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Os grandes processos revolucionários podem não começar hoje por aparatosas conquistas de “Bastilhas” ou golpes-de-mão em “Palácios de Inverno”, mas continuam a ser processos e a ser revolucionários, ainda que evoluam de forma mais insidiosa e diluída no tempo. E triunfam quando, entre outras coisas, o adversário a submeter começa a usar o normativo e o léxico revolucionários, após um persistente combate travado no terreno cultural e mediático. Até porque, no seu afã de procurar repelir o acosso contrário, mostrando-se tolerantes e abertos ao mundo, os porta-estandartes das forças a apear pelos revolucionários não vêem qualquer problema em condescender na linguagem e até nos conceitos, quais Troianos perante o imprevisto Cavalo. Utilizando a manipulação da linguagem como arma política, as forças revolucionárias subversivas acabam por controlar, quando não absorver, o adversário, sub-repticiamente convertido à sua mundivisão fracturante pelo léxico.
Em 1920, no II Congresso da sua Internacional, os comunistas, ainda surpreendidos e frustrados pela reacção à sua tentativa de hegemonia revolucionária em Itália, elegem o “fascismo”, ainda restringido ao país de origem, como o principal inimigo a abater. Fora a própria secretária-geral da Comissão Executiva da KomIntern, Angelica Balabanova, que, tendo sido íntima de Benito Mussolini no Partido Socialista Italiano, alertara o Congresso para o perigo emergente. Mas será no IV Congresso, em 1922, que o conceito de fascismo será hiperbolicamente alargado como “a guarda avançada da contra-revolução burguesa”. Entendia o Congresso que o que caracterizava o “fascismo” era que os seus dirigentes não só “formavam organizações de combate contra-revolucionárias, armadas até aos dentes”, mas também “tentavam usar a demagogia social para ganhar o apoio das massas: nos camponeses, na pequena burguesia e mesmo em certos sectores do proletariado”.
Encurralados na sua abordagem dicotómica à divisão social (burguesia vs. proletariado) e de que só Gramsci os irá libertar, para os comunistas o “fascismo” era a “expressão mais penetrante da ofensiva política da burguesia contra o proletariado, de mãos dadas com a ofensiva económica do capital”. Estavam convencidos de que no pós-Grande Guerra se vivia no fio da navalha, numa altura em que “a degradação dos níveis de vida afectava já a classe média” e punha em causa o seu papel como instrumento-tampão e de controlo social. Para eles a emergência do fascismo correspondia à “ditadura terrorista do grande capital, inexorável canto do cisne da sociedade burguesa”. No seu entendimento, a democracia era apenas uma ilusão “demo-fascista”, não passando, na realidade, de uma expressão cosmética da ditadura da burguesia. E esse é o enquadramento do fascismo que tão tacanha aceitação tem entre muitos jornalistas, politólogos e até historiadores.
Contrariamente ao que nos é ensinado, a II Guerra Mundial teve fundas razões geopolíticas, mais que ideológicas. Mas o seu resultado acabou por definir o “lado certo da História”, a que a maioria das pessoas quer geralmente pertencer. Perante a complacência das democracias, inebriadas de vitória, a máquina de propaganda soviética foi paulatinamente impondo a sua narrativa histórica, com uma metodológica fabricação de mitos e da sua inculcação conceptual e lexical. E é assim que “fascismo” acabou a significar para a grande maioria das pessoas o conceito imposto pela Internacional Comunista. Ou seja, em termos práticos, tudo o que denodadamente se lhes opunha. Para o caixote do lixo da História ficava o que verdadeiramente fora o fascismo: a corporização política da reacção de ex-combatentes italianos da Grande Guerra que, formando um conglomerado heterogéneo de revolucionários socialistas, nacionalistas utópicos e sindicalistas sorelianos de inclinação nacional, se haviam oposto pela força ao avanço das vanguardas comunistas.
Jaime Nogueira Pinto escreveu recentemente no Observador um artigo intitulado O Século de Salazar em que reconhece no reservado lente de Coimbra o mais marcante protagonista do século XX em Portugal. A narrativa histórica actual atribui ao homem que esteve à frente dos destinos de Portugal 36 anos (e não 48) todos os males passados, presentes e futuros do país, desde o facto da sinagoga de Lisboa não poder dar para o exterior (Salazar tinha 15 anos em 1904) à proibição da comercialização da Coca-Cola (decisão do Dr. Ricardo Jorge nos anos 20) ou mesmo a “Campanha do Trigo”. Esta foi de facto implementada no Outono de 1929 pelo coronel Henrique Linhares de Lima (ministro da Agricultura no governo chefiado pelo general Artur Ivens Ferraz), inspirado na bataglia del grano fascista, coincidindo aliás com a tese sobre a questão agrária aprovada no I Congresso do PCP em 1923. Para mais vincadamente o diabolizarem marcaram Salazar com o labéu de fascista, bloqueando qualquer veleidade de perscrutar a sua verdadeira natureza e personalidade.
Na realidade, contrariamente ao que a vulgata histórica contemporânea ensina, Salazar não partilhava dos gostos fascistas, nem estéticos nem éticos. Até porque na construção do Estado, espinha dorsal da sua concepção imperial, os fascistas eram instrumentalmente corporativos, autoritários mas laicistas. Salazar detestava a turbulência e o convívio com as multidões. Não apreciava as coreografias de massas, nem morria de amores pela exaltação modernista do progresso mecânico. Como lembra Goulart Nogueira no seu artigo Salazar: para um retrato de futuro, na revista Vanguarda, em Setembro de 1970, ao “viver perigosamente” de Mussolini opunha Salazar o “viver habitualmente”.
Segundo aquele intelectual, um fascista assumido, para Salazar “o país, as gentes, a alma fiariam, guardariam rebanhos, aplicar-se-iam em gabinetes burocráticos numa felicidade sem sobressaltos nem ambições, trabalhando, comendo e rezando, numa vida provincial e provinciana.” Para ele, “havia em Salazar um fundo providencialista bem arreigado: Deus velará, Deus disporá e resguardará. […] A privação de rasgos de entusiasmo e de campanhas povoadoras, lançava-nos em um alheamento que resultou no apego à burocracia, ao governo que está (em vez de às ideias que iluminam, aquecem e alimentam). O dia-a-dia, o quotidiano, o habitualmente desembocaram numa recusa de “preparar o futuro”, numa crença de que as instituições de pequeno quotidiano, a sensatez popular, a moderação dos governantes de momento afiançavam continuidades para além de quaisquer golpezitos de transição; com a Providência Divina sempre velando.”
Como aparece Salazar na História?
Como um dos muitos frutos que a sementeira da encíclica Rerum Novarum produzira no mundo católico português, o CADC – Centro Académico de Democracia Cristã fora fundado em Coimbra, em 1901, como resposta organizada ao agravamento da “questão religiosa” pelas medidas anticlericais adoptadas pelo governo de Hintze Ribeiro, com o apoio do Rei. Com a revolução de 5 de Outubro, o CADC foi desmantelado e a sua sede saqueada e encerrada. Contudo, reabriu pouco depois, mantendo um low-profile, até que a 1 de Fevereiro de 1911 foi obrigado a interromper a sua actividade, depois de ter tido a sede, na Rua dos Coutinhos, em Coimbra, novamente assaltada e vandalizada por “malta vária”, com gritos de “viva a República!”. O fito do ataque era evitar que o militante católico Alberto Pinheiro Torres e o icónico poeta anticlerical Gomes Leal, convertido ao catolicismo em fins de 1909, “dispusessem de palco” para uma hipotética conferência. Na ocasião, O Século afirmara que “o povo de Coimbra, provocado pelos reaccionários, destrói-lhes as igrejinhas”.
Em 22 de Fevereiro de 1912, numa onda de resistência e ressurgimento, surge o periódico de combate – O Imparcial. Era dirigido por Manuel Gonçalves Cerejeira, com o apoio de Francisco Veloso, e gerido por Alberto Carneiro de Mesquita. Em Novembro desse ano o novo jornal anuncia que o CADC vai retomar o seu funcionamento, o que efectivamente acontecerá a 8 de Dezembro de 1912. A notícia surgia alguns dias depois da divulgação de um apelo do prestigiado bispo da Guarda, D. Manuel Vieira de Matos para que os católicos empreendessem actividades políticas, sociais e culturais; o prelado, que se encontrava então no desterro, inspirava-se para isso na experiência dos católicos alemães.
Na sessão solene que celebrou a reabertura do CADC, além de Alberto Dinis da Fonseca, e dos estudantes João Ramos de Castro e Ferrand Pimentel de Almeida, usou igualmente da palavra um estudante de Direito, então com vinte e três anos, António de Oliveira Salazar, apresentando-se como um “obediente soldado democrata-cristão”. Sobre o país e a pretensa democracia afirma então que “não há democracia quando uma fracção do povo domina a sociedade com a exclusão dos demais. Um tal regime não é democrático senão de nome. De facto, é quando muito uma oligarquia, quer a classe preponderante seja numerosa ou restrita, elevada ou baixa. Uma verdadeira democracia deve conter com tolerância todos os homens.” E concluirá que “não há incompatibilidade entre catolicismo e democracia”; parafraseando o pensador e político brasileiro Afonso Pena, clamará o mote: “Deus, Pátria, Liberdade, Família”.
Já antes, na festa do dia da Restauração de 1909, o jovem Salazar proferira uma conferência no Liceu de Viseu, posteriormente publicada no jornal local A Folha, em que afirmara: “Grande obra é moldar uma alma! Extraordinária obra é formar um carácter, um indivíduo – um corpo, uma inteligência e uma vontade –, como os precisa para ser grande este pobre País de Portugal”. Com 18 anos, em 2 de Abril de 1908, publicara o seu primeiro artigo de intervenção intitulado Vergonhoso Contraste, que Franco Nogueira classificaria como “um grito de indignação”. Ana Campina, na sua tese de doutoramento, um exercício de hermenêutica sobre o verdadeiro sentido das palavras de Salazar conjugadas no modo “Direitos Humanos”, salienta “como lhe agradava, especialmente até ter chegado ao poder, aparecer como consciência crítica da sociedade, isto é, como um intelectual, profunda e dolorosamente implicado nos problemas que afectavam o seu país, mais atento a resolver os problemas colectivos do que a procurar o próprio bem-estar, disposto ao sacrifício”. A Christine Garnier dirá mais tarde: “A felicidade é um estado de satisfação da alma, expressão de harmonia total entre as nossas aspirações e as realidades da vida. E por isso julgo mais simples atingir a felicidade pela renúncia do que pela procura e satisfação de necessidades sempre mais numerosas e intensas. A busca da felicidade exige, com efeito, supomos nós, um contínuo estado de insatisfação”.
