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“Isto é um desastre histórico de proporções bíblicas. O Partido Democrata, como existe, morreu.” O óbito foi declarado esta quarta-feira no Wall Street Journal por Chris Kofinis, estratega democrata. “Este é um realinhamento histórico. Havia democratas que votaram em Reagan. Agora há democratas que votam em Trump.”
A sentença de Kofinis é o sinal de partida do processo interno do Partido Democrata para analisar como foi possível a vitória esmagadora de Donald Trump esta terça-feira. O republicano não conquistou apenas todos os swing states (como se fosse coisa pouca); conseguiu um aumento considerável de votação junto de várias fatias do eleitorado tradicionalmente mais pró-democratas, em zonas urbanas e suburbanas, como as minorias e alguns jovens.
Perante a hecatombe, a autópsia começa a ser feita e os atores políticos começam a posicionar-se. Não por acaso, Kofinis é antigo chefe de gabinete de Joe Manchin, senador democrata que se afastou do partido no último ano por considerar que este não estava a seguir o rumo certo para apelar às classes trabalhadoras de estados como o que representou, a Virgínia Ocidental. Mas, do outro lado, a fação mais à esquerda do partido também está a afiar as facas para argumentar que o futuro dos democratas só se assegura com um combate de classe mais aguerrido (e com posições diferentes em matérias de política externa, como em Gaza).
Os sinais de incredulidade e desilusão de muitos eleitores democratas pelo resultado já eram visíveis na manhã desta quarta-feira a partir de Washington, DC. O dia estava anormalmente quente e soalheiro — “Quem diria que é novembro?”, comentava uma pessoa com outra na rua, olhando para o céu —, mas nem por isso houve mais gente a sair à rua para se manifestar contra Trump, como aconteceu em 2016 após a sua primeira eleição. Nos cafés e supermercados do centro da capital, todas as conversas redundavam na noite passada: o que podia Kamala Harris ter feito de diferente, o peso de Biden na campanha, e a repetida frase “como é possível que isto tenha acontecido?”.
À tarde, Kamala Harris discursava, assumindo a derrota, mas deixando uma mensagem de esperança para os que votaram nela e de promessa no combate a ações de Trump que possam por em causa as instituições. Sinal claro de que não deixou cair a possibilidade de se manter na arena política
Todas as peças do tabuleiro estão em jogo, numa altura em que o partido precisa de entender o que correu mal, como se reorganizar e, sobretudo, como convencer no futuro os eleitores de que é uma melhor solução para o país do que Trump — que, após esta eleição, terá não só a presidência, como um Congresso muito mais favorável do que teve em 2016 e uma maioria conservadora no Supremo Tribunal que pode crescer ainda mais. Mas, perante o desastre da campanha de Harris, o Partido Democrata prepara-se agora para uma longa travessia no deserto, marcada pela introspeção.
Biden e Walz, os primeiros a quem se aponta o dedo internamente
Ainda durante a noite eleitoral, as fontes internas da campanha e do partido apressaram-se a passar aos jornalistas norte-americanos repetidamente uma ideia: a de que Kamala Harris perdeu a eleição por causa de Joe Biden. “Porque é que ele não desistiu antes?”, questionava um dos financiadores da campanha à Reuters. “Joe Biden é a única razão pela qual Kamala Harris e os democratas perderam esta noite”, decretava à mesma altura um membro da equipa ao Politico.
A lógica destas críticas é simples de entender: perante a evidência de que muitos eleitores quiseram castigar a antiga administração pela inflação e pelas dificuldades económicas que sentem, se o Presidente tivesse dado oportunidade a Harris antes, tudo poderia ser diferente.
Mas isso também responsabiliza a própria candidata, que alguns consideram não ter feito o melhor trabalho a distanciar-se do antecessor, por temer ser vista como desleal. O exemplo mais óbvio foi o de uma entrevista ao programa da ABC The View em que, quando lhe perguntaram se teria feito algo de forma diferente do que Biden fez, Harris respondeu “não me vem nada à cabeça”. Mais tarde, tentou corrigir, dando a garantia de que teria feito uma coisa: escolhido um republicano para o seu governo.
“Não há dúvidas de que esta eleição não foi tanto sobre Trump e foi mais sobre o descontentamento com Biden”, reconhece ao Observador Berwood Yost, diretor do centro de pesquisa da Franklin & Marshall College, na Pensilvânia. Ao longo dos últimos meses, este investigador fez centenas de inquéritos no swing state decisivo onde, uma e outra vez, os eleitores lhe apontaram a economia como a sua principal preocupação e culparam o atual governo pelas dificuldades.
