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Que o destino não está nas nossas mãos é uma verdade com que todos se conformam. Mas também escusava de ser tão contrário àquilo que cada um imagina e prevê para o seu futuro. Exemplo destas desilusões é o que se vai ler de seguida.
Na tarde de dia 9 de Agosto de 1885, o guarda de polícia nº 10, de passagem pelo Hotel Rei, toma conhecimento de que um novo hóspede ali dera entrada na véspera e regista o seu nome num bocado de papel. Já na manhã desse dia o proprietário do hotel, João António de Oliveira, mais conhecido por João Rei, se havia deslocado ao comissariado de polícia, na Praça Rodrigues Lobo, com o mesmo objectivo de informar as autoridades de que um indivíduo se havia hospedado no seu estabelecimento na tarde do dia anterior. E ainda nessa noite, na sua visita diária ao hotel, o guarda de polícia nº 5 chegará a conversar com o mesmo hóspede que lhe revela ser natural do Porto, ter regressado há pouco do Brasil e andar em viagem de recreio.
Desde que o corpo de polícia civil de Leiria tinha sido constituído, há onze anos, que imperava este zelo meticuloso. Não se imaginava que alguém pudesse alojar-se numa qualquer estalagem ou hotel da cidade sem que as autoridades viessem a saber. Tudo devia ser escrupulosamente participado. Mas uma coisa é a instituição de regras, outra é o zelo dos que devem cumpri-las. Por isso o guarda n.º 10 acabou por deitar fora o papel onde escreveu o nome do hóspede. Além disso, tanto ele como o guarda nº 5 se dispensaram de verificar o passaporte do viajante e passados três dias já ninguém sabia dizer quem era aquele homem.
A 14 de Agosto João Rei atravessa a Praça Rodrigues Lobo de novo em direcção ao comissariado da cidade mas agora com uma informação diferente: o mesmo hóspede havia abandonado o hotel dois dias antes, logo após o almoço, e não regressara como era previsto, deixando uma mala, uma bengala e um tapete.
Para além desta informação o hospedeiro pouco mais esclarece. Apenas sabia que o forasteiro se chamava ou dizia chamar João José de Almeida e que parecia ter regressado há pouco do Brasil. Tornara-se aliás conhecido entre o pessoal do hotel como o “Brasileiro”. Perante tão poucos elementos, o comissário recomenda-lhe que guarde a mala e espere. O Brasileiro haveria de regressar.
Mas os dias passaram e o viajante não regressou. Os que com ele conviveram interrogavam-se sobre o que tinha trazido aquela estranha figura a Leiria. É certo que se tinha entrado em plena época balnear. Para o dia 20, por exemplo, estava previsto um piquenique em S. Pedro de Moel organizado pelo juiz de Direito da comarca, José António de Sousa Lixa. Mas o ritual dos banhos de mar, que arrastava cortejos de criadas, crianças e mães de família, não parecia ajustar-se ao perfil solitário e sombrio do hóspede tal como o conheciam no Hotel Rei. E também não fazia sentido que o Brasileiro viesse a fugir da cólera que já chegara ao Sul da França porque nada indicava que Leiria fosse ponto mais seguro que as outras partes do reino.
Um semanário da cidade, O Distrito de Leiria, é o primeiro a informar o país, na sua edição de 23 de Agosto, do desaparecimento do Brasileiro e a colocar a hipótese de crime. Recheia a notícia de pormenores sobre a estadia do forasteiro e descreve o interior da mala deixada no hotel. O conteúdo constava de roupa variada, parte dela suja e outra em mau estado, e alguns livros, entre os quais uma gramática de francês e um método de flauta.
Existia contudo um detalhe estranho: as letras inscritas na mala – J. J. A. – correspondiam realmente ao nome com que se tinha registado – João José de Almeida – mas pareciam ter sido gravadas sobre couro raspado recentemente. Mais intrigante ainda, as iniciais lavradas na bengala eram diferentes daquelas: A. J. A.
Não era muito mas bastava para que em Leiria, nas conversas de rua, começassem a surgir as primeiras suspeitas contra João Rei. Estalajadeiros que fazem desaparecer os fregueses com o objectivo de os roubar é um motivo que desde sempre alimentou a imaginação popular. Não seria pois de estranhar que isso tivesse acontecido naquele hotel. Antecipando-se aos acontecimentos, o jornal A Verdade, de Tomar, noticia a 6 de Setembro a prisão de João Rei e do seu cocheiro. A informação era falsa mas não deixava de ser também um presságio.