A 22 de Março de 1914, um encontro de protesto de católicos de Coimbra, promovido pelo CADC, é violentamente atacado por formigas brancas, os trauliteiros do partido “democrático”. Desenrolava-se o evento na Igreja de São João de Almedina, estando presentes os principais militantes católicos da cidade, incluindo os activistas Diogo Pacheco de Amorim, Manuel Gonçalves Cerejeira e Salazar. Dois dias depois, na sequência da desordem e dos atropelos à lei virá a Lisboa uma delegação, em que Salazar se incluía, com o intuito de ser recebida pelo Governo, por membros do Parlamento e pelos principais jornais para os elucidarem do ocorrido. Na ocasião, o finalista de Direito, que em Abril iria fazer 25 anos, encontrou-se a sós com António José de Almeida, e também com Alberto da Veiga Simões, que lhe prometeram falar no Parlamento sobre o assunto. Supinamente irritado com a arbitrariedade do Governo, Salazar sai a terreiro defendendo a causa católica em dois artigos em O Imparcial: São João de Almedina: Ao Sr. Ministro da Justiça (n.º 102) e A Igreja de São João de Almedina (n.º 109). Sob o pseudónimo Alves da Silva, escreverá anda mais três artigos relacionados com o tema, mantendo uma abordagem estritamente jurídica.
Será com a participação activa do núcleo duro coimbrão do CADC que se irá organizar no Porto, nos primeiros dias de Maio de 1914, o I Congresso das Associações da Juventude Católica donde surgirá a Federação das Juventudes Católicas Portuguesas (FJCP). O Congresso reuniu-se sob a presidência de Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar, 2.º conde de Samodães e um dos co-fundadores com Jacinto Cândido do Partido Nacionalista, em 1903. Contou igualmente com a presença do bispo do Porto, D. António Barroso, recém-regressado do exílio que lhe fora imposto pelas autoridades jacobinas. As sessões desdobraram-se por três dias, tendo António Oliveira Salazar apresentado, na sessão magna, uma comunicação intitulada A democracia e a Igreja. Afirmou então que “uma democracia não pode subsistir quando concede privilégios a uma classe em detrimento de outras. Isto terá o nome de demagogia, que é incompatível com a Igreja, com a história, com a política e com a razão humana”. A FJCP era um ponto de partida para a resposta às solicitações do episcopado, assinaladamente expressas no “apelo de Santarém”, de 10 de Julho de 1913, para que os católicos participassem activamente na vida pública, defendendo a liberdade de culto e os direitos da Igreja.
Procurando conciliar “acção católica” com intervenção política, surgiu em Braga, após um congresso fundacional realizado a 8 de Agosto de 1915, o CCP – Centro Católico Português. Era um passo importante para o universo católico português, tradicionalmente desunido e plurifacetado quanto à militância, como o fiasco do Partido Nacionalista de Jacinto Cândido da Silva provara. Mas o novo projecto, embora ressuscitando a ideia geratriz de Cândido, surgia agora com novas roupagens e instrumentos culturais, repisando a via da democracia-cristã. O CCP foi inicialmente presidido por Alberto Pinheiro Torres, acompanhado na Comissão Central por Diogo Pacheco de Amorim que havia redigido o programa do movimento em conjunto com José de Almeida Correia, e por José Fernando de Sousa (Nemo, de seu pseudónimo jornalístico). Os três com visões diferentes sobre o combate a travar. Pinheiro Torres hesitava sobre a exclusividade da ligação aos monárquicos, equacionando buscar nos republicanos moderados o apoio para atingir o desiderato a que se propunham, a saber, o “restabelecimento das relações com a Santa Sé, a liberdade de ensino e a liberdade de consciência e de culto”. Fernando de Sousa ia mais longe; para ele, o “parlamentarismo estava falido”, reacendia-se “o culto da Tradição” e os católicos “não podiam perder o comboio”. Entendia que a questão era cada vez mais ideológica e menos táctica pelo que havia que trabalhar em conjunto. Outros, entre os quais Salazar, mais centristas, adoptavam um posicionamento menos conflituante com o poder e viam na “doutrina social da Igreja”, o instrumento mais interessante para a intervenção política.
Durante a Grande Guerra, quer para os católicos, quer para os monárquicos com que muitos se confundiam, vivia-se “uma hora grave”. Entre eles havia os entusiastas da Inglaterra, da França e dos Impérios Centrais, da prudente “neutralidade controlada”, da “paz a todo o custo” e, alguns poucos, da intervenção imediata na Guerra. A maioria, refém dos seus ideais tendencialmente nacionalistas, assumiria a posição patriótica de “defensores incondicionais dos mais altos interesses nacionais”. No debate, adoptariam particular protagonismo as gentes do CADC de Coimbra e o seu O Imparcial, em defesa de Deus e da Pátria. “Somos católicos e portugueses. Chegou a hora de entrarmos na luta? Que o diga o governo, e com a ajuda de Deus vamos para a luta”, proclamavam, acrescentando “quaisquer que sejam as nossas convicções políticas, ou as nossas ideias pessoais […] Saibam os dirigentes do país, os cruéis perseguidores da nossa Fé, que a mocidade católica está, desta vez, a seu lado.”
Os “interesses nacionais” eram definidos, em primeiro lugar, a partir do circunstancialmente expressivo agravamento do “perigo espanhol” que deveria levar a, “na hora, só curarmos do perigo da defesa sacrossanta da autonomia e da independência da Pátria”. Em segundo lugar, a defesa da “nossa África: a nossa intervenção na actual guerra deve tão-somente limitar-se a repelirmos as agressões, que nos preparem os inimigos. Nem um palmo de território português deve cair em poder de estrangeiros”, afirmava O Imparcial. Ou seja, as elites católicas assumiam perante a Guerra uma posição muito semelhante à que Manuel Brito Camacho defendia em A Lucta. A entrada na Guerra não repugnava aos membros do CADC, desde que fosse feita apenas para protecção do solo português; seria então necessária, e justificada, pela defesa dos “superiores interesses nacionais”.
Mas a gestão intervencionista de Afonso Costa deixara o país à beira da bancarrota e a carestia de bens de primeira necessidade tonou-se dramática. Faltava um caudilho que conseguisse agregar em torno de si todos os excluídos e rejeitados pela facção dos “democráticos”, desde os anarco-sindicalistas até aos católicos e aos monárquicos. E, em Dezembro de 1917, ele surgiu, providencialmente, na figura de um republicano unionista de 45 anos, antigo ministro do Fomento (Economia) e das Finanças dos primeiros governos da República e ex-representante de Portugal em Berlim – o major Sidónio Pais. Ele surgia aos olhos do povo como o “messias redentor” capaz de varrer do Poder a “corja de facciosos radicais, demagogos e malabaristas” parlamentares que haviam dividido e atirado o país para o plano inclinado da bancarrota. O Major praticava a antítese do comportamento dos “democráticos” que tinham tiranizado o país, fracturando-o, lançando uns contra outros. A sua ascensão foi um típico fenómeno que se aproximava do que hoje se designaria por bonapartismo. Sidónio possuía um “não sei quê”, uma “graça”, que inspirava nas massas, e não só, uma atracção que raiava a veneração.
As Aparições de Fátima tinham trazido ao país uma onda de devoção religiosa e renovação da Fé que animou e incentivou o proselitismo católico. A reconciliação com a Santa Sé alcançada por Sidónio, e que nem os “democráticos”, uma vez regressados ao poder, se atreveriam a questionar, trouxe alguma abertura e conforto à comunidade católica. Mas com a derrota do dezembrismo sidonista, regressou a sanha revanchista e demagógica dos “democráticos” que, amplificada pelos “adesivos” e “vira-casacas” do costume, levou a cabo um programa de “purificação” ideológica das estruturas do Estado. O regresso ao poder da ala radical da “esquerda democrática” e os ecos terríveis da revolução comunista russa iriam trazer novas preocupações.
Na onda de regressismo à supremacia do statu quo ante jacobino, nem a Universidade escapou à onda de saneamentos: em Coimbra, a 14 de Março de 1919, quatro lentes, Domingos Fezas Vital, Oliveira Salazar, João Magalhães Colaço e António Carneiro Pacheco são suspensos e afastados da Academia. Por solidariedade, quer os outros professores de Direito quer o Reitor, Joaquim Mendes dos Remédios, auto-suspendem-se. Para os substituir, por determinação do governador-civil de Coimbra, que invoca a vontade do ministro da Instrução da altura, Domingos Leite Pereira, são nomeados vários bacharéis de “absoluta confiança política da República”.
O Centro Católico Português (CCP) não ficara imune à febre dos reajustamentos políticos que as principais forças políticas experimentavam, quer movidas internamente pelas tensões pós-sidonistas quer externamente pelas convulsões revolucionárias do pós-guerra. No início de Novembro de 1919, o CCP iniciou o seu processo de reestruturação, elegendo para presidente o centrista António Lino Netto, acompanhado por uma Comissão Central de que faziam parte António Pereira Forjaz e José da Fonseca Garcia. Digno de nota é o afastamento de Pinheiro Torres e de José Fernando de Sousa (Nemo), membros da anterior Comissão mas marcados por uma intensa militância monárquica e significativamente influenciados pela Action Française. Em 22 de Novembro de 1919, já sob a presidência de Lino Netto, o CCP realiza o seu I Congresso, em Lisboa, nas instalações da Associação Católica, no Beco dos Apóstolos à Rua das Flores. Foi o chamado “congresso da reestruturação” e dele saiu um novo rumo para a maioria dos católicos engajados politicamente. A partir de 19 de Janeiro do ano seguinte, o CCP começará a publicar A União, que irá protagonizar uma série de polémicas com A Época, de Nemo, e A Monarquia, o órgão integralista.
A 10 de Julho de 1921, pela primeira vez os “democráticos” foram derrotados nas urnas, apesar de se ter voltado a usar o seu restritivo recenseamento eleitoral. Nesse sufrágio António de Oliveira Salazar foi eleito deputado por Guimarães, pelo Centro Católico. No dia 25 de Julho assumiu o seu assento parlamentar mas, implacavelmente disciplinado, regressou à Beira para gozar as férias já marcadas, preparando-se para retornar, e intervir, em Outubro. Mas não o pôde fazer porque entretanto triunfara o movimento revolucionário outubrista que, com o Terror à solta (o episódio da camioneta da morte foi apenas uma parte do que sucedeu), deixara uma sanguinolenta marca na sociedade portuguesa.
