Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Um orçamento de continuidade na Saúde

De acordo com o que consta no Orçamento do Estado para 2019, o governo prevê um crescimento da despesa em saúde na ordem dos 5% face ao valor estimado para 2018 (10.396 milhões de euros) e de 7.1% se comparado com o valor inscrito no Orçamento do Estado para 2018 (10.196 milhões de Euros), o que eleva o nível de despesa em Saúde para os 10.922 milhões de Euros. Esta discrepância de 2.1 pontos percentuais entre o orçamentado e o executado não é de somenos importância: são 200 milhões de euros, o suficiente para construir quatros alas pediátricas equivalentes à que está projectada para o Centro Hospitalar São João, o infame Joãozinho.

A diferença está nas famosas cativações. Apesar de tudo, o sector da Saúde foi o menos fustigado pela mão-de-ferro do ministro das Finanças, e neste orçamento parece continuar a não ser excepção. Quando olhamos para a evolução da despesa corrente em saúde, rubrica que engloba salários, consumíveis clínicos, medicamentos e a contratualização de todo o tipo de serviços necessários à prestação de cuidados de saúde, percebe-se a parcimónia na utilização deste instrumento de gestão orçamental num contexto tão sensível como o da Saúde.

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Uma rápida análise da despesa corrente permite verificar que esta tem crescido, em nível e em percentagem do PIB, o que, em grande parte, pode ser explicado pela evolução dos custos com pessoal. A redução do horário de trabalho da função pública para as 35 horas equivaleu, grosso modo, a uma redução de 12.5% na força de trabalho (o valor efectivo é ligeiramente menor, pois nem todos os profissionais estão abrangidos por um contrato de 35 horas). Numa força de trabalho de cerca de 114 mil profissionais (número de profissionais no SNS em Janeiro de 2016), isso exigiria contratar cerca de 14 mil novos profissionais só para compensar a redução. Foram contratados cerca de 9 mil.

Em resumo, nada de substancialmente novo aporta o Orçamento do Estado para 2019 nesta rubrica. Estima-se que a despesa corrente continue a crescer, o que se deve em grande parte aos custos com o pessoal, em particular à já anunciada revisão das carreiras de enfermagem, assim como às reposições e progressões nas diversas carreiras.

O corpo é que paga

Nem todos os partidos que apoiam a actual solução governativa concordarão, mas os recursos são limitados. Se isto é verdade em circunstâncias normais, é ainda mais num cenário de consolidação orçamental, vulgo austeridade, que se mantém e manterá em vigor durante muitos anos. Isso obriga a fazer escolhas, e o Governo, legitimamente, fez as suas: decidiu canalizar a pequena margem proporcionada por um bom crescimento económico e pelo aumento da receita fiscal para acomodar a redução do horário de trabalho dos funcionários públicos, para a reposição de rendimentos e para a progressão nas carreiras, como aliás ficou patente nos gráficos anteriores.

Ocorre que as escolhas têm consequências, e esta escolha também: a reposição de rendimentos obrigou a que se reduzisse substancialmente as verbas do investimento público em todos os sectores, incluindo no da Saúde. Como resultado, suspendeu-se a construção ou ampliação de novos centros de saúde e de hospitais, a compra e a manutenção de máquinas de exame e diagnóstico, e até cirurgias oncológicas ficaram pendentes por falta de autorização do Ministério das Finanças para as obras de ampliação do bloco operatório do IPO Lisboa. Houve um acentuado, e consciente, degradamento das infraestruturas em que assenta o Serviço Nacional de Saúde, sob claro prejuízo da qualidade da prestação dos cuidados de saúde e dos tempos de acesso.

Este impacto está materializado na evolução da despesa em capital, cuja conta mais relevante é a do investimento. De uma forma geral, o investimento público desceu para níveis historicamente baixos, mais baixos do que em qualquer ano da anterior legislatura, que, como bem sabemos, exerceu em condições de resgate externo. Na Saúde, a situação não destoou. Quando traçamos a evolução da despesa de capital, verificamos que houve uma queda acentuada nos últimos anos, pese embora o valor inscrito nos orçamentos sugerir o contrário. Nas projecções (barras a azul claro), o investimento surge em claro crescimento. Contabilizada a mão-de-ferro de Mário Centeno, os valores baixam substancialmente (barras a azul escuro). A execução esteve sempre, em média, 50% abaixo do valor orçamentado.

No geral, a expectativa para o Orçamento do Estado de 2019 é que esta situação se inverta definitivamente, e que feitas reposições e as progressões na carreira, o investimento público possa retornar a valores que permitam pelo menos repor o capital depreciado, i.e., as máquinas que avariam. Esse é, pelo menos, o valor orçamentado. Do valor orçamentado ao que é efectivamente executado vai uma cativação de distância.

