, porque nós somos sempre representantes do Estado, de certa forma. Somos representantes da nossa cultura. Centenas de vezes que fui representar Portugal em certos temas internacionais, fui convidado e ainda hoje sou convidado. Frequentemente levamos as bandeirinhas às costas, como levam os atletas e como leva muita outra gente. Acho que o Estado deveria ter aqui uma co-responsabilidade da valorização de tudo isto. O negócio do luxo é um negócio de milhões no mundo inteiro. Nós temos uma capacidade de fabrico, com as fábricas têxteis que temos, extraordinária. Nós produzimos grandes marcas para o mundo inteiro. Temos designers e criadores, temos pessoas que querem chegar lá. Quando é que vamos juntar estas peças todas? Tem que ser um Governo a criar uma fórmula, de associar os designers, criadores, com algumas empresas e essas empresas terem benefícios fiscais, ou terem ajudas, ou apoios. Não sou economista, não tenho a veleidade de pensar o projeto exaustivamente, mas acho que isso faria sentido. Com isto conseguíamos levar a cultura portuguesa mais além, levar a marca portuguesa mais além, servir de cartão de visita para possíveis interessados, para outras marcas.
Falta perceber isto, que há aqui um filão de ouro gigante, que nós, designers, não temos capacidade de lá chegar. Andamos há anos nisto a tentar fazer com os parcos mais que temos e não é fácil. Não é fácil porque são investimentos muito grandes, as coleções são muito caras, as coisas cada vez estão mais caras hoje em dia. Antigamente faziam-se coleções quase a um terço do preço. Nos últimos anos, tudo subiu 30%. As fábricas pagam-se muito bem pagas por fazerem pequenas quantidades e amostras. Tudo isto reverte no preço final que chega ao consumidor. São duas coisas em que falhámos enquanto país. Existiram apoios, existem ainda apoios à indústria têxtil, na qual nos querem englobar, mas não é a mesma coisa. A avaliação de uma indústria e de um designer de uma marca não pode ser feita da mesma forma, tem que ser vista de formas diferentes. Falhou aí. A maior parte das fábricas da indústria que foram atrás dessa tentativa de criar marca… ficaram muitas pelo o caminho. Não é este o caminho. Quem fabrica tem toda uma metodologia, um raciocínio, uma forma de ver as coisas, que não é a da mesma pessoa que está a fazer uma marca. A marca é uma coisa sensitiva. São processos diferentes. Não faz sentido querer juntar ambos os objetivos numa coisa só.
Em março de 2002 (na apresentação da coleção de outono-inverno 2002/2003), a marca Nuno Gama renasceu centralizada em moda masculina. Há uns meses, desafiado pela revista Men’s Health a definir o que é a masculinidade hoje disse: “a masculinidade tem passado por dias confusos”. O que queria dizer com isto?
A nossa vida mudou e evoluiu de tal forma que temos outras necessidades completamente diferentes. As mulheres emanciparam-se, libertaram-se, conquistaram todo um novo espaço de libertação do machismo. Isto fez com que tudo evoluísse imenso. E não só, a pandemia fechou-nos, obrigou-nos a recuar ao nosso íntimo, à nossa origem, à nossa autenticidade. E acho que há toda uma nova geração que se libertou de imensa coisa, que não quer viver na mentira, sem autenticidade. Não se importam se têm um pelo na cabeça, ou três pelos na cabeça, ou se a saia é curta. Isso já não interessa para nada. O que estamos a procurar hoje em dia, e o que se subvalorizou nestes últimos anos, é o ser humano. A vida diz respeito a cada um. Não faz sentido andarmos aqui apontar se alguém tem uma manga cor-de-rosa e o cor-de-rosa é das meninas. Mas porque é que uma cor pertence a alguém? Isto não faz sentido. São regras extremamente rígidas e muito violentas para algumas das pessoas. Os direitos têm que ser equilibrados. Isso é que torna a vida extremamente interessante, que é de repente… imagina, ouvirmos várias pessoas cantar fado da mesma maneira, ouvirmos músicas diferentes, ouvirmos ritmos diferentes, haver vinhos diferentes, comidas diferentes. A diferença é que é a nossa maior riqueza, acho eu. É difícil, às vezes, para algumas pessoas que não têm acompanhado essa evolução fazerem parte da dela, porque não estão preparadas. Uma pessoa que teve uma educação extremamente formal, religiosa, católica, tem mais dificuldade em acompanhar as novas correntes sociais das grandes cidades do mundo.
É o seu caso?
Não sei, o ser humano é extremamente fascinante para mim. Gosto muito das pessoas, de as ouvir, de as tentar perceber. Sou curioso na matéria, se calhar tenho aqui uma vertente psico-filosófica. Isso faz parte do fenómeno de perceber os corpos que habitam as peças de roupa de alguma forma. Sem isso as coisas não fazem sentido para mim. Se a grande maioria dos meus clientes anda no ginásio, à partida tem um corpo cuidado, se tem um corpo cuidado, não querem andar de burka a escondê-lo de certeza. Querem-no mostrar ou querem-no valorizar, pelo menos. Perceber estes fenómenos sociais, de alguma forma, é importante porque depois o resultado do que vou fazer tem a ver com tudo isso. É quase uma resposta à informação que vou absorvendo.
Definiu-se “curioso”, há pouco disse que se sentia “livre”. Que curiosidades pode revelar sobre esse desfile livre que vai mostrar no dia 21 de outubro?
Penso que não é uma afirmação, é um pensamento aberto às pessoas, de alguma forma. Felizmente, fui criado com muito amor. Este fim de semana estive na Arrábida, no nosso ventre materno, familiar, de alguma forma, e voltei a relembrar essas coisas todas… Sou um privilegiado por ter tido os pais, os tios, os primos, os avós, toda aquela gente que estava à nossa volta e que eram pessoas exemplares. Mais do que dizer, eram pessoas que faziam, praticavam. As pessoas tinham tempo para explicar. Continuo a acreditar no amor. Acho que a coisa mais genial que existe na face do universo é realmente o amor. Não faz sentido para mim confrontar ninguém com a minha forma de pensar. Não faz sentido vender um livro, um pacote de enciclopédia ou de uma teoria de que a vida é desta maneira. Não. Neste momento penso isto. Neste momento, nesta fase da minha vida, estou aqui. E vou compartilhar isso com as outras pessoas.
Disse-me que estava a trabalhar com o artista plástico José de Guimarães.
Sim, estou a fazer um trabalho com o mestre José de Guimarães e encontro aqui um paralelismo com quando o artista se confronta com a tela branca. O que vou dizer? O que vou pôr ali? O que vou fazer? Este diálogo que é uma coisa que nos ultrapassa de alguma forma, que vem cá das nossas entranhas, na maior parte das vezes. E é esta procura, desta leitura, o que vamos fazer no Castelo, de alguma forma.
Em que se materializa este diálogo?
Pegámos alguns trabalhos, algumas das obras de José de Guimarães e vamos passá-las para a roupa. É um projeto paralelo, que é um projeto que não é meu. É uma ideia do Pedro Jaime Vasconcelos, que começou com lenços de seda e agora as coisas evoluíram. Há pessoas que me perguntam: “como é que tu encaixas Afonso Henriques com José Guimarães?” É isso mesmo. É essa a magia! Há algo aqui que é um estado de amor absoluto, solto, desprendido de tudo o que não interessa e que faz com que venha de espada por aí abaixo e que conquiste o país assim. Como faz com quem agarre na tela e pinte a tela, de alguma forma. É essa história que vou contar. Essa história é a minha história. O que nós somos, o que continuamos a ser, o que vamos ser amanhã.