A 6 de Fevereiro de 1922, António Maria da Silva, antigo cabecilha da Carbonária, e então vice-grão-mestre do Grande Oriente Lusitano (GOL), assumiu o Governo do país. Dotado de uma inquestionável manha política, “honesto mobilizador de desonestos”, procurou desenvolver um pendor algo conciliador, de centro-esquerda. Consciente de que Portugal estava farto de tragédias, de violência e de instabilidade radical, mandou retirar à GNR as armas pesadas e obrigou-a a uma cura de emagrecimento, reduzindo-lhe os efectivos de cerca de 15 mil para menos de 10 mil homens. E dispersa os seus militares pela província procurando transformá-la de “guarda pretoriana” do regime em “polícia rural”. Em compensação, encostou-se ao Exército, que doravante será percebido como o garante da Ordem e da Autoridade na vertente interna. É provável que as alterações outubristas tenham calado fundo na consciência do velho conspirador carbonário, como acontecera efectivamente com Cunha Leal. Para ele, como para muitos correligionários seus, o inimigo interno mais perigoso já não eram os desavindos monárquicos ou os “caciques clericais” mas os “revolucionários vermelhos”, emuladores dos bolcheviques.
O governo do antigo carbonário Silva, na tentativa de fechar algumas frentes de acosso, já namoriscava com alguns sectores da Igreja. O jornal da ala mais jacobina dos “democráticos”, O Mundo, chega a elogiar o “comportamento leal dos católicos para com a República”, após uma intervenção de Salazar no II Congresso do CCP que decorrera no fim-de-semana de 29 de Abril de 1922, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Num discurso incisivo, Salazar criticou Fernando de Sousa que entendia não dever sacrificar as suas convicções políticas e o seu empenho na restauração monárquica por causa da militância católica. Ao afirmar o primado dos interesses da Igreja Católica face à questão do regime, Salazar apoiava então a posição centrista do presidente do CCP, Lino Netto.
Em 1924, em Coimbra, é criada a União Católica de Estudantes Portugueses, tendo Marcelo Caetano, Luís Lopes da Fonseca e Pedro Teotónio Pereira entre os seus fundadores. A situação social extremava-se e era terreno fértil para arrumações políticas. Nesse mesmo ano, em Julho, decorre em Braga o I Congresso Eucarístico Nacional, salientando-se Salazar com o seu discurso sobre a “Paz de Cristo na classe operária”. Eram tempos de incerteza e de nuvens negras que não prenunciavam nada de bom. Desconfiados dos “democráticos”, dos “liberais” e das várias cliques militares que ameaçavam revolta, o núcleo duro dos católicos de Coimbra, em que Salazar se incluía, remetia-se a “ver o Mondego passar da Lapa até ao Choupal”.
Os equívocos e as ambiguidades do 28 de Maio
A 28 de Maio de 1926 eclode um golpe castrense, como expressão manu militari de “uma grandiosa aspiração colectiva que abraçava a nação de lés-a-lés e a crucificava num desejo sublime de resgate”, como escreveu António de Cértima. O 28 de Maio “não resultou daquelas tenebrosas elaborações das alfurjas secretas dos partidos; não foi uma insubordinação militar, foi um levantamento nacional; não foi uma agressão, foi um protesto”, dirá. De entre os diversos grupos e personalidades que apoiaram, ab initio, o movimento do 28 de Maio é possível, incorrendo eventualmente nalguma redução, considerar três grandes linhas de força.
Um conjunto, bebendo na onda europeia dos nacionalismos autoritários, convictamente anti-demoliberal e com laivos anti plutocráticos e antioligárquicos, julgava necessária a criação de um movimento de massas e de uma organização miliciana que suportassem popularmente uma solução do tipo bonapartista. Tinham consciência da inevitável erosão de um poder de natureza exclusivamente militar pelo que haveria que disputar à esquerda o controlo do operariado, de modo a criar uma base de sustentação que lhes permitisse lançar-se à conquista integral do Estado. E procuravam recrutar entre os ex-combatentes traumatizados pela “guerra sem nexo”, entre os que repudiavam a ofensiva estatal anti-religiosa, no seio dos que ansiavam pela ordem, nos herdeiros da solução sidonista, ou pura e simplesmente nos nacionalistas que culpavam o parlamentarismo oligárquico pelo caos do país. Pelos seus contornos e praxis era a solução para-fascista.
Outro veio político, talvez no extremo oposto, era partilhado exactamente pelos defensores do demo-liberalismo constitucional que, apenas por razões circunstanciais e de praxis política, haviam ficado fartos da hegemonia iníqua e perversa dos “democráticos” que tinham vindo a eternizar-se no poder. Para eles, a Situação a sair do golpe só fazia sentido como um estado de excepção, capaz de permitir uma correcção “constitucionalista”, que até admitiam que fosse tendencialmente presidencialista, que garantisse um rotativismo sério e transparente, com o balancé do poder a oscilar periodicamente entre o seu próprio bloco e, eventualmente, os “democráticos”. Eram socialmente conservadores e politicamente liberais, sendo deles exemplo a ULR – União Liberal Republicana de Francisco da Cunha Leal.
O terceiro projecto organizava-se à volta de uma ecléctica solução de compromisso que não sentia ser necessário, nem sequer desejável, uma definição ideológica clara; bastava um ideário simples e inequívoco que funcionasse como denominador comum aglutinador. A sua natureza era pretensamente apolítica e mais de carácter cívico e social. O cimento de união sobre as potenciais divisões ideológicas era o “superior interesse nacional”, interpretado por um chefe que supriria, pelo seu carisma patriótico, a ausência do contrato social permanente forjado no debate dialéctico dos representantes eleitos, considerado pernicioso pelo seu historial recente. Aceitavam a estruturação do Estado com recurso ao modelo corporativo de inspiração católica e, na gestão governativa, privilegiavam as valências e as competências técnicas sobre as estritamente políticas.
A harmonização destes três vectores ou tendências nem sempre foi fácil, levando a um ranger, por vezes surdo, mas noutras ocasiões bem ruidoso, das engrenagens constituintes da Ditadura. Mas para todos, por distintas, e por vezes opostas, razões, era necessário forçar a mudança: os “regressistas” para o parlamentarismo, os defensores da solução mais autoritária para o verdadeiro poder marcial cesarista, e os mais moderados ou “centristas”, alicerçados na classe média, para uma enformação constitucionalizante do regime mas sem a desordem e a anarquia associadas ao passado recente. Além das evidentes contradições conceptuais, foi esta divisão que, de certo modo, explica o fracasso da formação de um movimento civil de sustentação do regime. Afinal, o regime ditatorial saído do pronunciamento de 28 de Maio parecia ter sido a praça pública de muitos equívocos.
No meio desse panorama que lhe era estranho, Salazar aparece de novo na política, pela mão não da solução fascizante mas sim da oposta, a dos liberais de Cunha Leal que tinham em José Mendes Cabeçadas o seu candidato ao poder. Com efeito, Cunha Leal, na sua obra Coisas de Tempos Idos: As Minhas Memórias, assume a responsabilidade pela recomendação do jovem professor de Coimbra (e igualmente de Mendes dos Remédios) ao comandante Cabeçadas. Juntamente com Manuel Rodrigues Júnior, como eram professores da universidade conimbricense e haviam merecido a simpatia dos oficiais sublevados mais jovens, que eram ou haviam sido seus alunos, ficaram jocosamente conhecidos na imprensa como a “Tuna de Coimbra”.
Quando se torna pública a constituição do novo Governo, muitos oficiais que esperavam estar representados no elenco executivo reagem mal à nomeação de civis. No quartel da Amadora, onde se instalara a 4 de Junho, Gomes da Costa reúne-se com os chefes militares afectos ao movimento, num cenário de assembleia revolucionária. E é lá que a “Tuna de Coimbra” se avista com Gomes da Costa, antes de tomar posse. Depois do encontro, Salazar, alegando um precário estado de saúde e invocando “conselho do médico”, resolve voltar para o Mondego enquanto os outros dois decidem ir para Lisboa e assumir o cargo.
Mas pressionado por Mendes dos Remédios, Salazar resolve aceitar a nomeação como ministro das Finanças. A 11 de Junho, a notícia é pública e no dia seguinte, Salazar, depois de se ter avistado com Cabeçadas, resolve tomar posse do cargo. Mas a intuição que o levara a afastar-se para Coimbra, desconfiado da instabilidade da situação, parecia dar razão aos seus receios e hesitações. O ambiente em Lisboa era febricitante e por todo o lado havia suspeitas, manobras de bastidores, intrigalhada. Cabeçadas, herói do 5 de Outubro, resistia, não se resignando a alinhar pela orientação maioritária do movimento militar, que exigia um corte abrupto e inequívoco com o passado político recente. “Sem reparar”, o comandante “encontrava-se dentro de uma Revolução a representar os inimigos dessa mesma Revolução”.
A 14 de Junho, Gomes da Costa desenvolve, em pleno Conselho de Ministros, um exercício de poder. Em nome do Exército, apresenta e submete à discussão um programa de doutrina e acção política, sob o título “Estatuto Político da Revolução Nacional”, em que se afirmavam as linhas mestras do pensamento regenerador do movimento. Mendes Cabeçadas reage com notório desconforto ao que considera um despropósito e uma desautorização. Não só a linha ideológica que constitui a espinha dorsal do documento se afasta bastante do seu republicanismo clássico como o tom e a oportunidade da apresentação lhe parecem resultar de uma calculada atitude de desafio pessoal. A situação tornou-se tensa e melindrosa.
Elevando a parada, assumindo-se como verdadeiro dono da revolução, o chefe do movimento militar enviou a Cabeçadas, na manhã de 17 de Junho, uma carta em que lhe retirava o apoio, acusando-o de se ter deixado perturbar e manietar por influências hostis ao movimento revolucionário” pelo que “me vejo assim dolorosamente coagido a desistir da colaboração de V. Ex.a no Governo, cuja presidência assumo a fim de evitar a discórdia que já principiava a fermentar”. Ou seja, o ministro prescindia da colaboração do chefe do Executivo e, na qualidade de chefe militar supremo, passava a assumir a liderança do mesmo. Numa situação altamente volátil e melindrosa, a tensão da espera foi grande, mas a meio da tarde Cabeçadas, “tendo verificado a impossibilidade de resistir à imposição” de Gomes da Costa, respondeu que deixava o Governo, acatando, aparentemente, a inusitada ordem de despejo.
