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Tal como outras ditaduras, também o Estado Novo preconizava um ideal de mulher. Remetidas para a esfera da casa e da família, as mulheres eram educadas desde a infância a serem submissas ao poder patriarcal do pai, dos irmãos e, mais tarde, do marido. O único futuro que poderiam ambicionar era o de fazer um bom casamento. Até 25 de Abril de 1974, muitas sonharam com futuros alternativos, mas poucas conseguiram fazê-lo. Era preciso evitar o protesto, a contestação, a reivindicação, tudo o que pudesse ser interpretado como uma manifestação de ideias subversivas.
“A cultura assusta muito. É uma coisa apavorante para os ditadores”, escreveu António Lobo Antunes, e as mulheres da cultura, num contexto de tensão com os valores conservadores da ideologia do Estado Novo, que as remetia para o papel de mães e esposas, tiveram de forjar formas de resistência se queriam ousar sonhar com um Portugal diferente. Nelas perdura a lembrança da censura, da repressão política, do controlo ideológico. Abaixo, as memórias da cantora Simone de Oliveira, da atriz Maria do Céu Guerra, e da pintora Gracinda Candeias, sobre aquele tempo — e o dia que anunciou o que veio depois.
Simone de Oliveira, cantora
A 31 de março de 1969, Simone de Oliveira chegava a Estação de Santa Apolónia depois da final do Festival Eurovisão da Canção. À sua espera estava uma reação apoteótica: milhares de pessoas quiseram receber a mulher que cantava os versos “Eira de milho luar de Agosto quem faz um filho fá-lo por gosto” num tempo de apologia ao recato e diabolização do prazer femininos.
A Desfolhada Portuguesa, o tema que representou Portugal na final do festival em Madrid nesse ano, escandalizou os mais conservadores setores portugueses, valeu-lhe insultos na rua. “Ainda hoje estou para perceber como é que a censura deixou passar…”, diz Simone de Oliveira, que “sabia que estava a pisar o risco”. “Levei a minha vida toda a pisar o risco. Então uma pessoa casa, leva tareias e foge? Tinha casado há três meses e pela Igreja. Eu nasci livre. Eu nasci livre e vou morrer livre.”
Se lhe diziam que não podia cantar certa música, pois era essa mesma que cantaria. Um poema dissidente? Poucas se atreveriam, mas Simone não hesitaria.”Nunca dei por problemas de censura porque sempre fiz o que queria”, diz. “Cantava o que queria. Ia para o Bairro Alto sozinha. Tinha um Laguna preto e ninguém lhe tocava”.
Sobre a música que caiu como pedrada no charco de uma nação puritana, diz: “Nunca me passou pela cabeça que a Desfolhada ganhasse. E de repente vira quase um hino do país neste momento”. Porquê? “Não sei. É um momento político já do marcelismo, havia ali já uma abertura e aquela frase era muito contundente. As mulheres não diziam aquela frase, as mulheres os maridos batiam e elas ficavam. E eu não.”
Foi só já em democracia que Simone, que além de cantora foi jornalista, locutora de continuidade, apresentadora de concursos e programas de televisão e rádio, soube que tinha uma ficha na PIDE, quando escreveram um livro sobre ela, confessa. “Achei sempre que um dia ia presa. Porque disse coisas horrorosas ao tempo.” Um tempo em que “era preciso olhar por cima do ombro”. “Coisa que nunca fiz. O grande drama da minha vida sempre foi ser assim”, diz, com o olhar penetrante. Só muito mais tarde também percebeu o que o seu divórcio simbolizou para uma geração de mulheres. “O divórcio só existiu depois do 25 de Abril. Eu fiquei ‘separada judicialmente’, estava assim no cartão de identidade, ‘porque o senhor me bateu em público’. Deu-me uma tareia monumental”, recorda, notando que foi a recuperar de violência doméstica que começou a cantar.
