Apareceram em 2018 para ocupar a pista de dança e, quase sem querer, deram por si a transformar o ritmo em canções cheias de paletes melódicas que agora se apresentam num disco. Chegou é o trabalho de estreia dos Bateu Matou, o trio composto por Quim Albergaria (PAUS), Ivo Costa (Batida, Carminho) e Riot (Buraka Som Sistema), que sonha em pôr toda a gente a dançar na sinfonia idílica do pós confinamento.

Os Bateu Matou chegaram, em jeito de locomotiva que nos sequestra sem aviso prévio para uma viagem em que o corpo responde por si e o cérebro limita-se a ser refém do ritmo. É uma experiência de baile 2.0., como os próprios dizem, e a intro do álbum, acabadinho de sair nas plataformas digitais, é um aviso ao que vamos, como se um cicerone de montanha russa nos advertisse para pôr o cinto antes de nos atirar para loops alucinantes.

Não é que Chegou nos tivesse entrado pelos ouvidos sem que nada o fizesse anunciar. Há que ser rigoroso e ver que Quim Albergaria, Ivo Costa e Riot já andavam a fazer gingar a noite de Lisboa desde 2018, nas residências do Musicbox, e que em fevereiro do ano passado mandaram cá para fora o tema “Lume”, em parceria com Scúru Fitchádu. O ritmo batia-lhes no coração e tudo o resto fluiu naturalmente, ao ponto de agora nos presentearem com uma coleção de 9 canções que são o reflexo da sua Lisboa.

[“POVO”:]

“Lisboa é múltipla e ponto final”, decreta Quim Albergaria, sentado na janela do Zoom à conversa com o Observador, explicando a comichão que lhe faz o discurso de que “não há uma Lisboa, mas várias Lisboas”.

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“Não é estranho uma mulher branca contabilista da Amadora saber dançar funaná e kuduro, tal como não é estranho um descendente de terceira geração de cabo-verdianos saber mais de hip-hop ou de tradição do levantamento musical do Giacometti do que eu. Essa pluralidade e mistura é real e efetiva e, na sua heterogeneidade, Lisboa é homogénea. Ou seja, não há muitas Lisboas, a Lisboa é que é feita de muita coisa.”

Essa visão explica porque é que em Chegou tanto levamos com um baile funk empoderado por Blaya, na faixa “Velocidade”, como com um slow torneado com a voz dengosa de Toty Sa’Med em “Fica”. Se essa mistura de géneros assustou o trio? Nem por isso: “O que sinto é que ao longo deste processo de construção de Bateu Matou chegámos à conclusão de que não soávamos cacofónicos, que era um perigo que poderia acontecer, e de que tínhamos muita vontade de criar canções com estes discursos”, diz da outra janela Rui Pité, conhecido como Riot na cena artística.

[ouça o álbum “Chegou”, dos Bateu Matou, na íntegra através do Spotify:]

Bordar esta manta de retalhos sonoros nem sequer foi um esforço para eles, como os próprios notam, e tudo porque o beat está sempre presente para nos desentorpecer o corpo e unir as pontas. “Se há ali um pulsar, um chocalho e uma forma de construirmos uma canção em torno disso, então aí é território de Bateu Matou”, explica Quim Albergaria. E desbravam esse território com gosto, até porque, no olhar do baterista dos PAUS, a pop portuguesa andava a amansar o beat: “As pessoas estão-se a habituar a dançar com ‘bolhinhas’ e soluços digitais e o nosso prazer e o nosso coração está no bombo, na tarola, nos pratos de choque e nas peles.” E no digital também, acrescenta.

[“Clichê”:]

Portanto, não é que os Bateu Matou queiram andar às cabeçadas com a música eletrónica. Simplesmente não estão para alinhar numa certa “uniformidade eletrónica”, como refere Pité, que invadiu a cena nacional e internacional:

“Para mim, a originalidade está na procura do que é que pode soar melhor e diferente do que se está a fazer. Nós gostamos muito da música que é feita hoje em dia. Agora, para nós fazermos tem que soar diferente. Senão começas a fazer música muito parecida com a das outras pessoas e não foi para isso que eu me alistei”.

Se o desafio de juntar as três baterias lhes deu a pica para começarem a invadir os espaços de dança normalmente ocupados pelos DJs, o confinamento deu um empurrãozinho vital ao trio para, sem querer, mergulhar de cabeça num disco e para abraçar aquele doce lado da pop de fazer canções: “Como é que consegues pegar num projeto com um computador e três gajos a bater em panelas e fazer uma canção?” resume Pité, falando da génese de Chegou. Aí, Quim Albergaria explica que tiveram que arrumar primeiro a casa para receberem os convidados, como bons anfitriões que são. “As canções tinham que saber receber primeiro”, diz, explicando que à medida que os instrumentais se foram consolidando, o tipo de vozes por si sugeridos aflorou naturalmente. “Foram reações muito tópicas e imediatas entre o instrumental e a voz”.

Papillon, em “Clichê”, teve uma participação muito estreita no processo compositivo. Irma, em “Subi Subi”, aterrou com uma letra que rapidamente se colou à música. Já “Povo” é uma exceção à regra, tendo a canção nascido de um bruto de Héber Marques, dos HMB. É esse o tema que proclama “Bateu Matou / faz disso vida”, com uma luminosidade e good feeling que, lançada em novembro de 2020 e com a fantasia de uma pandemia deixada para trás, soou a “hino do desconfinamento” para os três bateristas. “Só que… corta para não”, riem-se, sem, contudo, deixarem de projetar Chegou no seu habitat natural: o momento em que toda a gente possa estar junta para dançar. “É música de baile mesmo”.

[“Subi Subi”:]

Olhando deste ponto de vista, pensar nos dois concertos já esgotados dos próximos dias 27 e 28 de maio no Lux, em Lisboa, com o público sentado de máscara e a cumprir distanciamento de segurança, parece quase contranatura ou, no mínimo, uma tortura para quem tenha que segurar o ímpeto de pular da cadeira e lançar-se de corpo e alma para a pista de dança. “Vai haver pessoas que vão sofrer um bocadinho dos joelhos, porque os joelhos vão abanar violentamente, vão querer dançar, mas não vão conseguir”, antevê Rui Pité, deixando, no entanto, a promessa de que será um concerto muito emotivo:

“Não será nada perfeito, nada ideal, bastante estranho por estar toda a gente sentada, no entanto mega importante porque marca o início de um desconfinamento, o início de uma banda e o início de muitas coisas boas em termos daquilo que são concertos pelo país fora. Por muito esquisito que seja, significa aqui um regresso à normalidade, em fade in”.

Para já, o trio não adianta por onde é que vai andar nos próximos tempos, embora Quim Albergaria garanta que os Bateu Matou vão sair de Lisboa e mostrar-se noutros palcos. Por eles, tocariam ininterruptamente até o Natal chegar. Será uma tour “intensiva”, se a pandemia assim o deixar. De todo o modo, vai bater bué — e disso ninguém pode duvidar.

NOTA: Héber Marques, Papillon, Irma, Pité, Scúru Fitchádu, Toty Sa’med, Favela Lacroix e Blaya são os convidados do disco.