Junto dos outros ministros que entretanto convocara para Sacavém, o General justifica o recurso ao braço-de-ferro com a oposição e obstrução sistemáticas de Cabeçadas às iniciativas do movimento. A “Tuna de Coimbra” fez chegar a Gomes da Costa a sua posição. Numa carta entregue por Manuel Rodrigues, e que parece ter sido escrita por Salazar, fazem saber ao General que lhe “depunham nas mãos os lugares que lhes confiaram, aguardando a solução definitiva do problema político”. Mendes dos Remédios e Salazar regressam a Coimbra e às aulas na Universidade; Manuel Rodrigues decide à última hora ficar em Lisboa para ver o que iria acontecer.
Salazar narrará pouco depois: “Não se pode fazer nada em política com o brilho das espadas ou o esgrimir das durindanas, se lhes faltar o brilho das concepções e o firme esgrimir do bom senso, em momentos difíceis e incertos como eram aqueles em que se encontrava a Nação. Então, logo no dia 17, fiz a minha mala, tomei o primeiro comboio para Coimbra e fui dar lições aos meus alunos. Regressou comigo o meu ilustre colega Doutor Mendes dos Remédios. Gomes da Costa ainda me mandou chamar pelo telefone, mas respondi que ia dar uma lição aos meus rapazes e depois faria uma ligação para a Presidência. Liguei, mas disseram-me que já tinham ministro das Finanças. Ai minha Nossa Senhora, que desta já estou livre!”
Em qualquer movimento triunfante, os primeiros tempos são sempre gastos no arrumar das facções e no apuramento de um chefe capaz de sobreviver aos outros. No comando executivo da revolução nacional ir-se-ão sucedendo vários protagonistas apoiantes do golpe. E o primeiro a cair foi o comandante Mendes Cabeçadas, acusado pelos outros de deslealdade por manter ligações activas com os próceres do poder deposto, enredado que estava nas teias republicanas tecidas pelos “filhos da viúva”, designação popular da Maçonaria. Mas, mais do que questões de protagonismo ou circunstanciais, o que os separava era sobretudo o que para cada um deles representava a essência do movimento militar. Quando Cabeçadas, a 1 de Junho de 1926, fora ao encontro de Gomes da Costa em Coimbra, nas manifestações públicas de concórdia dos dois líderes ficaram bem explícitas, paradoxalmente, as divergências de fundo que os separavam.
Enquanto o velho general, apesar da forma adventícia como aderira ao movimento, repudiava na íntegra o passado recente “da canalha que arrastou o país à situação em que se encontra”, para Cabeçadas o levantamento militar fora para repor a “genuinidade” das instituições “desrespeitadas pelos maus políticos que têm monopolizado o poder”. Para ele, ligado aos liberais constitucionais, a “coisa” tinha sido mais um golpe de Estado, cirúrgico e reparador. Para Manuel Gomes da Costa, a intervenção dos militares era em si mesma uma solução de continuidade, um corte revolucionário que exigia uma nova ética referencial e novas instituições. A sua linha de actuação política misturava a afirmação cesarista, tão cara aos integralistas, com uma vertente republicana de inspiração social radical.
Mas o abstruso processo revolucionário que saíra do 28 de Maio faria a sua segunda vítima de peso, desta vez o próprio Gomes da Costa. Ao forçar uma remodelação com o intuito de afastar alguns ministros conservadores do seu gabinete, acabaria ele mesmo por ter de se demitir perante o bloco de resistência formado por quase todos os outros membros do Governo. Estes tinham sido instigados discretamente por Sinel de Cordes, o verdadeiro cabecilha da facção conservadora do movimento. Na repressão que se seguiu, o periódico A Revolução Nacional, criado como órgão do sector mais bonapartista dos apoiantes de Gomes da Costa, com o tenente Armando Pinto Correia como director nominal (o verdadeiro parece ter sido Rolão Preto, sob os pseudónimos de Plures e Pluribus), foi suspenso, tendo sido detidos os seus responsáveis. Francisco Rolão Preto viu a partir daí a sua intervenção política impedida, censurada ou boicotada. O mesmo aconteceu a outros integralistas e ao fascista Francisco Homem Christo Filho, que entretanto regressara do exílio em França para voltar a ser expulso, agora pela gente da Situação.
A errática actuação de Gomes da Costa parecia incapaz de assegurar qualquer rumo programático, coerente e consistente à grande aventura da Revolução Nacional. Depois da autêntica trapalhada em que ele próprio se metera, o impulsivo general tentou contar espingardas que o apoiassem; quando percebeu que não conseguia reunir quase nenhumas rendeu-se à evidência. E a tropa elegia como novo líder e chefe do Executivo António Óscar de Fragoso Carmona, um conservador oficial de Cavalaria com velhas ligações aos círculos “livres-pensadores”.
Congregados face a um mesmo objectivo, a maioria dos oficiais do Exército e mesmo da Marinha, muitos deles da geração que havia participado na Grande Guerra e que se tinham sentido defraudados pelo logro dos governos de inspiração afonsista, apoiara sem rebuço a sublevação do 28 de Maio. A oficialidade estava farta dos políticos, a quem responsabilizava pelo atropelo das regras das promoções e colocações através do descarado favorecimento de amigos e correligionários e pela promoção da indisciplina nas fileiras. E estava agora atenta às manobras de deturpação do “pensamento que levara o Exército a efectuar o Movimento que acabava de triunfar, e de ficar o Governo do País entregue a indivíduos com os mesmos vícios políticos e morais de que temos sido vítimas”.
Mas para muitos a questão do regime traduzia-se mais num interregno do que numa abrupta solução de continuidade, como sempre fizeram questão de relembrar e mostrar, comemorando com pompa e circunstância todas as efemérides ligadas ao memorial republicano, nomeadamente o 5 de Outubro. Nem durante os períodos ditatoriais instituídos a seguir ao 28 de Maio nem durante o Estado Novo que lhes sucedeu as referências republicanas seriam questionadas. A título de exemplo, é de realçar que quer o monumento ao Marquês de Pombal, velha aspiração da Maçonaria, quer o do grande tribuno republicano e carbonário António José de Almeida foram inaugurados com pompa e circunstância pelo Estado Novo, em 13 de Maio de 1934 e 31 de Dezembro de 1937, respectivamente. E não houve alteração significativa de efemérides nem de toponímia urbana, ao contrário do que aconteceria após Abril de 1974.
Contudo, além do objectivo circunstancial, não havia entre os golpistas e entre os seus apoiantes qualquer identidade ideológica capaz de dar consistência e estabilidade política mínima ao novo poder. Carmona acabava por corresponder a uma determinada linha de força que pretendia reunir consequentemente o papel autoritário e firme das Forças Armadas com as posições do republicanismo conservador, apoiado pela maioria dos interesses económicos. O novo líder, mais um guardião do que um aspirante a ditador, gozava de prestígio em alguns círculos maçónicos e permitia que, do ponto de vista ideológico, tudo ficasse em aberto. Tanto poderia ocorrer um regresso à ordem constitucional anterior ao golpe, eventualmente com alguma correcção musculada, como a fundação de um novo sistema político.
Mas grupos mais radicais, em que pontificavam os chamados “tenentes do 28 de Maio”, muitos deles igualmente estudantes universitários, procuravam impor um caminho mais enérgico e fracturante. Para eles, Carmona, embora prestigiado, era essencialmente um oficial “palaciano”, tolhido “pela sua natural fidalguia”. Pouco depois da subjugação da revolta de Fevereiro de 1927, o tenente Assis Gonçalves afirmou na presença do vitorioso ministro da Guerra, Passos e Sousa, em quem muitos julgavam poder encontrar o condottiere que lhes faltava: “Temos o braço erguido, a espada ao alto, mas falta-nos uma cabeça que nos comande; temos uma vontade deliberada mas falta-nos um chefe que a dinamize”.
O dossier mais premente com que os executivos portugueses há muito se debatiam era o descalabro das contas públicas, sufocadas por um serviço da dívida contraída pelos “democráticos” para financiar a nossa entrada na Grande Guerra. O ministro das Finanças, Sinel de Cordes, pretendia contratar o empréstimo da avultada soma de 12 milhões de libras esterlinas. Estava convencido de que com esse dinheiro poderia equilibrar a balança de pagamentos, manter a estabilidade do Escudo e promover obras de fomento sem ter de forçar o equilíbrio orçamental. Mas a questão do empréstimo externo estava a tornar-se no pomo da discórdia no seio da Situação. E os jovens tenentes não queriam o velho João Ludovice Sinel de Cordes nas Finanças, que, como comentava Cunha Leal, “tinha alçado as despesas públicas ao nível do exagero”. Preferiam o comandante Filomeno da Câmara, académico de prestígio, ou em alternativa, apesar de civil, Salazar, o jovem professor de Coimbra, que Cabeçadas trouxera efemeramente para o Governo e de que muitos tinham sido alunos.
Além de Oliveira Salazar, com uma série de artigos publicados no Novidades, entre 30 de Novembro e 21 de Dezembro de 1927, também Cunha Leal analisou a questão, criticando publicamente as diligências de Sinel de Cordes, nomeadamente através de uma carta que dirigiu a Carmona e da qual O Século se fez eco. Na missiva, Cunha Leal afirmava que “o empréstimo seria sempre uma humilhação e um risco”, criando uma perigosa vulnerabilidade pela excessiva dependência externa em que o país se colocava; um pretexto há muito esperado para “nos roubarem os domínios coloniais, património sagrado que herdámos dos nossos maiores”.
Salazar, no princípio de Janeiro de 1928, retomaria o assunto no Novidades com mais um artigo sobre a questão do empréstimo externo e a política financeira do Governo. Dos artigos anteriores, no meio de algumas críticas a Sinel de Cordes, ainda se podia depreender que, por princípio, era favorável à obtenção do empréstimo, embora realçasse que havia que acautelar que as condições da sua aceitação não implicassem qualquer ingerência nos assuntos internos de Portugal por parte de países ou instituições estrangeiras. Com o artigo que saiu a 3 de Janeiro de 1928, Salazar enquistou-se nas questões estritamente financeiras e da sua análise pode já deduzir-se o repúdio pelo empréstimo, sem que antes se procedesse ao equilíbrio orçamental e ao saneamento da moeda.
O general Artur Ivens Ferraz, que fora nomeado a 5 de Janeiro de 1928 ministro das Colónias após a morte do anterior titular, João Belo, substituiu nas Finanças, interinamente, um esgotado Sinel de Cordes. E foi Ivens Ferraz quem recebeu nos dias seguintes, em Lisboa, os peritos da Sociedade das Nações (SdN) que vieram negociar a concessão do empréstimo. Em entrevista à comunicação social, o economista Louis Paul-Dubois, integrante da comissão técnica, afirmara cruamente que “em muitos portugueses há uma grande ilusão. Não vimos aqui dar nada a Portugal. Viemos para ver se é solvente ou não. Quem tem de pagar os erros do passado e os descalabros do presente são os próprios portugueses”. Três dias depois, Ferraz partiu para Genebra à frente de uma ponderosa delegação que mereceria de Rocha Martins o jocoso comentário de que “eram financeiros em demasia para tão ruinosas finanças”, chefiados por um general “querendo viver bem com os republicanos e fugindo dos monárquicos”.
