Índice
Índice
“Eu não nasci chanceler. E nunca me esqueci disso.” Angela Merkel anunciou assim esta segunda-feira a sua decisão de abandonar a liderança da União Democrata Cristã (CDU), o maior partido da Alemanha. Isso significa que, após 2021 — ou até antes disso, em caso de queda do Governo —, Merkel deixará de ser chanceler, um cargo que ocupa desde 2005. Nos últimos 13 anos, a antiga cientista de química quântica dominou a política do seu país e moldou o panorama europeu à sua imagem. Agora, aparentemente de repente, anuncia que irá bater com a porta.
A decisão foi anunciada na sequência dos resultados da eleição regional em Hesse no passado domingo, onde a CDU desceu dez pontos percentuais quando comparado com o resultado de 2013, embora tenha sido o partido mais votado. É, contudo, o segundo rombo na popularidade da CDU e do seu partido irmão na Baviera, a CSU, que registou outra queda de 10% nas eleições estaduais de há menos de duas semanas. Os alemães já lhe chamam Schicksalswahl — que é como diz uma votação, ou uma escolha, do destino.
Se em tempos Merkel defendia que o cargo de chanceler deve ser ocupado pelo presidente do partido mais votado, agora parece ter mudado de ideias, ao anunciar que irá abandonar a liderança da CDU mas que se mantém à frente dos destinos do país. “É uma empreitada arriscada, não há dúvidas”, concedeu perante os jornalistas na segunda-feira. “Mas depois de pesar as vantagens e as desvantagens, cheguei à conclusão de que [a decisão] é justificada. Quero que o meu partido tenha a liberdade de preparar o futuro decentemente.”
Será, ao que tudo indica, o ponto final de uma longa carreira política, cuja força e determinação acabaram manchadas neste último mandato como chanceler. Depois de sérias dificuldades para formar uma coligação com os Verdes e o Partido Liberal (FDP), acabaria por voltar a cair nos braços dos sociais-democratas do SPD.
Internamente, tem sido tímida mas crescentemente desafiada — como comprova a nomeação recente do líder do grupo parlamentar da CDU, tendo o favorito de Merkel (Volker Kauder) perdido para Ralph Brinkhaus. A nível nacional, tem assistido, impotente, à sangria de votos dos partidos do centro para a Alternativa para a Alemanha (AfD, direita) e para os Verdes (esquerda). E, no plano europeu, não tem conseguido solucionar questões bicudas como o Brexit ou o plano europeu para redistribuir refugiados e migrantes. Esta saída anunciada pode, por isso, ter chegado tarde demais, como resumiu o seu biógrafo Dirk Kurbjuweit (autor de “Die Kanzlerin für alle?” – “Uma chanceler para todos?”) ao Politico, comparando-a a Konrad Adenauer e a Helmut Kohl: “Não compreenderam que, àquela altura, já havia melhores candidatos do que eles e falharam a saída.” Também Merkel, acredita, perdeu a oportunidade de sair em estado de graça.
A líder Merkel em cinco momentos decisivos
Nos 18 anos que esteve à frente da CDU — 13 deles a comandar os destinos da Alemanha — foram vários os momentos definidores do caráter de Angela Merkel, primeira mulher chanceler na História do país. Entre cambalhotas políticas e medidas mais ou menos populares, Merkel foi traçando um caminho único entre os líderes europeus. Alguns desses momentos são bem ilustrativos desse percurso.
A “rapariga” trai o seu mentor
Eleita deputada pela CDU em 1990, logo após a reunificação, a jovem Merkel não tinha um grande passado político ou aparente consciência política. Criada na Alemanha de Leste, a chanceler já contou várias vezes como no dia da queda do Muro de Berlim decidiu manter a sua rotina e ir primeiro à sauna antes de ir ver o que se passava na fronteira com Berlim Ocidental: “Pensei que se o Muro tinha sido aberto, dificilmente voltaria a ser fechado, por isso decidi esperar.” O pragmatismo tornar-se-ia imagem de marca da sua carreira.
Talvez tinha sido esse mesmo pragmatismo que a fez, sem hesitar, puxar o tapete ao seu mentor. Helmut Kohl deu a Merkel a alcunha “das Mädchen” (a rapariga), mas deu-lhe também o seu primeiro cargo de relevância política, ao nomeá-la ministra dos assuntos das mulheres e dos jovens em 1991, quando Merkel tinha 37 anos. Anos mais tarde, quando Kohl foi envolvido num escândalo de doações não declaradas ao partido, Merkel não hesitou em criticar o antigo mestre, escrevendo um artigo de opinião no Frankfuerter Allgemeine a pedir a demissão do líder. Meses depois, era eleita líder da CDU.
