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Ninguém sabe como é que começou, mas toda a gente se lembra de quando explodiu: a 23 de maio de 2005, Thomas Mapother IV, mundialmente conhecido como Tom Cruise, desatou aos saltos no sofá da apresentadora mais famosa do mundo, Oprah Winfrey, aparentemente doido de felicidade e paixão pela jovem atriz Katie Holmes. O momento representou um ponto de viragem na consciência coletiva, o equivalente no microcosmos de Hollywood à explosão do Challenger ou ao 11 de Setembro. Mas aqui não houve vítimas reais. Tom Cruise não morreu naquele dia. O que morreu foi a imagem que o mundo tinha do ator, assente num carisma irresistível, num sorriso-símbolo de um individualismo benévolo e uma arrogância saudável, uma imagem tão americana quanto uma bandeira das “stars and stripes” a esvoaçar num relvado.
Sim, os rumores sobre a sua orientação sexual, a alegada impotência e/ou esterilidade e sobre a sua devoção à Cientologia (a religião fundada pelo excêntrico L. Ron Hubbard) circulavam há muito, mas o rolo compressor da energia de Cruise esmagava esses boatos sempre que as luzes da sala de cinema se apagavam e o seu rosto eternamente juvenil iluminava o ecrã. Para os milhões de espectadores que fizeram de Cruise um dos negócios menos arriscados da história do cinema, essas conversas serviam apenas para colorir a lenda. Não havia nada de realmente grave no comportamento do ator que ameaçasse o seu estatuto. Além disso, qual a estrela de Hollywood que não tinha de passar pelo ritual do boato-desmentido-novo boato-novo desmentido? Era quase o som natural da engrenagem das celebridades a funcionar.
Quando entravam na sala de cinema, o rosto familiar de Cruise, que estavam habituados a ver há quase duas décadas sem interrupções e sem um daqueles fracassos “cleopátricos” que regularmente atiravam ao chão uma vedeta que até aí parecia intocável, garantia-lhes que não havia perigo: Tom Cruise era Tom Cruise, uma das poucas certezas num mundo de aparências, ilusões de ótica e lobos em pele de cordeiro, e nada na sua vida privada poderia alterar esse facto reconfortante.
[Tom Cruise no sofá de Oprah Winfrey, em maio de 2005:]
https://www.youtube.com/watch?v=930BhfJxFxU
Por isso, aquele momento no sofá foi tão chocante. Foi como ver uma estátua do Madame Tussaud’s a derreter à nossa frente. As declarações públicas que fez na sequência do episódio do sofá, as entrevistas bizarras que deu quando deveria estar a promover o seu segundo filme em parceria com Steven Spielberg e o comportamento sinistro e ameaçador, mostraram um Tom Cruise que quase ninguém conhecia. Os dois, o antigo e o novo Tom Cruise, só pareciam partilhar uma característica: a intensidade. Aquela intensidade que era a sua imagem de marca continuava lá, mas já não parecia a intensidade positiva de uma energia interior inesgotável e contagiante, mas a intensidade assustadora dos fanáticos, dos paranoicos que acham que num mundo de loucos só eles mantêm a sanidade.
Missão possível: tornar-se Tom Cruise
Thomas Cruise Mapother IV nasceu no dia 3 de julho de 1962 em Syracuse, no estado de Nova Iorque, filho de um engenheiro elétrico, de quem herdou o nome, e de uma professora chamada Mary Lee Pfeiffer. O casal já tinha duas filhas e, um ano depois do nascimento do rapaz, teve mais uma menina. Durante a infância dos filhos, a família mudou várias vezes de casa e cidade, indo de New Jersey para Saint Louis e, quando Tom tinha oito anos, para Otava, no Canadá, onde viveram perto de um rapaz que também viria a ser famoso, Bryan Adams. Depois de alguns problemas de adaptação, em parte agravados pelas dificuldades de aprendizagem (Tom era disléxico), o rapaz norte-americano depressa se tornou popular entre colegas de escola e vizinhos, especialmente junto da ala feminina. Praticante de luta livre, extrovertido e com talento para imitações de desenhos animados, Tom já exibia a intensidade que viria a ser o seu grande trunfo no cinema, como contou uma das suas primeiras namoradas: “era uma pessoa muito intensa. Levava as coisas muito a sério. Se perdesse um combate de luta livre não se podia falar com ele durante horas.”