Mas entre a oficialidade que sustentava o regime persistia a incerteza quanto às verdadeiras capacidades quer do titular das Finanças quer do seu substituto interino para marcar o rumo da recuperação das contas públicas. E os quartéis-generais tinham começado a auscultar a oficialidade sobre a questão do empréstimo, através de Notas-Consultas. Em Caçadores 5, o tenente Horácio Assis Gonçalves, convidado a pronunciar-se pelos seus camaradas afirmara:
“Lemos nos jornais que, dia-a-dia, se estão a fazer financiamentos a empresas que se diz estarem à beira da falência […]. Ora se o empréstimo agora pretendido se destina a isto, ou seja, a cobrir deficits, financiar empresas falidas, pagar vencimentos em atraso ou a aumentá-los, então será imediatamente absorvido em pura perda, e constituirá mais um indesejável encargo, para nós e para os vindouros, e mais uma miserável vergonha de consentir em nossa casa o “controlo” de uma comissão estrangeira de três membros para administrar as receitas consignadas a esse empréstimo.”
Óscar Carmona acumulava as funções de chefe do Executivo com as de Chefe do Estado, desde o último semestre de 1926. Na sua primeira manifestação de tentativa de legitimação popular, o poder saído do 28 de Maio entendeu por bem sufragar a ocupação da chefia da Nação e para isso foram convocadas eleições para 25 de Março de 1928. Realizado o sufrágio, o general contou com os votos dos inquestionáveis apoiantes da Ditadura, dos nacionalistas, de muitos militantes da União Liberal Republicana e mesmo de parte significativa dos votantes do Partido Democrático de António Maria da Silva. Tendo recebido 761.730 votos, Carmona seria proclamado Presidente da República a 15 de Abril e com esse acto formal teve início o período da Ditadura Nacional. Na tomada de posse, ilustrando o que atrás dissemos sobre o eclectismo da terceira via do movimento militar do 28 de Maio, Carmona discursou, dizendo: “Só peço a Deus que me dê a felicidade de ver reconciliada, em breve, numa perfeita unidade moral, toda a Família Portuguesa.” O Executivo a que até há pouco tinha presidido apresentou formalmente a demissão e Carmona encarregou o coronel José Vicente de Freitas de formar um novo Governo.
Vicente de Freitas e alguns dos seus ministros tomaram posse a 18 de Abril de 1928. A gestão das Finanças Públicas transitou dos executivos anteriores como a questão mais crítica e iria, aliás, marcar o novo regime bem como contribuir sobremaneira para o que lhe sucederia. Para tomar conta dela voltou a falar-se de Salazar, que passara os últimos meses ocupado com a reforma da Caixa Geral de Depósitos. O jovem (29 anos) ministro da Instrução, o professor engenheiro Duarte José Pacheco, director do Instituto Superior Técnico, foi encarregado da missão de ir a Coimbra desinquietar o professor de Economia Política e convidá-lo, em nome do presidente do Ministério, para a pasta das Finanças. Salazar resistiu, mas acabaria por anuir e no dia 27 assumiu o cargo. Na cerimónia de posse, dirigindo-se ao coronel Freitas, que, na qualidade de presidente do Ministério o acolhera e se gratulara pela aceitação, disse que “não tem que agradecer-me ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido”.
Consciente de que quer a sua hesitação em aceitar o cargo quer a intrínseca criticidade do assunto que passava a ter entre mãos o tornavam a “estrela da companhia”, o jovem ministro (38 anos) afirmou que “debalde se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa”. Cheio de si, acrescentaria que “pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários e a acompanhar-me com confiança na minha inteligência e na minha honestidade. […] Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar. […] Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”. Salazar encetou “de imediato um rigoroso e austero programa económico e financeiro tendo em vista a reorganização das finanças”. As condições que impusera e que tivera o cuidado de mencionar no seu discurso de posse, sublinhando o facto de que haviam sido aceites unanimemente por todos os colegas do Governo, eram de facto inovadoras se bem que draconianas.
Os reflexos da intervenção autoritária e inflexível de um ministro das Finanças civil, professor de Coimbra, que os afectava com a diminuição efectiva dos salários, não eram de molde a pacificar os espíritos castrenses menos afins à Situação. Mas, a 9 de Junho de 1928, Salazar saberia tirar partido de uma concentração de oficiais da Guarnição de Lisboa que o governador militar, o general Domingos da Costa Oliveira, promovera no quartel-general para que o ministro pudesse agradecer colectivamente os cumprimentos que lhe haviam sido dirigidos por ocasião da sua tomada de posse. No encontro, o ministro das Finanças proferiu um discurso intitulado “Os problemas nacionais e a ordem da sua solução”. Além de uma rápida análise da situação, elencou os principais pontos de partida para ultrapassar a crise e justificar os advenientes “sacrifícios salutares” que iriam ser, contudo, “a ascensão dolorosa dum calvário, onde os homens poderiam morrer mas se redimiam as pátrias”.
Antes, afirmara que “estamos hoje em Portugal numa situação má. Di-lo toda a gente e era escusado: na vida individual e na pública, as dificuldades que dessa má situação resultam sentem-se, palpam-se, todos nós lutamos com elas. Vamos relacionar, para melhor o ajuizarmos, todo esse mal-estar com quatro problemas fundamentais: o “financeiro”, o “económico”, o “social” e o “político””. E acrescentou: “Advoguei sempre a política de simples bom senso contra a dos grandiosos planos, tão grandes e tão vastos que toda a energia se gasta em admirá-los, faltando-nos as forças para a sua execução. Advoguei sempre uma política de administração tão simples como a que pode fazer qualquer dona de casa – política comezinha e modesta, que consiste em gastar bem o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos.”
Afirmando gradualmente a sua visão sobre o papel do Estado, a 22 de Fevereiro de 1929, em entrevista ao Diário de Notícias, Salazar diria que “para alguns, o Estado é o inimigo que não é crime defraudar; para outros, o Estado deve ser o protector da sua incapacidade e o banqueiro inesgotável da sua penúria”. Terminava a entrevista defendendo a sua actuação como ministro das Finanças, dizendo que “a Nação pode mudar de médicos, mas não está em condições de mudar de tratamento”.
Quando o chefe do Executivo, Ivens Ferraz, regressou a Portugal, após ter acompanhado o Presidente da República numa visita de Estado a Espanha, foi informado de que ocorrera “uma ruidosa manifestação de apreço, promovida pelas câmaras municipais ao senhor ministro das Finanças”, Oliveira Salazar. Da leitura das suas memórias pode deduzir-se o incómodo, quando não o ciúme, que tal incidente lhe provocou e que desconfiava ter partido do ministro da Justiça, Lopes da Fonseca, que o substituíra interinamente na chefia do Executivo. “Nunca fora consultado sobre a conveniência de realizar tal manifestação, parecendo até haver o propósito dos seus promotores que o presidente do Ministério a ela fosse estranho”, afirma.
Para o historiador César de Oliveira, aquela manifestação marca o início do que designa por “ofensiva de Lopes da Fonseca e Salazar [os católicos] contra a facção mais republicana do governo”. Realizada a 21 de Outubro de 1929, nela se ouviu pela primeira vez a palavra de ordem “Tudo pela Nação! Nada contra a Nação!”. Na ocasião, Salazar pronunciara mais um discurso na sala do Conselho de Estado, agradecendo a Lopes da Fonseca, que o cumprimentara em nome do Governo, e aos representantes das comissões administrativas dos municípios. Intitulada a exposição “Política de verdade, política de sacrifício, política nacional”, Salazar detalhou esses vectores lembrando que “num sistema de administração em que predominava a falta de sinceridade e de luz, […] impunha-se uma “política de verdade”. Num sistema de vida social em que só “direitos” competiam, sem contrapartida de “deveres”, […] anunciei, como condição necessária de salvamento, uma “política de sacrifício”. Num Estado que nós dividimos ou deixámos dividir em irredutibilidades e em grupos, ameaçando o sentido e a força da unidade da Nação, tenho defendido […] a necessidade de uma “política nacional””. E deixaria lançadas as bases do seu pensamento sobre o futuro político próximo, afirmando que “a reorganização constitucional do Estado tem de basear-se em nacionalismo sólido, prudente, conciliador, que trate de assegurar a coexistência e actividade regular de todos os elementos naturais, tradicionais e progressivos da sociedade: Entre eles devemos especializar a família, a corporação moral e económica, a freguesia e o município”.
Numa conferência pública, Cunha Leal defendeu o primado do fomento económico que, segundo ele, geraria os recursos para o saneamento financeiro com menor soma de sacrifícios. Para Salazar, isso era uma mera ilusão; não se conseguia construir uma economia senão sobre uma base financeira sã e séria. Tal como o economista Jacques Rueff (que integrara a missão da SdN que viera a Portugal) diria mais tarde, “pretender principiar pela economia é não conseguir nada: nem economia, nem finanças…”. Perplexo e irritado com os ataques de Cunha Leal, Salazar refutou os termos da conferência de Leal numa nota oficiosa, publicada a 7 de Janeiro de 1930 na imprensa de Lisboa. Segundo Cunha Leal, instigado mais uma vez “pela catequese persistente e mal-intencionada do seu mentor financeiro [Quirino de Jesus]”. O líder da ULR não desistiu e, considerando-se “asperamente censurado”, voltaria à carga, procurando publicar no dia seguinte um artigo ainda mais contundente contra o “ditador das Finanças”. Para ultrapassar a proibição da Censura, Cunha Leal solicitou os bons ofícios do próprio Salazar (a quem deu a conhecer previamente o teor do texto) para que requeresse ao presidente do Ministério [Ivens Ferraz] a autorização devida, tendo Salazar anuído de imediato.
Já não era apenas uma diferença técnica na abordagem ao problema crucial do país, mas a definição de barricadas políticas irreconciliáveis. Segundo Cunha Leal, ou ele era dispensado do cargo público que detinha (governador do Banco de Angola) ou Salazar se demitia. A embrulhada transferiu-se para o seio do Conselho de Ministros, onde parte do Governo se colocou implicitamente do lado do dirigente liberal. O ministro das Finanças, sentindo-se desautorizado, acabou por pedir a demissão, no que foi acompanhado apenas por Lopes da Fonseca. Mas o seu prestígio dava-lhe já muito peso e Carmona decidiu, em alternativa, demitir todo o Governo a 11 de Janeiro de 1930. Para a presidência do Ministério nomeia então o general Domingos Oliveira, o comandante militar de Lisboa.