Durante muito tempo, Simone de Oliveira admite que considerava a censura um caso de “burrice”. “Não percebia porque cortavam certas coisas”. Mas foi à Eurovisão com o tema Sol de Inverno, em Nápoles, em 1965, e um jornalista italiano a interpelou. “Bandeira vencida, rasgada no chão. Isto é a vossa batalha perdida contra o Salazar?”. “Só aí é que eu chego lá. Respondi ‘penso que isto é uma conferencia de imprensa sobre canções e música, o senhor foi escalado para uma conferência política. Deve ser na mesma rua, três números abaixo’. Disse-me que eu era ‘muito esperta’.” Quando chegou, conta, tinha quatro pides à sua espera. “Fui uma rapariga muito requisitada”, gargalha.
Simone — assim, sem apelido, como tantas vezes é nomeada — recusou adotar o apelido do marido aquando do casamento. “Estava a assinar o nome e o senhor perguntou-me ‘e o resto?’ e eu disse: ‘qual resto?’. Este é o meu nome. Chamo-me Simone e canto cantigas, mais nada. Que é o que eu quero que ponham [na lápide] quando morrer.”
Mesmo com o perfil de mulher inconformista e assertiva, contrário aos valores preconizados pelo regime, Simone de Oliveira gozou de uma invulgar popularidade no contexto do Estado Novo e da ditadura. Mas o epíteto “artista do regime” está longe de lhe assentar. “Houve um senhor, que está vivo, que partiu os meus discos todos, em direto, na altura do 25 de Abril, porque eu era fascista. No Parque Mayer entrei num restaurante em que estavam pessoas e a quem eu ia dar um beijo e que viraram a cara porque eu era fascista. Sabia lá o que era ser fascista. Não havia outro Governo.”
Aos 86 anos, diz não ter grandes arrependimentos. “Talvez me arrependa de não ter sido a filha que os meus pais gostariam de ter tido.” O que seria isso? “Não ser a louca que eu sou… Mas pensando bem, acho que eles me achavam alguma graça.”
No dia 25 de Abril de 1974 estava em casa. Feita a sua revolução, foi na rádio e na televisão que assistiu à que faltava fazer.
Maria do Céu Guerra, atriz e encenadora
Quando o 25 de Abril aconteceu, a Casa da Comédia, um teatro que existia na zona das Janelas Verdes, em Lisboa, tinha em cartaz Doroteia, uma peça do brasileiro Nelson Rodrigues, com encenação de Morais e Castro. A atriz Maria do Céu Guerra, 80 anos, que fazia parte do elenco, não consegue precisar se houve récita. “Não me consigo lembrar se fizemos a peça ou não. Estava tão excitada, tão contente com o que estava a acontecer. Começou uma maré de esperança, de alegria, e a certeza que pelo menos três coisas iam acabar: a prisão política, a censura e a guerra.”
Com as atividades culturais controladas para evitar qualquer expressão que fosse contrária aos valores do regime, tudo era cuidadosamente revisto para garantir que não resistia conteúdo subversivo. “Havia uma perseguição muito fechada tudo o que era atividades culturais, estudantis, artísticas. As pessoas estavam fartas. O 25 de Abril foi uma explosão”, recorda.
A principal forma de censura sobre o teatro durante o Estado Novo era através da censura prévia. Os textos eram analisados por censores, que faziam cortes e sugestões de mudanças. “Era normalmente pelo texto que se via se o espetáculo ia ser autorizado ou não. Depois, começou a haver recurso. Pagava-se um ‘x’ e pedia-se recurso com outros censores, com argumentação. Às vezes, vinha autorizado com cortes, outras vezes não vinha autorizado. Não me lembro de alguma vez ter vindo só autorizado”.
Qualquer conotação social, política, religiosa ou erótica, assim como alguns textos clássicos dramáticos estrangeiros ficavam de fora (a Revolução ditou uma explosão de Brecht nos teatros portugueses, por exemplo). Só que rapidamente se tornou evidente que “ler teatro é uma coisa complicada”, nota Céu Guerra. “Eles, às vezes, não percebiam, porque não era só as falas, era o comportamento ou a maneira como a pessoa vem vestida. Então, mudaram.” Mudaram a forma de censurar. “Não chegava já o livro, não chegava já o texto. Era preciso o texto, o pedido da leitura, sobre a leitura tinha que vir uma opinião, uma autorização ou a dúvida e, três ou quatro dias antes da estreia, os censores vinham em grupo ver aquilo que seria um ensaio geral”, explica a artista. “Era uma coisa violentíssima, porque ninguém conseguia pagar uma encenação, um elenco, uma roupa, uma cenografia, sem a certeza, com aquelas dúvidas todas. E com as possibilidades todas dos censores dizerem não.” Havia ainda outras nuances, como “números que só podiam ir à cena em Lisboa, não podiam ir à província porque eram considerados muito provocadores e podiam excitar os ânimos.”
