O novo álbum dos Bateu Matou é uma autêntica Batedeira. Não só pela quantidade de batidas construídas pelos três bateristas que formam o projeto — Quim Albergaria, Ivo Costa e RIOT, que se têm vindo a destacar de diversas formas na música portuguesa — mas porque também é um disco de muita fusão, um caldeirão sonoro de múltiplos ingredientes e latitudes.
Mais do que aglomerar aquilo que se faz em Luanda ou em Atlanta, em Cabo Verde, Goa ou Londres, reflete a mistura que acontece de maneira orgânica nas ruas e clubes de Lisboa e arredores há muitos anos — e também no cerne destes instrumentistas-produtores de guerrilha que vieram armar o baile.
Como nos contam em entrevista, realizada no estúdio na zona de Marvila onde a banda trabalha, este segundo disco é aquele que melhor exprime a sua identidade, em que o trio se permitiu a vestir verdadeiramente a pele que desejava. A apresentação do álbum ao vivo acontece a 26 de abril na Casa da Música, no Porto.
“Depois de um álbum em que tivemos uma primeira abordagem a fazer música juntos e a descobrir como é que isso era feito, numa lógica em que convidávamos mais pessoas para fazerem essas músicas connosco, o segundo disco era um bocadinho o reverso dessa medalha. Como é que nós, os três, praticamente sozinhos, conseguíamos estabelecer uma identidade mais nossa?”, explica Ivo Costa ao Observador.
[ouça “Batedeira”, o novo disco dos Bateu Matou, através do Spotify:]
“No primeiro disco estávamos focados na melhor forma de receber cada convidado. Eram os Bateu Matou a produzir para alguém. E era muito centrífugo, ou seja, de nós para fora. E este é um disco em que quem tem de estar entusiasmado com isto somos nós. Isso é um salto muito grande, porque o primeiro disco é uma coleção de canções, de produções super diversas. Este soa a disco mesmo, soa a um objeto, a um retrato fidedigno dos Bateu Matou neste momento. Não deixa de ser diverso, mas é muito mais da nossa assinatura”, acrescenta Quim Albergaria.
Para isso muito serviram os concertos, onde os Bateu Matou se materializaram em palco como um exército de três bateristas, preparados para incendiar a pista de dança. Foi quando descobriram que era ali que as suas músicas mais ganhavam significado, como tinham a função inerente de fazer balançar os corpos em jeito de celebração. Afinal, este projeto nasceu em plena pandemia, na clausura de um estúdio, com o disco de estreia, Chegou, a ser editado em 2021. Só depois ganhou vida própria por esses palcos fora.
Três anos depois, a componente orgânica das atuações traduz-se num segundo trabalho mais acelerado, com uma urgência e adrenalina intrínsecas, que se sente a borbulhar. “’Bora ser mais turbulentos, mais duas da manhã, mais o nosso palco. Naturalmente, a velocidade aumentou”, explica Quim Albergaria.
O plano inicial era um EP, que se foi alargando até se tornar num álbum. Além de toda a experiência que acumularam ao longo dos anos — seja nos Buraka Som Sistema, nos PAUS, nos The Vicious Five, na banda de Sara Tavares, Mariza, Paulo Flores ou Carminho, entre tantos outros projetos — sentem que estavam na fase ideal para poderem fazer as naturais concessões durante o processo criativo, chegando a um resultado mais coeso.
“Aquela angústia adolescente que resulta em álbuns incríveis vai sendo substituída por certezas de que queres trabalhar desta ou daquela forma, mas neste caso podes conceder porque é para uma banda. Isso acontece naturalmente com a idade. É um trabalho em conjunto, como numa equipa de basquetebol, futebol ou de designers”, explica RIOT.
“Já fizemos tanta coisa”, acrescenta Ivo Costa. “Temos sempre que provar alguma coisa nem que seja a nós próprios, mas a nossa história já está um bocadinho contada, por isso estou muito mais aberto e seguro a aceitar as opiniões deles do que se estivéssemos numa banda aos 20 anos e estivéssemos todos numa egotrip de nos querermos afirmar. Só temos de nos validar enquanto grupo. Isso permite-nos fazer música de uma forma muito mais democrática e leve, sem haver tanto ego.”
Portugal e Lisboa como um “mil-folhas” cultural
Os sons que se cruzaram nesta Batedeira simbolizam uma visão mais profunda que os Bateu Matou têm da sua cidade e do seu país. “Acreditamos que tal como não há uma Lisboa, há muitas Lisboas, Portugal enquanto cultura é feita de muitas culturas misturadas ao longo do tempo. Enquanto portugueses, isso é capaz de ser dos nossos traços identitários mais únicos. E a música portuguesa soa a isso, por mais que haja narrativas em contrário”, afirma Quim Albergaria.