Depois de impressionar colegas e professores numa encenação da peça Guys and Dolls na escola secundária de Glen Ridge, Tom Cruise resolveu tentar a sua sorte no mundo da representação. Na altura, com 18 anos, os pais já se tinham separado. Cansada das oscilações de humor do marido que não se aguentava em nenhum emprego, Mary Lee pegou nos quatro filhos e voltou para os Estados Unidos para viver perto da sua família. Tom e as irmãs praticamente não voltaram a ter contacto com o pai. O que por um lado foi bom para o rapaz. Uma das poucas boas memórias que Tom dizia guardar do pai era a de uma ida ao cinema para irem ver o filme “A Golpada”, com Robert Redford e Paul Newman (estaria muito longe de imaginar que um dia iria trabalhar com as duas lendas de Hollywood). Anos depois, quando Tom já era uma estrela (após o sucesso de “Negócio Arriscado”), encontraram-se pela última vez no leito de morte do pai, vítima de cancro (a relação difícil, o ressentimento, a mágoa e a despedida, tudo isso seria aproveitado anos depois por Cruise para um dos seus papéis mais surpreendentes, na obra-prima “Magnólia”, de Paul Thomas Anderson.)
A noite de estreia daquela peça escolar foi decisiva para o percurso de Tom Cruise. Entre o público estava a agente Tobe Gibson, que representava uma das raparigas da escola que já tinha feito alguns trabalhos em televisão. Quando, tempos depois, se encontraram no escritório de Gibson em Nova Iorque, a agente teve a certeza de que tinha uma futura estrela nas mãos. Gibson não só escolheu o nome artístico – sem saber que Cruise era mesmo um dos apelidos do rapaz – como conseguiu que se estreasse em cinema num pequeno papel num filme do realizador Franco Zeffirelli e com Brooke Shields como protagonista, “Um Amor Infinito”. Um ano depois, Tom destacou-se num papel secundário, mas intenso, no filme “O Clarim da Revolta”, ao lado de pesos-pesados como George C. Scott, Ronny Cox e um muito jovem, mas já vencedor de um Óscar, Timothy Hutton. As coisas podiam ter descambado quando Tom Cruise participou em “Só se Perde Uma Vez”, uma comédia de “perda de virgindade” (se é que isto é um género) realizada por Curtis Hanson (que haveria de se redimir com filmes como “L.A. Confidencial”). Já com o filme seguinte, “Os Marginais”, Cruise voltou ao bom caminho, teve a oportunidade de trabalhar com alguns dos atores mais promissores da nova geração e, acima de tudo, sob as ordens de Francis Ford Coppola.
No entanto, foi como protagonista de um filme em que poucos apostariam que Cruise mostrou pela primeira vez a capacidade de transformar em ouro a matéria-prima mais banal. “Negócio Arriscado” era a história de um adolescente que, como bom empreendedor americano, resolve uma necessidade urgente de dinheiro gerindo um negócio de prostituição. O realizador Paul Brickman, que tinha visto Cruise em “O Clarim da Revolta”, achava que o maluco daquele filme nunca seria convincente no papel de um espertalhão. Estava enganado. A cena em que Tom Cruise dança em roupa interior ao som de “Old Time Rock & Roll” tornou-se uma das mais icónicas do cinema dos anos 80 (as vendas dos Wayfarer que a personagem usava no filme dispararam 2 mil por cento após a estreia, o primeiro encontro feliz entre Cruise e uns Ray-Ban). Uns anos depois, Cruise disse que o filme era sobre a “sociedade capitalista de hoje. Será que os fins justificam os meios? Queres ajudar pessoas ou só queres fazer dinheiro?” O filme podia ser sobre tudo isso, mas era acima de tudo sobre a energia do próprio Cruise. E se havia alguém que queria muito fazer dinheiro era ele. Queria tanto que chegara a apostar com um colega da secundária que o primeiro a ganhar um milhão de dólares ofereceria um carro ao outro (spoiler: Cruise ganhou a aposta e nunca ofereceu o carro ao amigo).
Ases de trunfo
Após um filme realizado pelo lendário diretor de fotografia Michael Chapman e uma fantasia saída da cabeça de Ridley Scott, “A Lenda da Floresta”, chegou o filme que mudou tudo. Não teria mudado se Mathew Modine, a primeira escolha para o papel de Maverick, não tivesse preferido trabalhar com Stanley Kubrick em “Nascido para Matar” (Cruise também iria trabalhar com Kubrick no último filme do realizador, só que deu uma volta maior e mais choruda para lá chegar). A ideia partiu do produtor Jerry Bruckheimer ao ler um artigo sobre a escola de pilotos de caças da Marinha norte-americana. O mais difícil – ter a ideia e convencer o seu parceiro, Don Simpson – estava feito. Só faltava o resto: um guião, elenco e realizador.