Entre os vários episódios de censura nos palcos, Maria do Céu Guerra recorda a proibição de A Noite dos Assassinos, do importante dramaturgo cubano José Triana, um texto revolucionário que o Teatro Experimental de Cascais produziu em 1970. Reza a história que a peça não chegou a ir a cena, por proibição da censura no dia do ensaio geral. Afinal, a encenação de Jorge Listopad aconteceu temporariamente à porta fechada. “Estivemos para aí 15 dias a fazer o espetáculo sem ninguém saber. Só acabou por ser obrigatoriamente fechado porque houve um crítico que inadvertidamente disse que tinha visto aquela peça”, conta ao Observador.
No meio teatral havia um clima de resistência, sublinha a artista. “É preciso que se perceba que no teatro estávamos há muito tempo a contestar tudo o que acontecia. Praticamente toda a gente assinava os abaixo-assinados a exigir o fim da censura. Mesmo sabendo que podíamos ser chamados à PIDE e ser presos”. Maria do Céu Guerra admite que foi à PIDE “várias vezes.”
É ainda sob o manto da censura que a atriz protagoniza O Mal-Amado (1973), de Fernando Matos Silva, o último filme português a ser proibido pela censura e o primeiro filme português a ser estreado depois do 25 de Abril de 1974, nota a folha de sala da Cinemateca Portuguesa, em 2020. A crítica social encapsulada na figura de um jovem que procura romper com a sua classe, a ela voltando sempre, tendo como cenário o bairro de Campo de Ourique não colheu o elogios da crítica censória. Um desfecho previsível que não a impediu de querer levar o projeto avante. “Sabíamos que ia ser [proibido]. Mas aquele grupo… Era um grupo muito engraçado. Tinham estado na guerra. Tinham vivido a guerra. Eles estavam muito informados. E eram de esquerda”, ri.
A película viria a ser exibida poucos dias depois do golpe militar. Na pequena sala estúdio do Cinema Monumental, em Lisboa, houve lágrimas e abraços. “Uma senhora veio-nos dar os parabéns. É fantástico, vocês fizeram isto num instante! (risos)”.
Pela revolução cultural que significou o fim da ditadura, Maria do Céu Guerra não tem pudor em dizer: “O 26 foi o dia para mim mais extraordinário porque foi o dia em que foi anunciado o fim da censura”. Foi o levantar do pano que mudou o teatro, com o repertório a abrir-se a novos autores e as companhias a poder encenar o que durante tanto tempo lhes esteve proibido. Companhias como o Teatro Experimental do Porto (1955), o Teatro Experimental de Cascais (1965) , a Comuna (1971), a Cornucópia (1971) ou a Seiva Trupe (1973), já provavam que era possível fugir às malhas da PIDE, mas coisa distinta era criar em plena liberdade. E Maria do Céu Guerra, que vinda do teatro universitário, um espaços altamente politizado que utilizava as peças como forma de denuncia da ditadura e da guerra Colonial, sabia que, quando chegasse a sua hora de organizar as tropas, queria fazê-lo plenamente livre.
“Já tínhamos falado muito entre amigos, que tínhamos estado juntos em companhias e que nos dávamos bem. Mas eu não queria fazer com censura. Dizia: ‘logo que esta porcaria acabe, logo que esta porcaria abrande, quero fazer um grupo'”. Dito e feito. “Quando veio o fim da censura, disse aos meus amigos: ‘agora é que é’.” Um ano depois da Revolução, nasce a companhia de teatro A Barraca.