Da capital são enviados para Leiria reforços policiais, supostamente capazes de ultrapassar as deficiências da polícia civil local. Das suas diligências começam então a surgir algumas descobertas misteriosas. Em 30 de Setembro são encontradas mais duas malas que João José de Almeida tinha enviado de Lisboa para a estação de caminho-de-ferro de Pombal antes do seu desaparecimento. Os repórteres d’O Commercio de Portugal descobrem no entanto uma particularidade que não bate certo: o Brasileiro tinha indicado na guia de expedição uma morada falsa, de uma loja da Baixa onde ninguém o conhecia.
Apesar da divulgação feita pelos jornais nacionais continuavam a não surgir vestígios do Brasileiro a não ser este rasto de malas abandonadas. Ainda assim, a 17 de Outubro de 1885 dá ingresso em juízo o auto de investigação policial, onde o comissário promete novos esforços. Quanto aos fracos resultados conseguidos até à data, desculpa-se com o exemplo da melhor polícia do mundo, a londrina, que também não tinha conseguido resolver casos idênticos.
Na sequência do labor policial é agora a vez de Sousa Lixa, o juiz organizador de piqueniques, fazer uma busca ao hotel e espantar-se com uma horrível descoberta. Diversas manchas de sangue espalhavam-se pelo soalho e pelo papel de parede do quarto ocupado pelo Brasileiro. Para mais os assassinos tinham-se esforçado por lavá-las e ocultá-las com novo papel. A tentativa de encobrimento do homicídio era evidente.
A história do crime de Leiria começara a ser cantada pelos cegos nas feiras, o que significava que entre o povo o veredicto tinha já sido proferido: João Rei, a sua amante Maria Antunes e o cocheiro do hotel José Ziga tinham sem dúvida cometido um crime hediondo. Pior ainda, como recorda o jornal local, tinham manchado a nome hospitaleiro da cidade de Leiria. A confirmar esta evidência surge em dada altura um depoimento que iria ser decisivo.
Azar a criados
Urbano Lopes, antigo exposto, com a idade de 18 anos e criado do Hotel Rei à época do crime, vai revelar ao juiz que tinha sido acordado bruscamente no noite do desaparecimento do Brasileiro e obrigado a tomar assento num trem juntamente com João Rei e José Ziga. Trem esse que partiu a toda velocidade em direcção ao Pinhal de Leiria, detendo-se num local que devia ficar junto ao mar, já que se ouviam claramente as ondas. Neste ponto, o seu patrão e o cocheiro saíram e embrenharam-se na escuridão do pinhal, sem que Urbano conseguisse ver o que transportavam.
A desdita de João Rei com os criados já vinha de longe. Há um ano, um deles, Manuel Pedroso, tinha sido preso por furto. Agora era a vez de Urbano denunciar o seu patrão perante a justiça. Mas o mais grave ainda estava para chegar. No dia 26 de Outubro de 1885, Delvina de Jesus, outra criada de Rei e de Maria Antunes, também recolhida na roda dos expostos 18 anos antes, depõe em juízo: “Espreitei por cima da porta do quarto do brasileiro e vi-os meterem num caixote com aros de ferro o cadáver dum homem, dobrado, tocando com os queixos nos pés”.
As revelações de Delvina de Jesus transformam-se logo numa peça fundamental para a acusação a Rei, Ziga e Maria Antunes. Mesmo que os traços fisionómicos que ela indicava estivessem longe de corresponder à verdade. Qual era então a aparência do Brasileiro? Segundo aqueles que o conheceram no hotel tratava-se de um homem de cerca de quarenta anos, estatura mediana, bigode preto e com o rosto marcado pelas bexigas, a voz por vezes aflautada, modos delicados e joviais. É assim que os párocos o descrevem aos seus fiéis durante as missas, não se cansando de apelar a que mantivessem os olhos bem abertos. E a publicidade não se limita a Leiria mas espalha-se por todo o País.
Fazendo fé no testemunho do criado Urbano Lopes, as autoridades revolvem o Pinhal de Leiria no raio de um quilómetro em redor do ponto onde o cadáver teria sido retirado do trem e ocultado. Nada se encontra. Coloca-se então a hipótese de o corpo ter sido atirado do Penedo da Saudade, nas imediações de S. Pedro de Moel. Neste caso seria perigoso e inútil procurá-lo.