Depois das recusas de John Carpenter e David Cronenberg, a escolha para realizador recaiu sobre Tony Scott, irmão de Ridley, que tinha dirigido um anúncio para a marca de automóveis Saab, em que um carro competia contra um caça (qual era a dúvida?). Quando o filme se tornou num dos mais lucrativos de sempre, os produtores afirmaram que Cruise tinha sido a primeira escolha. Verdade ou não, o facto é que “Top Gun – Ases Indomáveis” não teria sido a mesma coisa sem Cruise. Também é verdade que os produtores fizeram tudo para que Cruise aceitasse o papel. O ator, que tinha fundado uma produtora e, portanto, tinha grandes ambições, exigiu ter uma palavra a dizer sobre o argumento e exigiu também receber um salário à cabeça de 1 milhão de dólares, que recebeu sem um queixume dos patrões do estúdio. O que era isso – e até mesmo o custo total do filme, 15 milhões de dólares – em comparação com o que o filme rendeu, cerca de 350 milhões de dólares em todo o mundo?
À volta de “Top Gun” nasceu um bosque de mitos. Diz-se que as vendas dos Ray-Ban de aviador dispararam 40%, que a Marinha norte-americana não tinha mãos a medir com tantas inscrições de aspirantes a ases indomáveis, que os casacos de cabedal com T-shirt branca voltaram a estar na moda e que a idade de ouro da indústria dos clubes de vídeo começou ali (confirmo: a primeira vez que vi o filme foi em VHS). “Top Gun” foi um daqueles fenómenos culturais em que o filme é menos importante do que cada um dos fragmentos que o compõem ou das intenções que nele se projetam – os aviões, os óculos, a caneta nos dedos de Val Kilmer, a morte de Goose, os jogos de vólei de praia, a carga homoerótica, o belicismo inconsciente do reaganismo, a estética de videoclip ao serviço de um anúncio de recrutamento da Marinha norte-americana, etc.
Nos anos seguintes, impulsionado pelo sucesso de “Top Gun”, Tom Cruise não falhou um único tiro: cada um dos cinco filmes que fez entre 1992 e 1996 ultrapassou os 100 milhões de dólares nas bilheteiras, a primeira vez que um ator alcançou esse feito. Mais extraordinário é que nenhum dos filmes era uma sequela. Embora as companhias fossem excelentes (realizadores como Sidney Pollack, Brian de Palma, Neil Jordan e Rob Reiner e atores consagrados como Jon Voight ou Jack Nicholson), o nome de Tom Cruise era o combustível que alimentava a máquina. Antes disso, e logo depois de “Top Gun”, tinha trabalhado com Martin Scorsese e Paul Newman em “A Cor do Dinheiro”, com Oliver Stone em “Nascido a 4 de Julho” (talvez o melhor papel da carreira que lhe valeu a nomeação para o Óscar que perdeu para Daniel Day-Lewis) e com Dustin Hoffman em “Encontro de Irmãos”. No entanto, terá sido o pior filme de toda essa leva que convenceu Hollywood da infalibilidade de Tom Cruise. “Cocktail” saiu dois anos depois de “Top Gun” e o facto de ter feito 80 milhões de dólares na América do Norte só pode ser explicado pela magia do protagonista. Se alguns atores eram veneno de bilheteira, Cruise parecia ter encontrado o antídoto perfeito.
Nicole, de olhos bem fechados
Cruise conheceu a atriz australiana Nicole Kidman durante as filmagens de “Dias de Tempestade” (ou “Top Gun dos carros”), o exemplo acabado daquilo a que o crítico de cinema Roger Ebert chamou um “filme de Tom Cruise”. Produzido pela dupla Bruckheimer/Simpson e novamente realizado por Tony Scott, o filme era, sem a mínima dúvida, a cara chapada de Tom Cruise, que delineou a história a que depois o guionista Robert Towne (conhecido por “Chinatown” entre outros gloriosos filmes da gloriosa década de 70) aplicou o seu tratamento.
Tom Cruise depressa despachou Mimi Rogers, a sua primeira mulher e a responsável por levar o ator para a Cientologia, para oficializar a relação com Kidman. Fizeram mais um filme juntos, o sofrível “Horinzonte Longínquo”, e depois dedicaram-se a duas corridas paralelas: Cruise a tentar ser a maior estrela de cinema do mundo, Kidman a tentar ser mais do que Mrs. Cruise. A vantagem era toda de Tom até que um convite irrecusável veio equilibrar os pratos da balança e, ao mesmo tempo, arrasar com um casamento de altos e baixos (no pun intended). Stanley Kubrick não filmava há nove anos, desde “Nascido para Matar”, quando em 1996 convidou Tom Cruise e Nicole Kidman para protagonizarem uma adaptação da novela A História de um Sonho, do austríaco Arthur Schnitzler. Era um projeto antigo do realizador que tinha uma certeza acima de todas: queria que os papéis principais nesta história de fantasias, obsessões sexuais e ciúmes fossem desempenhados por um casal a sério.