Mas isso não significa que, se Biden tivesse dado o lugar mais cedo a Harris, tudo se teria resolvido. O facto de ela ser sua vice-presidente também estava entranhado nessa perceção. “Talvez se o candidato não fosse nenhum deles, os democratas teriam conseguido ultrapassar isso”, nota Berwood Yost, falando na possibilidade de terem ocorrido primárias competitivas dentro do partido. “Porque, da maneira que tudo está, ela nunca conseguiu distanciar-se das políticas de Biden.”
Se a proximidade a Biden é apontada como um dos erros, outros falam na escolha de Tim Walz para vice-presidente, em vez de Josh Shapiro, o governador da Pensilvânia que poderia ter ajudado a vencer esse estado e talvez a captar eleitores noutras zonas. Mas analistas como Yost têm dúvidas de que o problema dos democratas se resuma aos rostos: “O que definiu esta eleição foi o contexto”, explica.
Como os ataques a Trump podem ter prejudicado Harris: eleitores preocuparam-se mais com “o contexto” do que com o caráter dos candidatos
Os resultados da noite de terça-feira mostram ainda tendências que tornam mais difícil para os democratas descobrir como se reerguer depois desta derrota. O partido teve uma sangria de votos por todos os lados, incluindo em partes do eleitorado que achava estarem mais seguras.
O tema do aborto não chegou para convencer a maioria das mulheres dos subúrbios. Os jovens, incluindo muitos que votavam pela primeira vez, não ficaram todos com Harris — com destaque para os homens, que maioritariamente preferiram Trump. Os afro-americanos não lhe deram o mesmo apoio que deram a Joe Biden. Os muçulmanos no Michigan (ajudados por alguns jovens nesse e noutros estados) castigaram os democratas pela situação em Gaza. E até os latinos, cujo voto a esquerda achava ter garantido graças às propostas anti-imigração de Trump, votaram em números consideráveis no adversário.
Para alguns analistas, isso explica-se em parte pela decisão da campanha de Harris de ter focado muita da sua mensagem no adversário, retratando-o como uma ameaça à democracia — nas últimas semanas de campanha, Harris não se acanhou de o apelidar de “fascista” e repetiu várias vezes que o ex-Presidente era “descontrolado e instável”. O conhecido especialista em sondagens Frank Luntz considera que isso custou a eleição a Harris: “Os eleitores já sabem tudo o que há para saber sobre Trump. Queriam era saber mais sobre os planos dela”, escreveu no X. “Foi um erro colossal por o foco em Trump e menos nas ideias da própria Harris.”
Kamala Harris lost this election when she pivoted to focus almost exclusively on attacking Donald Trump.
Voters already know everything there is about Trump – but they still wanted to know more about Harris’ plans for the first hour, first day, first month and first year of her… https://t.co/uCCl4WCykh
— Frank Luntz (@FrankLuntz) November 6, 2024
John Sides, professor de Ciência Política da Universidade de Vanderbilt, fez o mesmo aviso durante a campanha. “É mais fácil ganhar vantagem com assuntos do dia a dia como a saúde do que com uma mensagem estilo ‘a alma da nação’ usada por Joe Biden, focada em Trump como ameaça à democracia.”
Já Bernwood Yost diz que era muito difícil ter certezas sobre o comportamento do eleitorado nesta eleição a priori e desconfia de quem tem muitas certezas nas previsões. Mas sublinha que agora, conhecidos os resultados, tornou-se evidente que esta não foi uma corrida definida pelo caráter dos candidatos. “Os dados mostram que até pessoas que têm uma perceção negativa de Trump votaram nele à mesma”, explica.
Chegar à classe média e trabalhadora pelo centro ou pela esquerda? O paradoxo dos democratas
Perante este diagnóstico, o partido deverá agora enfrentar as brechas que se abrem após as derrotas. A primeira começa já a surgir sobre como apelar à classe trabalhadora — seja de que etnia for —, já que a classe parece ter-se notado no indicador mais fiável para determinar quem são os eleitores de Trump (as classes operárias e parte da classe média em dificuldades, sobretudo com menos escolaridade) e os de Harris (os eleitores com mais estudos). “Estamos a falhar porque não conseguimos chegar a eleitores da classe trabalhadora suficientes, não apenas os brancos, mas também os latinos e negros dessa classe”, notava um estratega do partido na Pensilvânia esta quarta-feira ao Politico.