O dia em que Putin tentou intimidá-la — e falhou
Com Vladimir Putin, Merkel protagonizou um episódio que ficou nos anais da política internacional. Em 2007, num encontro com o Presidente russo, Merkel ficou desconfortável quando Putin trouxe para a sala a sua cadela Konni, de raça labrador. O líder russo sabia que a chanceler tinha medo de cães, desde que foi mordida em criança. “Eu percebo porque é que ele faz isto, tem de provar que é homem”, declarou Merkel mais tarde. “Tem medo da sua própria fraqueza. A Rússia não tem nada, nenhum sucesso na política ou na economia. Só têm isto.”
O encontro poderia ter servido para marcar uma dinâmica de dominância de Putin sobre Merkel daí para a frente, mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, a chanceler assumiu o papel de líder capaz de fazer voz grossa à Rússia, ao mesmo tempo que mantinha os canais de comunicação abertos. Foi assim a propósito da anexação da Crimeia e na guerra no leste da Ucrânia, com Merkel a liderar o esforço para impor sanções a Moscovo, ao mesmo tempo que promovia as conversações de paz em Minsk.
Amparada pelo seu conhecimento de russo, por ter crescido na RDA, Merkel sempre comunicou com Putin de igual para igual. O Presidente russo também sabe alemão, dos tempos que esteve colocado em Dresden como agente do KGB, e os dois parecem ter um entendimento menos superficial do que o que Putin mantém com outros líderes europeus. Algo que se pode explicar, em parte, pelo esforço contínuo de Merkel para tentar compreender a Rússia e os seus líderes. No perfil da chanceler publicado pela New Yorker em 2014, destacava-se como Merkel tinha no seu escritório um retrato da czarina Catarina, a Grande, e como sempre desconfiou do Presidente russo. “Ela sempre foi cética em relação a Putin, mas não o detesta. Detestar seria algo demasiado emotivo”, resumiu Bernd Ulrich, do jornal Die Zeit.
Nuclear: cambalhota política ou leitura correta dos tempos?
Em 2011, Merkel protagonizou uma das mais apertadas inversões de marcha da política alemã ao alterar por completo a sua posição face à energia nuclear, na sequência do desastre de Fukushima no Japão. Se até aí tinha sido uma apoiante firme da energia nuclear, após o acidente anunciou que a Alemanha iria abandonar esta forma de produzir energia e dedicar-se antes à produção de energias renováveis, numa mudança inesperada.
Essa política de energia mais limpa ainda não alcançou todos os resultados esperados — o país não está a conseguir cumprir as metas de redução de emissão de gases a que se propôs —, mas goza de um amplo consenso na sociedade alemã.
Esta mudança súbita de opinião é um dos exemplos do caráter político da alemã, que gosta de analisar em silêncio as situações e as pessoas, para depois agir e falar, por vezes surpreendendo. “Pragmatismo” da chanceler para uns, falta de princípios para outros. Recentemente, tal foi visível na sua posição face ao casamento gay: depois de anos a opor-se à permissão, Merkel surpreendeu todos ao trazer o assunto para ser votado no Parlamento. Votou contra, agradando à sua base eleitoral, mas deu liberdade de voto e permitiu assim que a medida fosse aprovada.
Para o biógrafo Kurbjuweit, Merkel é inteligente e sabe “passar mensagens de uma forma que torna impossível que os eventos futuros a contradigam ou que as pessoas fiquem zangadas com ela”. O investigador da Chatham House, Hans Kundnani, coloca as coisas de outra forma ao defini-la como “uma bola de contradições” ou alguém “completamente sem princípios”.
“Madame Non” da crise financeira europeia
A crise financeira europeia tornaria Merkel um rosto conhecido por muitos europeus, sobretudo em países do sul como a Grécia ou Portugal. A sua postura inflexível de defesa da austeridade levou a que se tornasse quase odiada por muitos, mas Merkel nunca cedeu um milímetro na sua posição e, com a ajuda do seu ministro das Finanças Wolfgang Schäuble, conseguiu impor a sua visão ao resto do continente. ”Todos usam o termo austeridade. Isso faz com que pareça algo verdadeiramente maléfico”, declarou a chanceler a certa altura. “Eu chamo-lhe equilibrar o orçamento.”