Entretanto, Manuel Gonçalves Cerejeira fora entronizado Patriarca de Lisboa, sucedendo a D. António Mendes Bello. Perante este acontecimento, Salazar viu na ascensão do seu amigo e camarada do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) um estímulo para a prossecução autónoma do seu próprio destino e estatuto político. A investidura de Cerejeira seria também o vértice incontornável de dois percursos institucionalmente divergentes, facto que Salazar irá deixar bem vincado, dois anos e meio depois, quando assumir a Presidência do Ministério. O próprio Cerejeira tinha já consciência desse gradual afastamento, como confidencia ao seu antigo camarada Diogo Pacheco de Amorim, cúmplice das guerras de Coimbra, aquando de um pedido de clemência a Carmona, a favor de Cunha Leal e de Moura Pinto, nas costas de Salazar.
Mais tarde, em Julho de 1932, por ocasião dos cumprimentos protocolares do primeiro Executivo que irá dirigir, Salazar dir-lhe-á discretamente: “Manuel, a partir deste momento os nossos destinos separam-se completamente. Eu defendo os interesses de Portugal e do Estado, e os interesses da Igreja só contam para mim enquanto se conjugarem com aqueles, e apenas nesta medida. E o Estado é independente e soberano.” Apesar de ser mais a percepção pública, alimentada pelos sectores anticlericais da Situação e do Reviralho, do que condição real, havia-se instalado a impressão de um crescente protagonismo público e influência da Igreja Católica. Mas como lembra José Adelino Maltez, Vicente de Freitas e Salazar tinham acordado em 1928 que “nada se conceda à Igreja mas que nada se lhe retire do que [já] lhe concederam os políticos [no sistema da I República]”.
Eventualmente inspirada no modelo regeneracionista da Unión Patriotica da Ditadura militar espanhola, em Julho de 1930 surgira a UN – União Nacional, sob a presidência de José Vicente de Freitas, então presidente da Câmara de Lisboa. À organização estava vedado “imbuir-se do espírito de partido porque seria criminoso e, além de criminoso, seria ridículo, acrescentar, aos que já existem, o partido dos que não querem partidos”. Com o crescente apoio dessa plataforma política, congregante das bases de apoio ao rumo pressentido em Oliveira Salazar, o seu peso potestativo tornara-se incontornável. O reservado professor de Coimbra mostrava-se apto a reunir, sob a sua influência, republicanos conservadores, monárquicos, integralistas, católicos sociais e mesmo alguns antigos sidonistas. E, não menos despiciendo, parecia ser capaz de enfrentar com sucesso os rubros ventos que sopravam de Espanha, ameaçando a tão almejada paz social com a contaminação do vírus revolucionário.
A 12 de Março de 1932 o governo de Domingos Oliveira designou o coronel Lopes Mateus para presidente da Liga Nacional 28 de Maio, onde se congregavam as facções mais cesaristas dos apoiantes daquele movimento. O intuito era claramente neutralizar a agitação permanente e as conspiratas que os elementos mais radicais da Liga, apoiados por alguns sectores minoritários do regime, insistiam em fomentar. Se Lopes Mateus conseguiu desmontar e anular a emergência de figuras como João de Almeida como principal candidato da Liga à assunção do poder executivo máximo em concorrência com Salazar, a verdade é que pouco obteve na tentativa de alterar o funcionamento autónomo das delegações regionais e locais que, em grande parte, manteriam um permanente estado de rebeldia. As mais excitadas começavam a encarar o vibrante movimento nacional-sindicalista como uma opção mais adequada à pureza das suas intenções, aviltadas, diziam, pela incorporação na União Nacional de antigos políticos da I República.
Enquanto variante de um espectro de soluções políticas autoritárias que tinham emergido sobretudo no pós-guerra, o nacional-sindicalismo era uma expressão filofascista, talvez já um pouco serôdia, partilhada sobretudo por militantes de extracção monárquica que haviam cedido ao fascínio do “cesarismo”. No seu ADN havia genes do monarquismo adinástico, do pensamento contra-revolucionário tradicionalista, mas também da pulsão modernista do fascismo e da evidência soreliana da importância do papel social das massas. Tendencialmente integralista, se não mesmo totalitário, o nacional-sindicalismo agregou as franjas mais radicais e excitadas dos grupos de pressão política que, desde o sidonismo, mais tinham pugnado por uma revolução contra o demo-liberalismo decadente.
Sôfregos de novidade, acompanhavam o que se passava lá fora em termos de pensamento político que lhes ia chegando quer directamente pelos jornais e revistas estrangeiros quer pelas publicações dos think tanks nacionais que lhes serviam de referência, como era o caso dos órfãos do Integralismo Lusitano. Como em todos os movimentos políticos não-classistas, eram essencialmente os jovens universitários que animavam a militância, indignados pela falta de combatividade do campo mais conservador. Em Fevereiro de 1932, um grupo de estudantes, na sua maioria de simpatia e militância integralista, abertos às ideias anti demo-liberais, tinha fundado em Lisboa um periódico chamado Revolução. Para o dirigir haviam convidado Francisco Rolão Preto, membro da Junta Central do Integralismo Lusitano desde 1922 e que já havia sido secretário da revista Alma Portuguesa, editada pelo núcleo embrionário do integralismo na Bélgica em 1913, apesar de ser então menor de idade.
No Verão de 1932, na sequência do Revolução, nasceria formalmente o Movimento Nacional-Sindicalista. João Medina afirma a influência de José Antonio Primo de Rivera na fundação do movimento liderado por Rolão Preto. É um evidente dislate já que o advogado espanhol apenas fundaria a Falange Española em fins de 1933 e só lhe daria o cunho nacional-sindicalista em 1934, depois da fusão da Falange com as Juntas de Ofensiva Nacional-Sindicalista (JONS), de Ramiro Ledesma Ramos. O nacional-sindicalismo português definia-se, pela negativa, como anticomunista, antiliberal, antidemocrático, anti burguês, anticapitalista e anti conservador, cardápio doutrinal que o aproximava do fascismo.
A ascensão de Salazar
O medo de contágio da revolucionarite que medrava em Espanha após a proclamação da sua Segunda República, e a convicção de que as forças predominantes até aí na Ditadura nada tinham conseguido fazer para evitar a instabilidade e o permanente estado de guerra civil larvar em que o país vivia contribuíram decididamente para o reforço da ala mais autoritária e anti demo-liberal. Afinal, durante os cinco anos da Ditadura não aparecera nenhum ditador nem tão-pouco uma linha de orientação visível que permitisse ultrapassar o lamaçal político-social deixado pelos “democráticos”. O único que parecia saber o “que queria e para onde ia”, apresentando resultados palpáveis no seu exercício governativo, era o ministro das Finanças.
O Governo de Domingos Oliveira, apesar de refrescado por várias remodelações, estava politicamente exausto e a instabilidade regressara. Consciente do desgaste, Oliveira submeteu a ideia da renúncia ao Conselho de Ministros, que com ele concordou. Nesse mesmo dia, apresentou a Carmona a demissão colectiva do seu Governo, que foi aceite. O Presidente convocou então para três dias depois o Conselho Político Nacional, cujos membros haviam sido empossados no início do ano. Exposta a situação e ouvidos todos os conselheiros, era opinião da maioria que se impunha agora consolidar o poder da Ditadura, indo mais além no plano doutrinário e político. E uma vez que reconheciam Salazar como o grande motor do executivo cessante, além de ter sido ele, igualmente, o principal autor do embrionário projecto constitucional, não constituiu surpresa o facto de a maioria o indicar para presidir ao novo Ministério. Carmona aceitou a sugestão com agrado, mas Salazar lembrou-o de que não tinha tempo para iniciar de imediato as diligências conducentes à indigitação de um novo Executivo, pois tinha de acabar primeiro o Orçamento para 1932-1933; talvez no princípio de Julho pudesse aceitar. Assim aconteceu e a 5 de Julho de 1932 o embrião do novo Executivo tomaria posse.
Se as correntes mais radicais que haviam participado ou inspirado o golpe do 28 de Maio tinham comungado com o vector triunfante na reabilitação da ideia de ditadura (que não de tirania) e da legitimidade do rompimento com a ordem estabelecida, a sua convergência tinha parado aí. Para os seus simpatizantes, impunha-se agora o impulso revolucionário, com a tomada de consciência de outros valores que não pertenciam ao léxico político do conservadorismo republicano e monárquico que triunfara na Ditadura Nacional, caracterizado por uma inspiração de base essencialmente cristã, embora aqui e ali acomodada com uma praxis maçónica deísta. Nesse comprimento de onda navegavam os nacional-sindicalistas, a nova corrente radical remetida por todos os outros sectores políticos para a classificação de extrema-direita.
Para mais claramente afirmar o seu credo, faziam a apologia da violência política, sobretudo contra a plutocracia que entendiam alinhada com o apatridismo da maçonaria irregular e da burguesia jacobina em geral. Rompendo com a prática corrente do integralismo, em que a intervenção cultural e ideológica dirigida às elites era a norma, os militantes do nacional-sindicalismo caracterizavam-se pelo primado da acção política de base sobre as massas e por hostilizar a Situação. Ao mesmo tempo, punham em causa o que consideravam o imobilismo e a apatia do movimento integralista e da sua dogmática passadista. Já não era a restauração do regime monárquico que estava em causa, mas a “recuperação da própria Nação”, reduzida a escombros por uma continuada praxis aviltante, introduzida pelo liberalismo e seus sucedâneos.
Ao secundarizar, senão mesmo varrer para debaixo do tapete a questão monárquica, o movimento franqueava as portas a militantes de formação republicana, como era o caso de muitos sidonistas, simpatizantes de uma estética autoritária e cesarista. Para alcançar o poder, para construir um Estado capaz de recuperar e reavivar Portugal, era necessária uma chefia carismática capaz de provocar na dinâmica de massas a vaga da revolução integral. A maioria dos que assim pensavam vinha das Juntas Escolares Universitárias do Integralismo, fortemente influenciadas pelos sucessos fascistas em Itália e doutrinadas pela revista Política, fundada em 1929. Da velha Junta Central apenas o benjamim Rolão Preto partilhava desse ideário, embora também o veterano Alberto Monsaraz assumisse a sua defesa, buscando ainda pontes geracionais entre os de 1914 e os de 1932.
