Morreu há 50 anos aquele que, para o bem e para o mal, foi o político mais importante e determinante do século XX português. Desde a sua entrada para todo-poderoso ministro das Finanças da Ditadura Militar, em Abril de 1928, até ao Verão de 1968, quando um traumatismo craniano lhe provocou um AVC, António de Oliveira Salazar centrou e dominou a política do país. E dominou-a também depois da morte e da Revolução, por contradição.

Primeiro dominou a política e o poder político durante quarenta anos e, através deles, dirigiu ou orientou a vida económica e social portuguesa. Depois, na sequência do golpe de 25 de Abril, dominou, por reacção, a classe política oposicionista a quem os militares entregaram o poder. Os novos donos do poder não só usaram o anti-salazarismo ou o antifascismo como títulos de legitimidade, como, da retórica à prática, procuraram obcecadamente fazer tudo ao contrário do que Salazar fizera ou do que hipoteticamente faria.

Assim, dois dos seus inimigos – Afonso Costa, que estivera no poder antes dele, e Álvaro Cunhal, que depois lhe disputaria o poder – ficariam numa segunda linha em papel e protagonismo. Afonso Costa e a ditadura real do seu partido Democrático ao longo de quase toda a primeira República justificavam o apoio popular à Ditadura Militar e depois a Salazar. Cunhal e o PC, pelo perigo que representavam e dada a debilidade da restante oposição, iam também justificar e permitir em nome do anticomunismo a longa duração do Regime de Salazar.

Mas a memória anti-salazarista perdurou: nenhum antifascista que se preze dispensa o seu exercício de retórica contra “O Ditador” e as respectivas malfeitorias: o atraso português, a rejeição da modernidade, a PIDE, a Censura, o Tarrafal. A isto se procura reduzir o Estado Novo, alguns imprimindo à narrativa uma toada que o quer associar às crónicas mais obscuras do totalitarismo do século XX – dos campos de morte hitlerianos, aos Gulags estalinistas e maoístas ou às tenebrosas inquisições do passado.

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Não foi assim. Os vencedores contam geralmente a História, e a Esquerda, afastada do poder político durante quase meio século, também acabou por ter de se legitimar por aí, à falta de grandes progressos e realizações.

É claro que Salazar não era um democrata; até porque a experiência democrática portuguesa – de Outubro de 1910 a Maio de 1926 – não tinha sido entusiasmante. Fora o domínio real do Partido Democrático, chefiado primeiro por Afonso Costa – um político inteligente, autoritário, manipulador, que não deixaria de recorrer à Carbonária e à “rua” para partir os dentes à reacção – e depois por António Maria da Silva, um habilidoso, o “Engenheiro das Revoluções”. Salazar, como muitos da sua geração, onde se incluíam republicanos desiludidos e grupos de intelectuais que hoje diríamos de esquerda, como o grupo da Seara Nova, não apreciavam muito os “benefícios da Democracia”, ou daquela Democracia.

Uma Democracia conveniente, em que só votavam 7% dos portugueses. Por isso Afonso Costa – atento à lei eleitoral e à geografia das circunscrições eleitorais de modo a garantir aos círculos urbanos uma representação vantajosa em relação à província, mais conservadora e católica – nunca quisera dar direito de voto às mulheres, pela sua potencial vulnerabilidade à influência dos padres. E quando o sistema, mesmo assim, não funcionava em seu favor, os carbonários e outras forças democráticas corrigiam-no, a posteriori, chegando a invadir a tiro as assembleias de voto mais renitentes.

Foi esta democracia que os militares do 28 de Maio derrubaram. Eram quadros médios (o mais graduado dos rebeldes de Braga era o major Pereira Coutinho) e civis, como os que levaram Gomes da Costa para o Norte, para o pôr à frente da Revolução. Revolução que o país aplaudiu, desde os monárquicos integralistas aos sindicalistas.

Salazar apareceu como um tecnocrata das Finanças. E tinha vindo a preparar a vinda com uma discreta displicência, publicando artigos com receitas teóricas e práticas de como lidar com o problema da dívida pública que, desde a guerra civil de 1828-1834 e por todo o constitucionalismo, fora uma constante da vida política nacional.

Percebera que o poder militar não estava nos chefes, nos generais, mas naqueles colectivos de tenentes, de capitães, de majores que, desde o acampamento de Sacavém, a seguir a 28 de Maio, decidiam a sorte desses chefes – Gomes da Costa, Mendes Cabeçadas e outros. E é por isso para eles que, como ministro das Finanças, faz conferências sobre o momento político, como se fosse normal o ministro das Finanças dirigir-se aos “oficiais da Guarnição Militar de Lisboa”.