Os franceses chamavam-lhe à porta fechada “Madame Non”, mas, quer com Nicolas Sarkozy quer com François Hollande, revelaram-se incapazes de contrariar a lógica germânica nas reuniões do Eurogrupo. A manutenção do projeto europeu era um objetivo fulcral, sem dúvida, mas Berlim sabia que o seu eleitorado não via com bons olhos os milhões investidos nos países do sul. E, assim, as linhas vermelhas dos alemães mantiveram-se, como foi o caso da (não) renegociação da dívida grega.
“A paciência é o segredo do sucesso de Merkel”, resume Ralph Bollmann, autor da obra Die Deutsche: Angela Merkel und wir (Os alemães: Angela Merkel e nós, em português). “Ela é muito mais paciente do que qualquer outro político na Alemanha, na Europa ou no mundo.” E, no fim, leva a água ao seu moinho.
A ação contra-corrente de receção dos refugiados que lhe pode ter saído cara
Em 2015, perante um fluxo de chegada de requerentes de asilo em massa à Europa, Angela Merkel tomou uma decisão atípica, declarando uma política de portas abertas na Alemanha. “Wir schaffen das” (“nós conseguimos”), disse aos alemães, que receberam assim quase um milhão de pessoas.
A coragem política foi-lhe elogiada, a revista Time escolheu-a como personalidade do ano, houve rumores de que poderia receber o Nobel da Paz. Mas, dentro da Alemanha, o descontentamento com a decisão da chanceler foi germinando. O partido anti-europeu e anti-imigração AfD cresceu, alimentado em parte pelas manifestações do movimento anti-islâmico PEGIDA, e chegou ao Bundestag com estrondo em 2017, tornando-se o terceiro maior partido no Parlamento.
Pelo meio, a CDU e a CSU endureceram o discurso contra os migrantes, alarmados. Merkel também recuou em alguns pontos, facilitando as deportações e reduzindo os apoios financeiros. Ao mesmo tempo, o número de entradas reduziu-se drasticamente, amparado pelo acordo assinado entre a União Europeia e a Turquia. Mas os danos já estavam feitos. “Merkel tem de sair”, continuaram a repetir a AfD e os seus apoiantes — com alguns membros da CDU/CSU a começarem a concordar.
Quem são os que querem suceder à chanceler?
Com Merkel a anunciar agora a sua saída, abre-se a porta à sucessão — e três nomes já declararam que estão na corrida. Quem são eles?
Annegret Kramp-Karrenbauer, a “mini-Merkel”
Kramp Karrenbauer, de 56 anos, tem duas alcunhas: AKK, para resumir o seu extenso nome, e “mini-Merkel”, que explica as suas parecenças com a chanceler. Nomeada por Merkel no ano passado para o cargo de secretária-geral da CDU, é conhecida a sua proximidade e a partilha de ideias, nomeadamente no plano europeu. Como Merkel, é considerada uma moderada no panorama atual da CDU: defendeu o aumento do escalão mais elevado do IRS, uma posição mais à esquerda, mas, por outro lado, assume-se contra o casamento gay, por exemplo. E revela ter o mesmo pragmatismo da mentora, tendo apoiado a posição de Merkel na crise de refugiados mas defendido desde então uma série de medidas mais restritivas.
Friedrich Merz, o regressado
Merz, de 62 anos, estava afastado da política desde 2009, dedicando-se aos negócios como investidor financeiro e gestor. O seu anúncio surge, por isso, com alguma surpresa — mas não tanto se tivermos em conta que o seu anterior afastamento havia sido ditado pela própria Merkel. Foi líder parlamentar da CDU/CSU e trabalhou perto da chanceler, até esta o afastar em 2009, o que fez com que Merz se retirasse da arena política — até agora.
As suas posições políticas são mais à direita do que as de Merkel, com o Handelsblatt a classificá-lo como o “antídoto favorável às empresas e socialmente conservador” a Merkel. Contudo, a nível europeu, ainda na semana passada Merz assinou uma carta juntamente com outros cinco pensadores como Jürgen Habermas onde pede um aprofundamento da União Europeia. Na carta, os signatários sugerem medidas como um reforço da política monetária comum e um Exército europeu, mesmo que tal sejam medidas impopulares.