Uma das críticas que Rolão Preto, o assumido chefe emergente, iria passar a fazer recorrentemente a Oliveira Salazar seria o facto de “este se recusar a recorrer à violência como método revolucionário”, bem como o facto de “não vestir uma farda”, ou de, pelo menos, envergar “uma camisa de combate”, como escreverá no opúsculo Salazar e a Sua Época. As manifestações públicas do nacional-sindicalismo ressuscitaram em Portugal as coreografias paramilitares e milicianas usadas no passado pela Carbonária e agora renovadas com a introdução de cânticos de combate e a ritualização carismática do chefe. Estes tiques comportamentais inspiravam-se nas associações de veteranos do pós-guerra, como os fascistas italianos, os comunistas espartaquistas, os corpos francos germânicos e, mais recentemente, os nacionais-socialistas.
Quando Lopes Mateus anuncia a dissolução e integração em bloco da Liga 28 de Maio na União Nacional, uma parte significativa das suas delegações decide aderir ao nacional-sindicalismo. Como lembra António Costa Pinto, marcante foi o episódio de Coimbra em que praticamente toda a comissão distrital da União Nacional se demitiu em protesto contra a aceitação da adesão à UN do médico Bissaya Barreto, influente maçon, e político do parlamentarismo republicano. Mas, no meio da grande confusão de ideias e de sentimentos que, retrospectivamente, o seu ex-militante Luís Cabral de Moncada atribuiria ao novel movimento, a hostilidade declarada ao ministro das Finanças iria servir sobretudo para obrigar alguns a demarcarem-se dos “camisas azuis”, como acontecerá com João da Costa Leite (Lumbrales). E em Novembro de 1933, após a clivagem que se verificara durante o I Congresso, será a vez de Clotário Luís Supico Pinto e de José Cabral abandonarem o movimento, integrando-se na União Nacional.
Aquele que foi o primeiro Governo da Ditadura presidido por um civil parecia politicamente equilibrado, com a eventual excepção do jovem tecnocrata Duarte Pacheco mais próximo dos liberais. Como afirma Fátima Patriarca, baseada na análise do Diário de Leal Marques, “o papel de Duarte Pacheco volta a ser relevante: dotado de uma acutilante noção de tempo político, é ele quem força, sem contemplações e cerimónia, a constituição do governo na noite de 4 para 5 [de Julho de 1932] e evita que Salazar perca prestígio ou caia no ridículo”. Com efeito, a formação do primeiro Governo de Salazar parece ter sido complicada pelas embirrações dos tenentes do 28 de Maio contra Manuel Rodrigues e Aníbal Mesquita Guimarães, tidos por defensores da aproximação aos dirigentes dos antigos partidos republicanos. E eram apoiados pelo antigo maçon coronel Lopes Mateus, que vira o Ministério que ambicionava ser atribuído a Albino dos Reis, reconhecidamente um desses políticos do antigamente. Com a ascensão de Salazar aproximava-se do poder um conjunto de notáveis, essencialmente civis, que até aí haviam gravitado na penumbra e que agora se predispunham a disputar à tropa os lugares cimeiros.
O elenco do novo Executivo presidido por Salazar estava longe de ser maioritariamente católico, monárquico ou conservador como alguns mitos históricos persistem em difundir. Se alguns são seus velhos companheiros das lutas de Coimbra, outros são jovens que despontam para uma nova era da vida política e que admiram no diferente e reservado professor a sua qualidade intelectual, a austeridade quase ascética, a sua inesgotável capacidade de trabalho na dedicação à causa pública e a firmeza na afirmação do superior interesse nacional. Sabem-no distinto, quase messiânico, e confiam nele. Como salienta o historiador César Oliveira, “diversamente dos outros ditadores da direita europeia, nomeadamente de Mussolini e de Hitler, que em breve ascenderia ao poder, Salazar fez da modéstia e do recolhimento no trabalho dois ingredientes fundamentais do seu carisma. E esses ingredientes eram complementados pela “missão, sob os auspícios da Providência Divina, ao serviço do país” e da imagem de trabalhador incansável, devotado e atento à causa pública”.
Proclamando a sua intrínseca liberdade, Salazar dirá de si próprio: “Devo à Providência a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, riquezas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver, o pão de cada dia não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades.” Mas muitos ainda se interrogavam sobre se quem reconheciam como um mago das Finanças daria um político de peso, capaz de meter na ordem as agitadas facções do 28 de Maio. Sobretudo quando de forma consistente e recorrente Salazar insistia em que o empoderamento real residia na vontade e potestade das Forças Armadas que haviam fundado a Situação.
Ao contrário do que acontecera e aconteceria com outros autocratas de esquerda ou de direita, Salazar não alcançara ele próprio o poder já que não interviera na criação do regime ditatorial saído do 28 de Maio. Mas soube conquistar o seu caminho, envolto numa mística sui generis que configurava quase um anti carisma, mas cuja imagem tocava a maioria da opinião pública e que lhe permitiu ir afastando implacavelmente os que ameaçavam tolher-lhe o passo. O poder político tinha agora um chefe que não buscava o seu sustentáculo na manipulação e agitação das massas, por cuja dinâmica tinha, aliás, pouco apreço. Os seus apoiantes de base eram nacionalistas, monárquicos, católicos, mas sobretudo ex-parlamentaristas conservadores. Uns puros, convencidos e confiantes; outros meros oportunistas. Diziam rever-se na obra de Salazar e, como diz Franco Nogueira, “exaustos do passado, querem acima de tudo boa administração e ordem nas ruas; a classe média, o funcionalismo, o pequeno comércio, o pequeno agricultor, sentem benefícios com a estabilidade financeira e a melhoria da situação económica; e sem preocupações ideológicas transcendentes, concedem o seu crédito a Salazar”.
E o “homem do Vimieiro”, que “não procurara o mando, também não o vai deixar cair das mãos”. No abstruso arrumar de facções, sensibilidades e protagonismos, sabia bem o “que quer e para onde vai” e começava a preencher o vazio do ideário situacionista. No prefácio retrospectivo que escreveu para a 4.ª edição dos seus Discursos, Salazar afirma: “Os portugueses dados à reflexão e animados de consciente patriotismo estavam praticamente de acordo acerca da situação a que o País chegara. Discutiriam ainda as causas da nossa decadência ou atraso; dividir-se-iam quanto aos remédios que podiam ou deviam ser aplicados com êxito, e até quanto à forma de tratamento. Mas que a origem de tantos males estivesse na desregrada vida política e nas tradicionais deficiências da Administração; que derivasse da pobreza material, do nosso modo de ser não corrigido pela educação e do atraso da instrução pública; que pudesse atribuir-se à indisciplina dos portugueses ou até ao gigantesco esforço que houvemos de fazer, através dos séculos, para descobrir, ocupar, administrar e civilizar territórios em desproporção com o potencial humano e os recursos normalmente disponíveis – em nada se alterava a conclusão geral.”
Contudo, as consequências da política de austeridade irritavam e agitavam os quadros militares, designadamente os que haviam arriscado a vida e a fazenda para o colocar no poder e que, como tal, “esperavam uma recompensa que se visse”. Mas a sua postura de um “Encoberto” que agora se descobria afastando a bruma, de um “Desejado” redentor que quase parecia pedir desculpa por ali estar, confundia-os sem, contudo, impedir uma certa atracção, mesmo que a contragosto. Para muitos, Salazar parecia ser portador de uma “mística teocrática” fundada “na crença da existência de um Rei invisível e inacessível mas todo-poderoso, predestinado pela vontade divina para, lá das excelsas alturas onde pairava, presidir ao destino dos simples mortais que lhe deviam obediência e submissão como parte dos preceitos sagrados que regiam as suas vidas”, como sublinha Maria de Fátima Bonifácio referindo-se às convicções mais arreigadas no ruralismo da população portuguesa.
O perfil que projectava, mais de oficial de estado-maior do que de atrevido cabo-de-guerra, instilava-lhes confiança e adscrição. Na mão direita, Salazar exibia a sua alfaia política, a União Nacional, o seu não-partido, o instrumento de enquadramento e suporte; na esquerda, a nova cartilha doutrinária, a futura definição da normalização constitucional. Não obstante a manutenção de um tenso braço-de-ferro com as facções militares mais inflexíveis, com o projecto de Constituição sancionado pelo Conselho Político Nacional e pelo Executivo anterior, o primeiro Governo de Salazar foi o marco incontornável que abriu caminho à institucionalização do primado do poder civil e ao regresso dos militares às casernas. Como sintetizou António Seabra, “a Ditadura – instituição anónima de responsabilidade limitada – desapareceu lentamente”, pela mão de Salazar, “para dar lugar ao Estado Novo corporativo, enformador da democracia orgânica. De facto, para ser substituída pelo poder pessoal de um homem. De cujo talento político todos começaram por duvidar, mas que lentamente se impôs aos portugueses e ao mundo”.
Ao clarificar posições, definindo o referencial e a doutrina, Salazar procurava fixar as adesões e, ao mesmo tempo, seduzir adversários mais acomodatícios, cavando no quintal da Oposição. E é nesse sentido que vai a amnistia de Dezembro de 1932. Oliveira Salazar, antes de tomar posse como presidente do Executivo a 5 de Julho, exigira ao poder militar essa medida. Independentemente dos seus objectivos pacificadores era igualmente um exercício de força para juntos das cúpulas militares demarcar a sua independência e vontade. Com a chamada Lei da Amnistia fazia-se cessar o procedimento criminal contra os presos e os deportados acusados de crime político, em resultado das suas actividades durante os primeiros seis anos da situação ditatorial. No preâmbulo da Lei podia ler-se: “O tempo de exílio, de prisão ou deportação que já sofreram, a convicção da inutilidade dos seus esforços perante a força moral e material da Situação, a própria generosidade do Governo, fazendo-lhes cessar a situação em que se encontram, e até mesmo o reconhecimento dos benefícios trazidos ao País pela política da Ditadura, é de crer que tenham inclinado o ânimo a uma actividade pacífica e útil dentro do seu País.”
Mas o espírito de conciliação esbarrava com os limites impostos pela segurança do Estado. E assim ficariam de fora, por um prazo condicional de dois anos, as 50 personalidades consideradas de maior responsabilidade e/ou periculosidade bem como os acusados de crimes de sangue, cujo sancionamento penal havia sido feito fora da moldura do crime político. É certo que o poder assumia um elevado risco ao admitir o inimigo dentro de portas, mas, ao mesmo tempo com alguma sobranceria que lhe advinha da forma como integrara no regime um grande número de “democráticos”, dava um importante sinal de atrevimento, controlo e segurança. E assim regressaram a Lisboa, a descompasso, Hélder Ribeiro, João Soares, Sá Cardoso, Cunha Leal, Maia Pinto, vindos do desterro, e outros, como Norton de Matos e António Sérgio reentravam em Portugal dando por findo o seu exílio. Também o secretário-geral do PCP, Bento Gonçalves, aproveitou a amnistia para regressar.