A economia circular no sector da Saúde: reciclar anúncios

Uma das inscrições marcantes do Orçamento de Estado para 2019, destacada, aliás, pelo ministro das Finanças na conferência de imprensa de apresentação, foi o da criação de cinco novos hospitais. São eles o Hospital de Lisboa Oriental, o Hospital Central do Alentejo (Évora), o Hospital de Sintra, o Hospital do Seixal e o Hospital Central da Madeira. É um elevado investimento de capital, sendo que apenas no caso do Hospital de Lisboa Oriental será contratualizada a construção, através de uma PPP, a um privado. Nos restantes casos será o Estado a avançar com o investimento.

É, no entanto, algo estranho que seja referido no Orçamento de 2019, e inscrita verba para o efeito, quando muito dificilmente alguma das obras arrancará no próximo ano. Recordemos, a esse propósito, uma intenção referida num outro Orçamento do Estado: “Permanece o objetivo de concluir o processo concursal para a construção do Hospital Oriental de Lisboa”. Esta citação, datada de Outubro de 2014, altura em que a proposta do Orçamento do Estado para 2015 foi entregue no Parlamento, já dava conta da intenção de arrancar com o concurso para a construção do hospital. Foi só em Dezembro de 2017, volvidos dois anos e dois meses da actual legislatura, que finalmente avançou o contrato.

Aliás, já o Orçamento do Estado para 2018 referia a aposta em novas unidades hospitalares, incluindo, uma vez mais, o Hospital de Lisboa Oriental: “Simultaneamente, apostou-se na melhoria dos cuidados de saúde hospitalares, rentabilizando a capacidade instalada do SNS, modernizando equipamentos e dando início a um novo ciclo de investimentos em infraestruturas hospitalares e o lançamento de quatro novos hospitais: Hospital de Lisboa Oriental; Hospital Central de Évora, Unidade Hospitalar do Seixal e Unidade Hospitalar de Sintra”.

Este é, portanto, um reciclar de anúncios antigos, que pouco ou nenhum impacto terão no actual Orçamento do Estado, pois a despesa está diferida no tempo. Servem mais de propaganda governamental — ou não coincidisse este orçamento com ano de eleições — do que um juízo sério de intenções.

O sector da saúde enquadrado num orçamento global

Numa análise global, percebe-se que os Orçamentos do Estado apresentados por este governo são um conjunto de medidas avulsas, negociadas sectorialmente, muitas por imposição dos partidos que suportam a coligação, e que não reflectem nenhuma visão, nenhuma estratégia — independentemente de considerarmos certa ou errada —, excepto a de devolver os rendimentos que começaram a ser cortados a partir de 2010, estratégia que se esgota assim que esses rendimentos forem devolvidos.

Mas talvez uma profunda reflexão não fosse despicienda. Sabemos que a demografia está a criar enormes problemas de sustentabilidade no sistema de providência, mas nunca foi abordada, nestes três anos, qualquer possibilidade de reforma da Segurança Social. A justiça é um empecilho, quando deveria ser exactamente o mecanismo que facilita as relações contratuais entre os agentes. A economia está no eterno catching up com a Europa, sendo que, entretanto, já foi ultrapassada por vários países do leste da Europa e do báltico. As finanças públicas continuam altamente deficitárias, não obstante o esforço feito pelo anterior e pelo actual governo para consolidar as contas, sendo que continuamos a ter a 6.ª maior dívida pública do mundo. Estes problemas não têm uma solução milagrosa, mas exigem certamente discussão pública e reflexão, que esteve completamente ausente. Gere-se o dia a dia.

O contexto da Saúde, então, é particularmente preocupante, e exigiria uma reflexão mais profunda. Temos uma população em envelhecimento, que cada vez requer mais cuidados de saúde. Temos listas de espera de meses, quando não de anos. Temos unidades de saúde que não têm capacidade de resposta ou condições para prestar cuidados de saúde de forma adequada. Reduzir para 35 horas e repor rendimentos são escolhas legítimas, mas têm um custo: o custo do que poderia ser feito em alternativa. E será que haveria alternativas melhores?

O Orçamento do Estado para 2019 não será certamente o instrumento para conduzir as reformas de que o país precisa, mas pode ser o salvo-conduto que nos obriga a discutir as escolhas que temos de fazer: onde vamos alocar o pouco dinheiro que temos. O que vemos, de uma forma geral, é uma total passividade e anuência para com o dia-a-dia. Os problemas não desaparecem porque deixamos de falar deles. “Este orçamento é histórico”, garante-nos o ministro das Finanças. Não sabemos se é histórico, mas a história parece repetir-se: mais um ano, mais uma oportunidade perdida.

Mário Amorim Lopes é Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Porto, Assistente Convidado na Católica Porto Business School, Investigador no INESC-TEC, membro do Parlamento da Saúde, doutoramento na área de Gestão e Economia da Saúde.