Gracinda Candeias, pintora
Ia ao volante de um Fiat 500 quando os militares a detiveram à chegada ao Marquês do Pombal, em Lisboa. Gracinda Candeias ouvira na rádio que havia uma revolução, mas, na manhã de 25 de abril de 1974, tinha uma aula para dar no Conservatório Nacional, no Bairro Alto. Cortadas as estradas, a pintora e então professora parou o carro e seguiu a pé. “Quando chego aqui vejo a minha secretária e as carteiras dos alunos, tudo aqui na rua”, recorda hoje, aos 77 anos, diante do antigo Convento dos Caetanos onde lecionava Educação Visual. Se não fosse aquela aula a que insistira não faltar não estaria no coração da Revolução de Abril. “O [poeta e artista plástico E. M. de] Melo e Castro puxa-me pela mão e diz-me: ‘anda cá, miúda, vamos assistir à prisão do Caetano!’ Fomos para o Largo do Carmo e assisti a tudo. Aquela confusão toda, tudo aos berros, tudo aos gritos. Digo assim: bem, agora ninguém se deita, não é?”
Gracinda viveu a euforia do dia, mas sem a libertação de uma mordaça. Explica: “Eu já era rebelde. As conquistas de liberdade já as tinha feito, mas com prejuízos… Fui ameaçada de prisão. Corri alguns riscos.” Nascida em Luanda em 1947, filha de pai pintor, Gracinda Candeias começou cedo a brincar com aguarelas. “A minha mãe disse-me: ‘não te vou custear esse curso, para desgraçado já basta um cá em casa’”, recorda. Foi através de uma bolsa do Governo de Angola que a autora dos milhares de azulejos que embelezam a estação de metro do Martim Moniz, em Lisboa, deu os primeiros passos.
A moral puritana, tradicional e conservadora do Estado Novo desencorajava tudo o que fosse mundano e cosmopolita. Algo pouco condizente com sede do mundo e “língua solta” de uma jovem que “passava as aulas todas a contestar”. “Tive umas seis ordens de expulsão na escola. O diretor, por sorte minha, era uma cabeça muito aberta”, e mesmo quando os professores a interditaram, ele saiu em sua defesa. Tratava-se do arquiteto e pedagogo Carlos Ramos (1897-1969), que na direção da Escola Superior de Belas-Artes (ESBAP), no Porto, conseguia “criar e manter, longe do estreito espartilho ideológico do Estado Novo, um microcosmos profícuo para a afirmação de uma consciência social e política”, “à custa de cedências, compromissos e pontuais ambiguidades numa delicada diplomacia”, lê-se numa nota biográfica na página do Instituto Camões. Só por isso é que em 1969 Gracinda Candeias terminou o curso na cidade Invicta, ainda que em quatro anos em vez de cinco. “Os meus pais foram-me buscar com uma carta a dizer ‘a sua filha já pode ser professora’. Só mais tarde é que soube porque é que os meus pais me foram lá buscar [mais cedo]. No fundo, fui dada como doidinha porque contestava. Naquela altura era uma coisa impensável uma mulher nos anos 60 contestar alguma coisa.”
Começou a viajar, sobretudo para Londres, de onde trazia hot pants na mala e um mundo de referências, de Twiggy a Mary Quant. “Aqui não havia nada, era tudo cinzento, preto. Eu gostava era de cores”, diz. A sua exuberância deu nas vistas numa apresentação de um livro de Ary dos Santos numa livraria clandestina onde havia liberdade para ler e pensar. Conta Gracinda que é o poeta que pega a miúda colorida pela mão e lhe apresenta aqueles que viriam a revelar-se fundamentais para o seu percurso na capital. “Quem é que ele me apresenta? A Natália Correia, o David Mourão-Ferreira, o Alexandre O’Neill. Resultado: comecei a andar com eles. Foi esse grupo, que depois me apresentou a outras pessoas, como o Mário Viegas, o António Variações. Na verdade fui apoiada por um grupo que coloriu um pouco o cinza de Portugal.”
Se o papel das artes é agitar, subverter e muitas vezes provocar, assim não era num tempo de ditadura, em que, no caso das mulheres, se recomendava a delicadeza dos modos, a graciosidade dos gestos, a discrição. “Tive dois anjos que me protegeram, porque eu sempre tive a boca solta. Dizia o que pensava, e havia os pides por todo o lado”, admite Gracinda. Tinham um código. “Na Brasileira do Chiado estava sempre lá um guarda-chuva, que era um pide. Os velhotes diziam: ‘cuidado, temos aqui guarda-chuva’, e a gente acalmava. Falávamos contra a ditadura, contra isto tudo.”