Melhor resultado têm as pesquisas feitas no trem de João Rei, aquele que teria servido para transportar os restos mortais do Brasileiro. No interior aparecem salpicos de sangue, interpretados desde logo como assinaturas inconfundíveis dos perversos homicidas. Quem podia ter agora dúvidas da sua culpabilidade?
João Rei ainda tenta reagir, procurando contrariar o descrédito que começava a arruinar-lhe o negócio. No dia 8 de Novembro faz publicar um anúncio no jornal local publicitando a sua nova carreira de diligências entre Leiria e Chão de Maçãs. Mas todos os indícios estavam contra ele.
Um dia após este anúncio ser publicado, a população de Leiria reúne-se na antiga catedral numa festa de acção de graças ao Altíssimo por ter livrado a cidade da epidemia de cólera que tinha afligido o reino. E é também nesse dia que sai o despacho de pronúncia contra João Rei, Maria Antunes e José Ziga. Como nos antigos rituais de sacrifício aos deuses, destinados a aplacar a ira divina, os estalajadeiros são presos. O povo, livre da epidemia e saciado de justiça, podia agora dormir descansado.
Não faltam na cidade correspondentes espontâneos que se disponibilizam a colaborar com os jornais de Lisboa, dando a conhecer aos portugueses todas as minudências do crime. Até a ex-mulher do estalajadeiro, Vitória Amélia Rei, assina uma nota na imprensa local purulenta de ressentimentos: “Vexada pelos criminosos acontecimentos que se dizem passados no hotel do dito seu marido, os quais lastima principalmente por causa de seus filhos, a quem o pai não trepidou sacrificar…”
É neste ambiente que os três acusados deixam o Hotel Rei. Para trás ficavam ficavam as pacíficas tarefas quotidianas, em volta de tachos e panelas, mudas de roupa e limpeza de estrebarias. Durante os próximos meses, enquanto aguardam julgamento, a sua morada passará a ser o Convento de São Francisco, transformado em cadeia da comarca.
Tão difícil é morrer
No início do ano de 1886 instala-se em Leiria um novo juiz, Luís Tibúrcio Trigueiros, substituto do doutor Sousa Lixa. Esperavam-no os casos habituais, rixas de paulada e facada ou disputas de heranças. Além disso havia também aquele homicídio do brasileiro João José Almeida, mas esse era um crime praticamente resolvido. Apenas faltava aparecer o cadáver.
Só que não foi um cadáver que apareceu. No dia 15 de Janeiro de 1886 o novo magistrado, apenas há uma semana em funções, é procurado por um religioso que diz chamar-se Domingos Moreira Freire, ser abade da paróquia de S. Ildefonso, no Porto, e ter importantes revelações a fazer em relação ao caso do hóspede desaparecido. Notícia do paradeiro do cadáver não tinha. Até porque não havia cadáver. O Brasileiro estava vivo e o cura tinha-o ouvido em confissão. Preocupado desde que soubera que havia inocentes presos por sua culpa, João José Almeida tinha consentido que o pároco de Santo Ildefonso viesse a Leiria esclarecer tudo em seu nome.
Formado em Teologia, tendo sido também deputado, o doutor Moreira Freire era um clérigo respeitado (viria a ser o celebrante do casamento de Camilo com Ana Plácido daí a dois anos). Ainda assim, perante o insólito daquelas revelações, o juiz insiste na presença do desaparecido.