Por um lado, há a questão económica. Os democratas reconhecem o peso da inflação na vida das pessoas, mas consideram que é fruto de fatores externos como a pandemia e a guerra na Ucrânia e mantinham esperança de que, com a melhoria económica dos últimos meses, isso fosse esquecido pelos eleitores — o que não aconteceu.
Por outro lado, há a perceção entre muitos eleitores de que o Partido Democrata está refém de uma elite urbana e confortável economicamente, na qual não se reveem. Van Jones, antigo conselheiro de Barack Obama, alertou para isso mesmo durante a campanha, dizendo que o partido não se deveria focar tanto em comícios com grandes estrelas e mais no trabalho porta a porta com eleitores. “A classe trabalhadora às vezes tem de escolher: ‘Vou àquele comício com um concerto fixe e pagar a uma baby sitter ou vou deixar isso para o dia em que precisar de ir votar’?”, disse na CNN.
A situação complica-se quando essa perceção de elite se interliga com temas de política identitária que muitos eleitores de classe trabalhadora e também de classe média se sentem desconfortáveis e que os faz afastarem-se do partido. Bret Stephens, colunista do New York Times (republicano, mas que votou em Harris), alertou para isso várias vezes nos seus últimos artigos, acusando os democratas de assumirem muitas vezes uma postura de “sobranceria”, “condescendência” e de “sentido de identidade acima de sentido de classe” que aliena muitos eleitores.
A grande questão é, claro, como pode o partido navegar estes problemas. “A luta interna vai ser significativa. Há uma tensão entre a ala mais moderada e a mais progressista”, resume Yost. De um lado, há quem defenda uma aproximação aos eleitores através do estilo Joe Manchin, com uma viragem para o centro que deixe de lado as guerras culturais e se foque mais nas políticas económicas; do outro, a ala mais à esquerda ligada a figuras como Alexandra Ocasio-Cortez, Bernie Sanders e Rashida Tlaib considera que é preciso uma revolução económica que taxe os mais ricos e crie uma rede de apoio de estado social.
O paradoxo é que, seja através de uma ou de outra estratégia, ambas as alas têm fraquezas que alienam os próprios eleitores que procuram: ao centro, posições como o apoio à Ucrânia e a Israel são impopulares junto de vários americanos de classe trabalhadora, ainda marcados pelo legado das guerras dos neoconservadores, em particular a do Iraque; à esquerda, o foco no identitarismo traz de imediato o carimbo de woke e a rejeição de muitos eleitores.
O paradoxo é claro como água em algumas das outras corridas que tiveram lugar neste dia 5. Na Virgínia Ocidental, os democratas desistiram de apresentar um substituto para Joe Manchin no Senado, por saberem que já era evidente que iriam perder para um republicano (como aconteceu). Já Sherrod Brown, um dos senadores democratas que mais simboliza o tipo de democrata “New Deal”, focado no apoio à classe operária, perdeu — deixando o estado do Ohio sem nenhum senador do partido. Em contraciclo, círculos urbanos festejaram a eleição de candidatos negros e transgénero e em vários estados houve vitórias em propostas para manter o direito ao aborto e despenalizar a canábis.
A dor de cabeça para os democratas sobre como fazer esta quadratura do círculo começa agora. E começa perante uma nova presidência de Donald Trump que, desta vez, está reforçado em várias frentes. No Congresso, os republicanos dominam agora o Senado e estão mais fortes na Câmara dos Representantes. E no Supremo Tribunal a atual maioria é conservadora — e pode mesmo vir a reforçar-se se alguns juízes decidirem reformar-se entretanto e couber a Trump escolher os sucessores.
Tudo isto com um Partido Democrata que não tem agora uma liderança clara, com Biden de saída e os Obamas a não parecerem interessados em envolverem-se novamente na política. Kamala Harris parece achar que ainda tem hipóteses, apesar da derrota, de liderar o partido na oposição a Donald Trump. No discurso de derrota desta quarta-feira, assumiu que “às vezes a luta demora mais tempo, mas não significa que não se vença”.
O retrato parece sombrio para os democratas, mas, em política, o que parece certo hoje pode mudar amanhã. Como nota Berwood Yost, é impossível saber como será a próxima presidência Trump e que efeito isso pode ter nos eleitores e nas suas opiniões face aos democratas. “Nós exageramos sempre a seguir às eleições”, declara. “Às vezes é tudo muito mais simples: é sobre o contexto, não sobre o candidato. E quem sabe qual será o contexto quando vier a próxima eleição?”