Enquanto resolve o problema das Finanças – que em regime de Ditadura e com um poder até aos tostões sobre a Receita e a Despesa públicas, não era assim tão complexo de resolver – vai lançando as bases doutrinárias de uma alternativa político-institucional à democracia multipartidária.

Que bases? A formação intelectual e doutrinária de Salazar estava ligada ao catolicismo social nas versões francesa e vaticana. Ou seja, à experiência de uma Igreja católica perseguida e martirizada pela Revolução nos finais do século XVIII e pelo anticlericalismo jacobino e maçónico nos finais do século XIX.  Uma Igreja que repondera à perseguição, a partir de Roma, através da “democracia cristã” (mais cristã que democrática) dos chamados Papas Sociais, confrontados com o capitalismo selvagem do século XIX e a alternativa socialista-materialista. O pensamento de Salazar também se alicerçava no maurrasismo, no nacionalismo orgânico da Action Française, e em sociólogos pioneiros da psicologia das multidões e das sociedades da primeira revolução industrial, como Gustave Le Bon. Determinante, fora ainda a experiência vivida em Portugal nos finais da monarquia e na  Primeira República, bem como  uma leitura atenta do século XIX português, à luz dos escritos de Herculano e dos “Vencidos da Vida”.

E depois a actualidade internacional, os primeiros confrontos daquilo a que Ernst Nolte chamaria a “Guerra Civil Europeia”, com a revolução bolchevique, internacionalista e anticristã, a provocar por toda a Europa medo e reacção.

Como previra Marx, o fantasma da revolução socialista pairava sobre o Continente e trouxera respostas: em Itália, Mussolini mobilizara as classes médias, a partir dos antigos combatentes, negociara com o Rei e as forças tradicionais e instaurara o Fascismo, uma social-democracia não democrática, espécie de compromisso, em termos económicos, entre o capitalismo liberal e o socialismo comunista. Noutros países do Centro e Leste europeu e nos Balcãs, triunfavam caudilhos ou militarizavam-se as monarquias. O perigo comunista era real mas foi também instrumentalizado

Salazar achava que, no seu tempo e no seu espaço, a democracia liberal, que podia funcionar em Inglaterra, não funcionaria em Portugal. Mas também não o entusiasmavam o estilo e a retórica revolucionária do Fascismo, com a apologia da violência como inerente à construção de Estado ideal. Para ele, a força era com os militares, com quem estava a pactuar o governo. Salazar, que dizia que “o Estado devia ser forte para não ter que ser violento”, estava nos antípodas éticos e estéticos do líder fascista popular, de uniforme e bota alta. E enquanto Mussolini, com Nietzsche, falava em “viver perigosamente”, Salazar queria que se “vivesse habitualmente”.

No fundo de tudo isto havia um pessimismo antropológico profundo, augustiniano, pessimismo que suspendia, com maior ou menor sinceridade, quando se tratava de falar da História de Portugal e dos seus momentos mais heróicos – que se ficavam pelo século de Ouro da Expansão.

Entre 1890 e 1930, ou do início do reinado de D. Carlos à Constituição de 1933, o país andou ocupado com a política, no Parlamento ou na rua, sem que houvesse tempo ou dinheiro para Obras Públicas. Passámos pela humilhação do Ultimato, tivemos o último surto de Peste Bubónica da Europa, no Porto, em 1899, a ditadura comissarial de João Franco, o regicídio de D. Carlos para acabar com Franco e a República implantada por Machado Santos, perante a passividade do governo Teixeira de Sousa. Mais os episódios trágicos e patéticos da Primeira República, a intervenção na Flandres e em África, a tentativa regeneradora de Sidónio – prontamente assassinado. E sempre a confusão político-partidária, a guerra civil de baixa intensidade, a desordem e as tentativas contra-revolucionárias que se prolongaram por dez anos, no pós 28 de Maio.

O Estado Novo herdou o atraso profundo em que Portugal estava mergulhado, não o causou. Começou a lidar com ele com as infra-estruturas e as obras públicas, das estradas às barragens; seguiram-se as escolas, os liceus, a restauração dos monumentos.