No dia 18 de Janeiro de 1886, pelas cinco horas da tarde, entra no tribunal João José de Almeida, “o Brasileiro”, que afinal não era brasileiro nem se chamava João nem Almeida. Ao certo nunca o juiz chegará a saber a sua verdadeira identidade. Esta era aliás uma das condições imposta pelo antigo hóspede do Hotel Rei para fazer o seu depoimento. Conformado, o doutor Tibúrcio dispõe-se, ao longo de horas, a ouvir os esclarecimentos do caso. Por fim dita para o auto:
“… o qual sendo mandado entrar disse chamar-se Albino José, de idade 46 anos, comerciante, morador em Portugal (…) e já muito antes, usava o nome de Albino José Airosa, sendo este o nome com que no Rio de Janeiro lhe foi passado o passaporte que o acompanhou para Portugal…”
“Que tendo concebido a ideia de suicidar-se, ideia a que foi levado por graves transtornos de sua vida, queria ocultar a sua família esta fatal resolução e por isso entendeu alterar as marcas que trazia nas suas malas, alteração que consistiu em raspar a primeira letra das iniciais que se viam nas mesmas malas substituindo-a por um J…”
E mais esclarecia, a instância dele, juiz, que chegado a Lisboa se tinha alojado no Hotel Paris, onde permaneceu desde Março até 8 de Agosto, data em que partiu para Leiria. E que a razão da vinda a esta cidade era a sua proximidade da Marinha Grande, localidade que tinha escolhido, após consulta de um mapa, para nela se lançar ao mar. E que uma vez ali chegado havia descoberto que a vila, apesar do nome marítimo, distava alguns quilómetros da costa. Mantendo a sua resolução, informa-se melhor e fica a saber que ali perto, na praia de São Pedro de Moel, tinha ao seu dispor uma alta falésia, o Penedo da Saudade. Mas aqui são as ondas, das mais alterosas da costa portuguesa que o fazem desistir. O depoente assusta-se e recua. Era a coragem que lhe faltava.
Os suicídios quando não correm de acordo com os objectivos passam facilmente de trágicos a cómicos. Agora, falhadas as tentativas na Marinha Grande e em São Pedro de Moel, Albino tem uma ideia: o suicídio iria realizar-se “por meio da fome ou do frio, quando inteiramente estivesse falto de meios e de roupas.” Caminha vários dias, chega a pedir esmola, mas o suicídio por método lento revela-se difícil. Encontra por fim dois amigos que o levam a desistir de pôr fim à vida.
Terminado este depoimento o juiz fica ainda incrédulo. Exige por isso confirmações. São então chamadas 16 testemunhas, entre elas alguns comensais do Hotel Rei que o tinham conhecido e que certificam ser aquele o hóspede desaparecido.
Para mais o suposto assassinado apresenta quatro chaves que abriam as malas abandonadas e estojos nelas contidos e descreve de memória o seu conteúdo. Por fim vestem-lhe o fato e calçam-lhe as botas que deixara no hotel e que lhe servem na perfeição. Não restavam dúvidas. Albino José e o Brasileiro que todos julgavam morto eram uma e a mesma pessoa.
Outras informações, com origem em ofícios enviados pelo Governo Civil de Lisboa e pela Polícia da capital dão conta do período que Albino tinha passado em Lisboa, desde a sua chegada a 9 de Março de 1885 no paquete francês Équateur, onde tinha embarcado como passageiro de 1ª classe adotando o falso apelido Airosa. Uma vez instalado no Hotel Paris, na Rua da Prata, permaneceu ali cinco meses. Segundo os empregados era muito dado à leitura de romances. Nuns dias aparentava grande tristeza, noutros ficava muito animado e entretinha-se a tocar viola.
No dia 25 de Janeiro de 1886, Albino regressa ao Porto com o seu confessor, sem que ficasse esclarecida a sua verdadeira identidade. Pertenceria a uma “família distinta da província do Douro”, garantem alguns jornais que nas últimas semanas se tinham regalado com o pitoresco daquilo a que chamavam o “romance de Leiria”. Para isso muito contribuía a personalidade do seu protagonista. O excêntrico Albino José Airosa, incapaz de ler um mapa, inventor de suicídios originais, aparecia como uma personagem burlesca de comédia.
Mas de tudo isto resultava uma situação que nada tinha de cómica. Ao partir de Leiria, Albino José deixava um vazio. Com ele partia a vítima do homicídio. Os suspeitos, esses continuavam na prisão.
Abre vaga para um cadáver
Para todos os que acompanhavam o caso, o mistério do Hotel Rei tinha chegado ao fim com o aparecimento do suposto morto. A justiça contudo, que desconfia sempre de soluções simples, pensava de outra forma. Pois não tinham sido descobertas manchas de sangue? E não havia testemunhas que garantiam ter visto um cadáver? Um processo judicial não podia terminar daquela maneira, como qualquer historieta. O crime continuava assim por resolver.
O Tribunal da Relação de Lisboa, ao qual é apresentada a situação, confirma no seu acórdão de 3 de Abril o despacho de pronúncia dos acusados, mandando que se altere a parte que designa a vítima. Dito de outra forma, a Relação continuava a acreditar na existência de um crime mas agora na pessoa de um indivíduo desconhecido.