Jens Spahn, a jovem esperança
Aos 38 anos, o ministro da Saúde Jens Spahn é o nome mais novo na corrida para a liderança da CDU. A idade daquele que foi também o deputado mais novo do Bundestag não é um empecilho, antes pelo contrário — até colhe apoios junto daqueles que creem que o partido beneficiaria de ter um rosto mais jovem na liderança, como é o caso do chanceler austríaco Sebastian Kurz, de 32 anos.
Tal como Kurz, Spahn também defende posições conservadoras dentro do seu partido. É a favor de uma política de segurança pública mais severa, é contra as políticas propostas por Merkel que permitem a atribuição de dupla nacionalidade a alguns imigrantes e defende uma proibição do uso da burqa. Contudo, é a favor do casamento gay — em dezembro casou-se com o companheiro de longa data, Daniel Funke. E embora seja ministro no Governo de Merkel, nunca se absteve de criticar publicamente a chanceler. Um professor relembra à Deutsche Welle que, já em pequeno, dizia querer ser primeiro-ministro um dia.
Com Merkel de saída da CDU, estabilidade do Governo — e da Europa — também abana
A escolha do novo líder da CDU pode ditar o futuro de Merkel e do próprio Governo alemão. “Se Annegret Kramp-Karrenbauer assumir a liderança do partido, ainda há uma hipótese de a chanceler poder ficar no cargo até 2021. Se não, é o fim”, resume Julian Rappolt, analista do European Policy Center, à Agência France-Press. “Merkel/Spahn seria uma constelação difícil. Mas Merkel/Merz não funcionaria de todo”, explica Thorsten Faas, cientista político da Freie Universität em Berlim, ao Financial Times.
O futuro político de Merkel é, por isso, uma incerteza e o seu destino está atado aos destinos do país. Para além da dúvida sobre se o futuro líder da CDU consegue trabalhar com uma Merkel chanceler, há ainda a instabilidade da própria grande coligação formada com o SPD. Afinal de contas, os sociais-democratas estão a atravessar um período ainda mais conturbado do que os conservadores: na “votação do destino” em Hesse, o SPD recebeu menos de 20% dos votos, o seu pior resultado naquele estado desde 1946.
A nível nacional, a coligação CDU/CSU-SPD tem registado uma queda acelerada nas sondagens, que leva muitos a falar numa morte anunciada dos partidos do centro. Se a CDU perde para a direita com a AfD, também para a esquerda — tal como SPD, em queda ainda mais acelerada: “Os sociais-democratas estão a perder apoiantes jovens, de áreas urbanas e pró-europeus para os Verdes. Os Verdes também atraem muitos apoiantes centristas da CDU/CSU que ficaram desconfortáveis com a viragem [destes partidos] à direita”, resume o professor do Instituto Alemão para os Assuntos Internacionais e de Segurança John Ryan. Há mesmo quem pense que o objetivo de Merkel com este anúncio é o de matar imediatamente a Grande Coligação: “Ela está a acelerar o processo”, prevê Josef Janning, do Conselho Europeu para as Relações Internacionais, à Deutsche Welle. “A estratégia dela durante meses foi a de ficar no cargo mas não concorrer à reeleição. Agora, dependendo de como o partido responder, ela pode usar a próxima divisão dentro da coligação para dizer ‘acabou’.”
Uma Alemanha pós-Merkel, com nova ida às urnas, é um cenário totalmente imprevisível. E se a chanceler pode deixar assim o país à deriva, também a Europa pode ficar um pouco perdida. Com Emmanuel Macron a registar índices de impopularidade recorde, o eixo franco-alemão da UE fica desgastado e empurra quaisquer decisões de monta para mais tarde. “Nada irá acontecer até ao final do ano e provavelmente nada irá acontecer até às eleições europeias”, prevê Rappolt. “Há um risco de paralisia a nível europeu.”
Foram 13 anos de Europa e Alemanha com Angela Merkel na liderança, mas a chanceler diz querer cumprir a sua promessa de não ser primeira-ministra para toda a vida. Qual será o momento certo em que irá sair, é ainda uma incógnita. Mas não há dúvidas de que, até ao final, Merkel continuará a analisar qual o melhor momento para agir e para falar. “Demasiada emoção perturba a razão. Ela olha para a política como uma cientista”, resumia em 2014 o jornalista Bernd Lurich à New Yorker.
Angela Merkel é, dizia, uma “máquina de aprendizagem”. E a chanceler aprendeu que não podia adiar mais a sua saída, sob pena de perder o controlo da narrativa que um dia escreverão sobre si. Agora, resta à Alemanha e à Europa descobrir o que fazer no dia a seguir.