Na grande crise europeia, houve a guerra de Espanha, com a radicalidade dos totalitarismos nos aliados de um lado e do outro: Mussolini e Hitler ao lado de Franco e dos militares rebeldes; Estaline e as brigadas internacionais comunistas ao lado do Governo da Frente Popular. Salazar apoiou Franco, mas manteve-se independente dos seus aliados objectivos em Espanha. De tal modo que, durante a Segunda Guerra Mundial, foi essencial para conseguir que a guerra não chegasse à Península, como pretendia Hitler, cobrando a Franco o apoio militar dado na Guerra Civil, e como queriam os opositores aos regimes de Lisboa e Madrid, esperando derrubá-los na guerra com o auxílio dos Aliados.

Também não foi assim e, no pós-guerra, com o início da Guerra Fria, ingleses e norte-americanos toleraram os autoritarismos peninsulares, conscientes, pelos despachos dos respectivos embaixadores, que a oposição em Portugal e em Espanha era ou seria dominada pelos comunistas.

E o Estado Novo não estava tão isolado como isso. Entrou para a NATO e para a EFTA e, até ao movimento de Descolonização e à Guerra de África, teve relações com todos os países, exceptuando os do bloco comunista.

Mas tudo tem um preço, e a partir do momento em que, numa Europa dividida entre os socialismos de partido único do Bloco soviético e as democracias ocidentais, os regimes peninsulares se tornam exóticos, a sobrevivência à pressão internacional tornou-se mais problemática. É aí que o peso dos comunistas de Álvaro Cunhal na Oposição vai ser importante para a continuidade de Salazar, com a aceitação do regime português como “mal menor” pelos países da NATO.

Entretanto, o Regime vai perdendo a batalha pelo poder cultural: Salazar, como bom conservador e pessimista antropológico, manda e comanda sozinho, não tem ministros políticos e, quando os tem, não duram muito. Numa Europa onde a Esquerda já domina a Literatura, o Cinema, as Artes, o Jornalismo – e onde a direita intelectual foi liquidada física e moralmente, em Itália e em França, no fim da guerra –, as bases doutrinárias e ideológicas do Regime caem em desuso ou começam a tornar-se excêntricas aos olhos do “mundo”.

Aquilo a que hoje se chama marxismo cultural chamava-se então  “a ditadura intelectual das esquerdas” e coexistia com a “a ditadura política das direitas”.

À dinâmica da segunda industrialização nacional – que veio com Ferreira Dias, com os Planos de Fomento, com industriais como António Champalimaud e Jorge e José Manuel de Mello, num país que começou a desenvolver-se, alcançando na década final do Regime o período de maior crescimento da história económica portuguesa –, correspondeu um progressivo e acelerado crepúsculo político, a perda do poder cultural, a derrota nas universidades e nas páginas literárias dos jornais na batalha gramsciana.

As eleições presidenciais de 1958 – com um general vindo da direita radical do Regime que, por razões pessoais, passava a  candidato da oposição – foram o sintoma e o sinal para Salazar  de que o país mudara radicalmente. O país, e o mundo e a Igreja.

E vai ser a guerra de África, começada em 1961 em Angola, que vai dar algum fôlego ao Regime, gerando, num primeiro momento, uma espécie de “união sagrada” à volta da defesa do Império, sobretudo depois dos ataques sangrentos da UPA-FNLA no Norte de Angola.

Mais uma vez, depois de alguma hostilidade, os aliados da NATO, com os Estados-Unidos à cabeça, vão ponderar as alternativas e optar por uma neutralidade colaborante com Lisboa, que será mais que isso, no caso de França e da Alemanha. Deste modo, a guerra de África, que em 1974, estaria na origem da ruptura militar que levaria ao fim do Regime, seria, em vida do seu fundador, a razão da sua continuidade.

Mas à força de ter pensado, desenhado e construído o Estado Novo, ou o Regime, e de o ter governado sozinho, Salazar acabara por criar um sistema e instituições que só funcionavam com ele.

Nesse processo fora perdendo as novas gerações. O desfecho desta sua e nossa história pode ser também uma lição sobre os custos a pagar pelos homens providenciais e excepcionais que tutelam os seus concidadãos e os homens comuns.

E as antigas oposições – a democrática e a não democrática –, uma vez no poder, acabariam por contribuir para que século XX ficasse como o século de Salazar, servindo-se de um homem morto e de um regime desaparecido para se legitimarem imputando-lhe todos os males do país, passados, presentes e futuros.

E da oposição comunista à oposição democrática, dos liberais progressistas aos bloquistas, assim continuam, com um ódio velho que não cansa e um rancor que não passa, a mantê-lo vivo pelo século XXI, cinquenta anos depois da sua morte, e poucos antes do centenário da sua entrada para o poder.