A atitude agregadora e inclusiva de Salazar não era nova. Desde muito cedo que contara com colaboradores próximos oriundos de áreas políticas muito afastadas da sua, nomeadamente como ministro das Finanças. São exemplos o seu chefe de Gabinete, Antero Leal Marques, e o goês Alberto Xavier, antigo chefe de gabinete de Álvaro de Castro e que chegara a ser detido durante a ditadura militar por razões políticas. Xavier iniciara-se na maçonaria em 1906, na “loja” Pátria de Coimbra, com o nome simbólico de Robespierre. Um dos protagonistas da greve académica antifranquista de 1907, foi advogado, jornalista e deputado “democrático” na República tendo sido secretário-geral do Ministério das Finanças. Quando Salazar foi empossado como titular da pasta, manteve-o, tornando-se Xavier num dos seus íntimos colaboradores. E conservou Inocêncio Camacho Rodrigues, o homem do Directório Republicano do 5 de Outubro, como governador do Banco de Portugal. Caso igualmente paradigmático foi o do coronel João Nepomuceno Namorado de Aguiar, um antigo maçon da loja Jovem Turquia, que conspirara contra Salazar quando fora ministro da Guerra num Executivo da ditadura e acabara demitido. Anos depois, criada a Legião Portuguesa, Salazar foi buscá-lo para encabeçar a estrutura paramilitar. No comando, foi assistido pelo coronel Francisco Coutinho e Castro, pelo major Adolfo Abranches Pinto e pelo capitão Humberto Delgado, como controleiro político de Salazar.
No movimento nacional-sindicalista, em que a militância se fazia muitas vezes mais pela lógica da emoção do que pela razão, também a crescente força de atracção gravitacional da União Nacional continuava a fazer estragos. Muitos eram os que abandonavam as excitadas fileiras dos “camisas azuis” para se acolher ao regaço convidativo da Situação. A debandada era sobretudo dos católicos, que se tinham mostrado sensíveis às acusações e críticas contra o alegado filo-paganismo de inspiração estrangeira, que parecia ser cultivado entre algumas elites nacional-sindicalistas. Os baluartes do catolicismo mais ortodoxo entendiam que “o nacional-sindicalismo estava influenciado pelos excessos do nacionalismo e do laicismo prático, que tem merecido a reprovação da Igreja em movimentos semelhantes de outros países”. Com efeito, no fim do Outono de 1932, o jornal Novidades, mormente pela pena do influente padre Abel Varzim, o futuro animador das Juventudes Operárias Católicas (JOC), zurzia recorrentemente o movimento de Rolão Preto, apoiando implicitamente a táctica centrista e pragmática de Salazar.
Em pleno impulso de Cerejeira para a “reconquista cristã da sociedade portuguesa”, a hierarquia católica iria colaborar com a Situação na neutralização local da influência dos “camisas azuis”, opondo à “fascização a cristianização”. E a campanha iria prosseguir no ano seguinte, com o jornalista católico António Sousa Gomes, a denunciar o anti personalismo de Rolão Preto. Como salienta João Medina, o modelo fascista “não logrou estabelecer-se entre nós porque, afinal, encontrou aqui uma Direita tradicionalista suficientemente sólida e hegemónica, para lhe barrar qualquer tentação de aventuras e tomadas de poder; os nossos “camisas azuis”, ao romperem com o modelo conservador, monárquico-integralista, onde tinham sido todos politicamente amamentados, e ao deixarem-se seduzir pela “tentação fascista”, estavam condenados a perderem-se num deserto, por falta de eco, de tropas, de simpatias naturais”.
O novo regime procurava criar raízes que segurassem solidamente o crescimento do tronco reverdecido podado pelo 28 de Maio. A Constituição aprovada em 1933 apresentava já um modelo pró-corporativo, até com alguns conceitos e estruturas esteticamente decalcados do fascismo de Mussolini. Essa fachada transparecia sobretudo na prossecução dos corpos intermédios das doutrinas organicistas que procuravam romper com a perspectiva e praxis jacobinas que apenas admitiam uma relação directa entre o indivíduo e o Parlamento, considerado o centro do aparelho do poder. A República corporativa reclamava assentar os seus alicerces nos elementos estruturais da nação: a família, as autarquias e os organismos intermediários, vocacionados para conciliar dialecticamente interesses sociais e económicos potencialmente opostos e mitigar assim a agitação social e política característica do regime anterior. A concepção corporativista do Estado Novo é muito semelhante à do efémero regime que o social-cristão austríaco Engelbert Dollfuss procurou implementar nesse mesmo ano e que os nacionais-socialistas se encarregariam de fazer soçobrar ao promover o assassínio de Dollfuss em 1934.
O corporativismo à portuguesa, se por um lado recolhia influências do pensamento social da Igreja, parecia procurar desenvolver a ordem corporativa das bases sociais para cima, não se inspirando nos lamirés intervencionistas do “socialismo de cátedra” bismarckiano, ou de Oliveira Martins, o seu discípulo local, com a sua ênfase no “estatismo” e no seu Estado-Providência. Michael Derrick, no seu livro The Portugal of Salazar (1939), defende que o princípio do “bem comum” é complementado no Estado Novo pelo princípio de que o Estado é servidor da sociedade. Pelo que, ao contrário do que acontece com o fascismo, o corporativismo é transformado em associativismo de base e não imposto. O filofascista Rolão Preto, por exemplo, negou o seu apoio ao projecto da nova Constituição porque via nela um compromisso com os princípios liberais e a recusa do corporativismo integral.
Derrick defende que o “corporativismo de associação português” o aproxima muito mais da essência do “distributismo” do que do fascismo. O “distributismo” era uma corrente económica de terceira via que propugnava que a propriedade privada é um bem ao qual deve ter acesso, se não a totalidade, pelo menos grande maioria dos agentes sociais. Desenvolvida no seio do pujante movimento católico inglês no início do século XX, sob a condução ideológica de Hilaire Belloc e a presidência carismática de Chesterton, o “distributismo” defendia que eram a propriedade e os organismos intermediários que permitiam ao homem não ser tiranizado pelo poder centralizador do Estado ou pela influente e exclusiva classe plutocrática detentora do capital. “A propriedade é condição e salvaguarda da liberdade individual” que era o valor intrínseco que mais prezavam; para eles, o capitalismo e o socialismo eram duas faces da mesma moeda, já que ambos eram sistemas concentradores de propriedade. De acordo com o “distributismo”, os meios de produção deviam estar distribuídos entre a população o mais ampla e equitativamente possível. Baseando-se na Doutrina Social da Igreja, assumiam como fundamentos conceptuais a propriedade privada, o princípio da solidariedade e o princípio da subsidiariedade, convergindo em muitos tópicos com o filósofo político Robert Nozick, professor em Harvard nos anos 70, e com o economista Ernst Schumacher, autor de Small Is Beautiful: A Study of Economics as if People Mattered.
A maioria dos próceres do novo regime, designadamente Oliveira Salazar, tinha uma matriz de formação cultural francófona. Devemo-nos recordar que, em Coimbra, Salazar fora assistente de Marnoco e Sousa, o professor responsável pela divulgação nos nossos meios académicos das doutrinas sociais da école social, de Pierre-Guillaume Le Play. Também o tradicionalismo de Charles Maurras está presente na formação de Salazar como demonstra na sua tese Marcos Pinho de Escobar.
Pelos seus textos de intervenção percebe-se que Salazar estava igualmente familiarizado com o que se passava em Espanha na viragem do século XIX para o XX. No ambiente de estupor e vergonha que sucedera à humilhante assinatura da paz com os EUA, a comoção e estupefacção sentidas pelo povo espanhol face ao desaparecimento das últimas jóias da coroa do seu Império, em 1898, impunham que, no mínimo, caras novas surgissem na ribalta da política. E surgiu o conservador Francisco Silvela, enojado com os constantes amanhos políticos do rotativismo, prometeu “obras e não palavras”; reestruturação da administração para a tornar mais directa, mais honrada, mais eficaz e mais descentralizada, com o reforço do municipalismo; deslaçamento do caciquismo e integração da massa neutra eram pontos bem claros do programa de Silvela, tipicamente regeneracionista.
O ministro das Finanças do governo de Silvela, Raimundo Fernández Villaverde, impressionou Salazar com a sua reforma orçamental e o inevitável “apertar do cinto”. Com efeito, dos 750 milhões de pesetas que, em média, entravam anualmente nos cofres do Estado espanhol, mais de 50% iam para o pagamento da dívida pública. Villaverde, impôs a redução da despesa pública, optimizou a recolha da receita fiscal, introduzindo mesmo novos impostos, e suspendeu temporariamente o pagamento da componente interna da dívida pública. A esse drástico orçamento que ainda assim mereceu fortes ataques, sobretudo por parte dos interesses comerciais e industriais, chamou o ministro de “liquidação” prometendo que o próximo seria de “regeneração nacional”. E Fernández Villaverde sucederia a Silvela na condução do Governo em 1903.
Salazar era igualmente conhecedor do pensamento do aragonês Joaquín Costa, um regeneracionista meio-socialista, meio-anarquista, que cita várias vezes, nomeadamente no estudo A Questão Cerealífera: O Trigo que apresenta em 1916, juntamente com O Ágio do Ouro, com vista a habilitar-se ao concurso de admissão à docência universitária. “Como da Espanha dizia Joaquín Costa, também de Portugal se pode afirmar que não é pátria de Ceres.” Segundo o professor de Coimbra, no que dizia respeito à produtividade cerealífera, Portugal ocupava o penúltimo lugar na Europa.
Seria deslocado abordar todos os ângulos que desmarcam Salazar das correntes fascistas neste ensaio. Fica a sílaba tónica; quem quiser a palavra inteira tem à sua disposição um conjunto de autores que de forma rigorosa se têm debruçado sobre a obra de Salazar. No panorama nacional, além de Alberto Franco Nogueira, Jaime Nogueira Pinto, Manuel Braga da Cruz, António Costa Pinto e Filipe Ribeiro de Meneses, merece particular destaque Fernando de Castro Brandão. E no circuito internacional, além de Patrick Gautrat e o seu Pétain, Salazar, de Gaulle: affinités, ambigüités, illusions (1940-1944), é imperdível o recentíssimo livro do historiador britânico Tom Gallagher Salazar: the dictator who refused to die.