Entre os vários “anjos da guarda” nomeia Ilda Reis (1923-1998), artista plástica, primeira mulher de José Saramago, que conheceu quando estudava gravura. “Ela dizia-me: ‘tu não podes dizer aquilo que pensas, ainda podes ser presa, com esta atitude, tu ainda vais presa’. Mas eu era uma despistada, dizia tudo o que pensava. Ela protegeu-me muito.” Outro era Calvete Magalhães, diretor da escola onde dava aulas, pioneiro da educação pela Arte em Portugal. “Com o Salazar e o Calvete Magalhães havia assim umas trocas que eu não lhe sei explicar… Políticas…”, explica ao Observador, sem se adiantar. Só isso explica, acredita, o facto de, naquela escola na Rua dos Caetanos, no Bairro Alto, “nos sentirmos em liberdade”.
Só que após a Revolução, foi promulgada uma determinação oficial que fazia cessar todos os cargos diretivos nas escolas, implicando o regresso dos docentes destacados nessas funções aos respetivos locais de origem. Calvet de Magalhães não suportou sair do projeto a que dedicara a maior parte da sua vida e suicidou-se nas instalações da escola. “Para mim foi uma machadada tão grande, fiquei tão triste, nunca mais concorri para a Francisco Arruda e nunca mais passei por aqui. Há 50 anos que não pisava este chão. Foi um choque, nunca mais gostei de dar aulas, nunca mais. Porque era de uma liberdade, de uma autenticidade que não tinha nada a ver com o resto”, lembra.
Gracinda Candeias não tem dúvidas que o 25 de Abril foi um ponto de viragem na arte portuguesa. “Vivemos um clima eufórico durante dois anos”, recorda. “Nós na altura não podíamos fazer nenhum risco na parede, era proibido pela ditadura. E, de repente, fomos os primeiros a fazer murais e a fazer hoje o que se chama arte urbana”, recorda sobre o rescaldo da Revolução, em que andou durante dois anos a pintar murais que exaltavam a liberdade, numa Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica, do programa do Movimento das Forças Armadas (MFA), conduzido pelo Capitão Francisco Faria Paulino. “Andamos para aí dois anos a pintar murais, só nos davam as tintas e o rancho para comer, mais nada. Andávamos na camioneta com os militares, reuníamos com o Faria Paulino. Em Évora fizemos um mural enorme”. “A terra a quem a trabalha”, lia-se no painel do qual não restam mais do que memórias e poucas fotografias. “Foi há 50 anos, as tintas não eram o que hoje se faz para aí.”
Vencedora do Prémio Pintora do Ano em 1982, bolseira da Fundação Gulbenkian, viveu em Paris entre 1986 e 1988, onde teve como tutores Júlio Pomar e Eduardo Luis. Aos 77 anos, olha para trás e reconhece a sua atitude como “ousada”. “Mas recuando no tempo acho que fazia a mesma coisa. Tudo o que faço tem sempre por trás uma razão muito forte. É uma vivência fortíssima. A minha atitude plástica é o reflexo daquilo que eu acredito e daquilo que sou. Sou rebelde”, diz. Nas décadas de 1970 e 1980, escandalizaria com as suas performances, as suas obras chegariam à imprensa. “Em 1978, vim nas primeiras páginas dos jornais. Diziam ‘foi aos Coruchéus pintar um homem nu'”, referindo-se às suas telas em que ilustra o corpo de Michel Rebiffe – ou apenas Michel, como é conhecido –, percursor do sapateado em Portugal. “Até os meus colegas artistas, quando eu apresentei body art, disseram-me frases machistas”, lembra. “Aí percebi: a liberdade, afinal, não existe. É preciso nascer liberto.”
Artigo atualizado às 15h de 26 de abril de 2024 para retificar que a peça A Noite dos Assassinos foi levada à cena no TEC em 1970, e não em 1973, e a encenação era de Jorge Listopad e não de Carlos Avilez.