Rejeitam a ideia de que a cultura de um lugar ou de uma comunidade seja algo estanque, assente numa sonoridade específica ou em determinada língua. Não há cânones que durem para sempre. Olham para a cultura como algo dinâmico, mutável, um corpo vivo que se vai alimentando de múltiplas referências.
“Isto já não é sobre analisar uma matriz que tem raízes em Cabo Verde ou em Moçambique, já não é um raciocínio de ‘deixa-me lá misturar estas duas coisas’. Isso já acontece dentro de nós de forma orgânica, já respiramos essa mistura”, diz Ivo Costa.
De repente, trap e funaná podem ser compatíveis; tal como masemba e música house; Jersey club e chula. “Quando falamos disto estamos quase a ser etnomusicólogos, mas ao mesmo tempo isto é uma coisa que é mesmo natural. Um baterista sente as cenas e segue o ritmo, agrupa claves semelhantes. Percebe que o Jersey club não é assim tão diferente de um funaná e para nós este é o único projeto que vemos capaz de fazer isso”, acrescenta RIOT.
“Quando começas a teorizar sobre isto, percebes que se calhar está qualquer coisa a acontecer. Ou então somos nós a ganhar consciência de que a nossa música, deste país e desta cidade, é mesmo assim. E era preciso isso ser celebrado e apontado, que disséssemos: isto é único. Não é uma coisa super cristalizada como o kuduro ou o fado, mas esta pluralidade é um fenómeno em si, e era preciso torná-lo mais audível, expressá-lo e sublinhá-lo”, acrescenta Quim Albergaria, que descreve Portugal e, sobretudo, Lisboa, como um mil-folhas.
“A forma como as pessoas dançam em Portugal hoje em dia… Tu vais a uma festa, a um clube, e a própria programação… Já não há um clube só de house, tens noites para tudo. Até a ideia da discoteca tropical que ainda existe fora de Lisboa, que é outra palavra para dizer ‘aqui dança-se música de raiz africana’, que é um eufemismo um bocadinho feioso, mesmo esses clubes são diversos e na mesma noite ouves um tarraxo com kizomba e depois a coisa acelera e tanto tens funaná como kuduro. As claves estão misturadas. E os bailes de aldeia são uma grande salganhada mas é natural — e essa salganhada é identitária. Pimba com kuduro e kizomba… E a nossa música também é um retrato do que pode ser a nossa sociedade. Estas pessoas são todas diferentes, têm origens diferentes e no entanto identificam-se como portuguesas. E nós queremos fazer o baile disso.”
Numa altura de maior polarização e em que o “populismo do Chega” cresce a larga escala, bem como outros partidos semelhantes pelo mundo fora, defendem que este discurso identitário assente na mistura é mais importante do que nunca.
“Falta que muitos portugueses aceitem que é assim. Há muitos que não aceitam, ou que não percebem, ou que ainda não chegaram lá”, acredita RIOT. “Custa muito perceberem que Portugal é mais do que o fado e o pimba — e que isto também é Portugal e que já é Portugal há muitas gerações. Não é de ontem”, diz RIOT. “Desde que os primeiros barcos saíram e os primeiros voltaram que é assim… O fado é música árabe na sua essência. E depois tens os celtas a virem lá de cima e a misturarem notas e claves diferentes, portanto isto desde sempre que é assim. Não somos um país de uma raça e de um povo só. A mensagem que os partidos de extrema-direita passam é que é preciso limpar e deixar só aquilo que é de cá, só que há muitas centenas de anos que aquilo que é de cá é de todo o lado. Essa é a questão, esse é o erro e a falta de visão de algumas pessoas que votaram no Chega.”
[o vídeo de “Cada x + Perto”:]
As narrativas de uma certa pureza nacional, que na cultura encontram muito eco no fado, são desmontadas por este trio de músicos que têm visto em artistas como Ana Moura e Sara Correia uma versão mais progressista da tradição, mesclando elementos locais com outros mais globais, insuflando a ancestralidade com os ares frescos da vanguarda.
“Ainda assim, falta uma certa promiscuidade que o Brasil e o Reino Unido, por exemplo, têm. És raiz, respeito para ti, mas deixa-me brincar porque isto é meu também. Existirem esses standards, que são fundação de identidade, mas que têm que ser capazes de acender novos fogos”, defende Quim Albergaria. “Os povos latinos são muito… Calma, silêncio, vai-se cantar o fado. Não se parte o esparguete. Começa o fado e é muito solene, muito sagrado. Não é só o fado, mas é o expoente máximo disto”, acrescenta RIOT.