Aos olhos dos portugueses o caso de Leiria tornava-se cada dia mais incrível. Os mistérios policiais, que começavam a tornar-se moda nos jornais, partiam em regra de um cadáver para a descoberta dos criminosos. Mas agora era o contrário que se passava. Ao crime do Hotel Rei faltava um cadáver.
O advogado Afonso Xavier Lopes Vieira, pai do futuro poeta com mesmo nome, torna-se na última esperança dos réus. Lopes Vieira vai apresentar o processo de revista ao Supremo Tribunal de Justiça.
Para isso vai começar por ter de rebater os dois principais testemunhos, a começar pelo da criada Delvina de Jesus que após o regresso de Albino tratou de alterar o seu depoimento inicial: o cadáver afinal tinha sido cortado em pedaços por não caber inteiro no caixote. Alem disso tratava-se “de um homem ainda muito novo, bonito, alto, magro e claro”, ou seja, tudo aquilo que o Brasileiro não era. Quanto a Urbano Lopes, o advogado de defesa vai descobrir que os seus testemunhos tinham tido diversas versões, incluindo uma em que revela que a viagem nocturna ao Pinhal Real “era mentira e invenção sua”.
Mas faltava ainda esclarecer o sangue – as manchas e salpicos encontrados no trem do suposto homicida, no soalho e nas paredes do quarto que o Brasileiro tinha ocupado no hotel e até no corredor. O Ministério Público garantia que este sangue não podia ser devido a hemorragia. Mas era. Afonso Xavier Lopes Vieira descobre no processo dois testemunhos que os investigadores não valorizaram. A lavadeira da roupa do hotel, Emília de Jesus, garantia ter lavado roupa ensanguentada que Maria Antunes lhe dissera ser de João Rei. E outra testemunha, Adelaide de Jesus, mulher do cocheiro, atestava que nesse Verão o marido ia com frequência a casa de João Rei receber ordens porque o patrão não podia sair devido ao sangue que deitava pelo nariz.
O advogado insiste ainda na ausência de corpo de delito, já que os autos não mostravam que alguém tivesse sido morto ou estivesse desaparecido. Mas não convence os juízes de última instância. Em 17 de Dezembro de 1886 o Supremo Tribunal de Justiça decide que o gerente hoteleiro e os seus cúmplices devem ser submetidos a julgamento.
A João Rei restava-lhe esperar. Ao longo de mais 8 meses vai ter tempo de sobra para todas as conjecturas e pensamentos hipotéticos. E se o brasileiro tivesse levado a bom termo o seu projecto de suicídio? Se o seu corpo tivesse desaparecido no mar? Ou se, uma vez desistindo do suicídio, não tivesse revelado que estava vivo?
No dia 17 de Agosto de 1887 inicia-se finalmente o julgamento. O advogado de defesa era agora o antigo presidente da Câmara de Leiria, Abílio Barreto de Figueiredo Perdigão. As audiências não trazem novidades: os jornais dizem que as testemunhas mantiveram a sua versão dos factos mas como algumas mudaram duas e três vezes as suas versões desconhece-se qual apresentaram em tribunal.
Ao fim de três sessões é lida a sentença que absolve os acusados. Tinham-se passado dois anos e uma semana desde aquela tarde de quarta-feira em que Abílio José resolvera abandonar o Hotel Rei com o objectivo de se suicidar aos poucos. Dois anos e uma semana de calvário judicial para os três inocentes.
João Rei, Maria Antunes e José Ziga abandonam por fim o presídio. Alguns dias mais tarde o antigo estalajadeiro publica no jornal O Distrito de Leiria uma nota de agradecimento aos que o apoiaram. O seu reconhecimento dirige-se em particular aos carcereiros, talvez em reconhecimento por ao longo de 21 meses de prisão terem sido os únicos que lhes ouviram os lamentos.
Para João Rei não se tratava de um fim feliz. Estava arruinado e tinha perdido o seu hotel, vendido em leilão a 14 de Março de 1886. E logo agora, quando o troço da Linha do Oeste de Torres Vedras a Leiria já estava a funcionar, abrindo novas perspectivas para o negócio. Começar de novo revelava-se contudo difícil. Até porque já tinha sido inaugurado um moderno Hotel dos Caminhos de Ferro.
Não lhe restava nada. Nem sequer um nome a quem rogar pragas. Porque ninguém em Leiria, nem João Rei, nem o juiz, nem a Polícia Civil chegaram a saber ao certo como se chamava o “Brasileiro”.