Uma química “incrível” entre três gurus musicais
Sublinham que ninguém aqui inventou a roda, que a música portuguesa anda a fundir-se com outras coisas (e resultando num todo maior) desde José Afonso a Júlio Pereira, passando por José Mário Branco e Rão Kyao, que os Bateu Matou convocaram para regravar a flauta de Bombaião, para um tema que acabou por se tornar Cada X + Perto.
“Eles foram estudar as influências da nossa música e concluíram que essa mistura toda já lá está, só que a música popular e tradicional para a nossa geração era vista como uma coisa menor, ninguém ouvia fado. Agora está na moda”, diz Ivo Costa. “E esta confiança que fomos ganhando na nossa cultura permite-nos hoje estarmos em 2024 e olharmos para a música africana e para outros estilos que sempre cá estiveram, mas a gente já se permite a experimentar e a divagar um bocadinho mais, a descobrir o que é essa sonoridade nova que nós descrevemos como Those Lisbon Beats ou outro nome que lhe queiram dar.”
Em Cada x + Perto, quiseram também evocar as raízes goesas de RIOT e Ivo Costa, como explica Quim Albergaria. “Percebemos que seria uma oportunidade para falar da identidade e experiência do Rui e do Ivo, e falar dessa comunidade e experiência identitária. E não podia ser eu a cantar isto. Tínhamos que falar com a Rubi Machado, que veio cantar em concani, trazer um pouco de lugar de fala e reconhecimento.”
Já em Rala-côco, numa lógica semelhante, chamaram Del Groove para cantar numa faixa de espírito funk, com contornos afro-brasileiros. “Ele é percussionista e baterista, e esteve presente na origem do funk no Brasil. E as colaborações com a Raissa e com o Pité é porque já estávamos a fazer coisas com eles e porque eles estão connosco ao vivo.”
Em geral, o processo criativo de cada tema começou com uma base feita em computador, sobretudo nas casas de RIOT e Quim Albergaria. Depois, em estúdio, foram trabalhando as faixas, acrescentando e retirando elementos, manuseando as canções até muitas das bases se tornarem quase irreconhecíveis.
“Há muita experimentação, estamos sempre a querer pôr tudo em causa”, explica Ivo Costa. “Como temos backgrounds muito diferentes, por vezes temos visões quase antagónicas e esse processo de lapidar resulta neste disco, é uma construção quase exaustiva e somos muito exigentes com a nossa música.”
“Numa altura em que toda a gente faz música sozinho em casa, é por isto que mais gosto de ter bandas”, acrescenta RIOT. “Também faço música em casa, é muito divertido, mas isto não tem nada a ver. Não diria que é como fast-food e um restaurante a sério, porque há pessoas a fazerem obras-primas sozinhas em casa, mas esta química incrível que temos… Se um puto começar a fazer música no Ableton Live, se ele não tiver uma banda nunca vai saber o que é isto. A questão de criar algo, chegar aqui e o Quim dizer: ‘puto, isso está horrível. Só gosto do synth’. Fazer concessões! E de repente nasce um filho que não tem nada a ver com aquilo que tinhas pensado ao início. E vais para casa ouvir aquilo que tinhas feito e pensas: ‘realmente, isto estava uma grande porcaria, ainda bem que ele só pegou no synth’. Essa química entre três músicos a fazerem concessões é incrível.”
A ambicionada internacionalização
Com o segundo álbum na manga, os Bateu Matou assumem o objetivo de se internacionalizarem. No ano passado estiveram no Europavox, em França; e já este ano passaram pelo Eurosonic, nos Países Baixos, festivais onde se puderam apresentar a agentes e promotores da indústria internacional — e é ao vivo que o projeto melhor demonstra a sua força. Com um mercado nacional limitado — em que “no verão toca-se e no inverno sobrevive-se” — a ideia é que possam passar mais meses do ano em cima do palco, que possam dar mais asas e novos voos à banda.
“Temos datas a comunicar já para o princípio do verão e que serão divulgadas em breve, uma das quais num festival que nos honra muito e que pode abrir muitas portas para o circuito europeu”, revela Quim Albergaria. “Este disco já foi feito a pensar nisso: é um disco sobre Lisboa, que só podia ser de Lisboa, mas considerando que o auditório é o mundo.”