Como é que se recusa um convite do maior realizador do mundo? Simples. Não se recusa. E, durante dois anos, Cruise e Kidman estiveram à disposição de Kubrick, submetidos aos seus caprichos e aos seus desejos de controlo total. Como escreveu Andrew Morton, biógrafo não-oficial do ator: “homem de movimento dinâmico e autoridade, [Cruise] encontrou um rival à altura nas manipulações manhosas e subtis do realizador. Se Tom era o príncipe do controlo, Kubrick era o rei. […] em última análise quem mandava era Kubrick.” Era, digamos, demasiada areia para a camioneta de Cruise: “As filmagens foram ainda mais penosas visto que Tom, um ator cuja marca era a libertação de energia, quer física, quer emocional, não gostou de fazer do homem contido e desligado que representava no ecrã. Contenção não era uma palavra normalmente associada a Tom, que achou a experiência desagradável.” O mínimo que se pode dizer é que esse desconforto se nota, o que, paradoxalmente, joga a favor da credibilidade da personagem. A desorientação e o desconforto que o ator devia estar a sentir num papel que era o oposto de tudo o que tinha feito até aí eram a desorientação e o desconforto que o médico Bill Harford devia sentir confrontado com as confissões eróticas da mulher e atormentado pelos seus receios.
Sádico e voyeur, diz-se que Kubrick explorou ao máximo as inseguranças do seu ator principal. De acordo com indicações do realizador, o casal não podia trocar impressões sobre as personagens quando estivessem sozinhos, e depois de os incentivar a contribuírem com as suas ideias, mostrou-se sempre mais recetivo às sugestões de Nicole do que às de Tom. Durante as gravações das cenas de sexo de Nicole Kidman com outro ator, Cruise não foi autorizado a estar presente. As filmagens prolongaram-se por seis dias durante os quais os atores simularam mais de cinquenta posições sexuais, discretamente filmados pelo realizador (a maior parte das cenas filmadas nesse período ficou fora do filme). Kubrick morreu antes da estreia de “De Olhos Bem Fechados”, que aconteceu em julho de 1999. Cruise e Kidman separaram-se menos de dois anos depois, no início de 2001. Nas palavras de Morton, o filme foi o epitáfio da carreira do realizador e do casamento dos atores. Há epitáfios piores.
Ser nada mais do que uma estrela de cinema
Será que foi aí, com o divórcio, que tudo se começou a desmoronar para Tom Cruise? Ou terá sido nesse mesmo ano a 11 de Setembro, com o ataque terrorista às Torres Gémeas? Foi aí que o ator, que sempre gerira com pinças e a máxima discrição pública a sua ligação à Cientologia, achou que estava na hora de se tornar uma espécie de porta-voz ou embaixador da igreja? Ou será que tudo mudou quando, em 2004, Cruise despediu Pat Kingsley, a mulher que durante vinte anos cuidara da sua agenda mediática e evitara que os aspetos mais problemáticos da personalidade e da vida de Cruise se sobrepusessem à persona que levava multidões aos cinemas?
Por pressão do líder da seita, David Miscavige, e por vontade do próprio Cruise, a ligação à Cientologia saltou para primeiro plano. Era paradoxal que o maior ativo da igreja não pudesse embarcar num proselitismo radical para normalizar a Cientologia e atrair novos membros. O problema, do ponto de vista de quem geria a imagem de Cruise, é que a ligação à Cientologia era muito mais tóxica do que quaisquer rumores sobre a sua sexualidade. Ou seja, para continuar a ser o ídolo de milhões, Tom Cruise tinha de se manter mais ou menos dentro do armário religioso e esconder uma parte fundamental, talvez a mais importante, da sua identidade.
O derradeiro passo deu-se com a substituição de Kingsley por uma das irmãs de Cruise, Lee Anne DeVette, também ela uma fervorosa seguidora da Cientologia. Isto aconteceu em 2004. Em maio de 2005, Cruise andava aos saltos no sofá de Oprah e, por incrível que pareça, esse nem foi o momento mais constrangedor. Em junho deu uma entrevista bizarra a Matt Lauer num dos programas da manhã com mais audiência nos Estados Unidos, em que afirmava que a psiquiatria era uma pseudociência e criticava a atriz Brooke Shields por ter tomado medicamentos para tratar uma depressão pós-parto.
Pouco tempo depois, noutra entrevista, avisou um jornalista australiano que lhe fez uma pergunta sobre Nicole Kidman: “Estás a pisar o risco. Vê se tens modos.” A opinião geral era a de que Cruise estava em roda livre, em modo chalupa (o termo ainda não estava na moda na altura), quando deveria preocupar-se em promover o filme, Guerra dos Mundos, que custara milhões ao estúdio (logo ele, o rei do profissionalismo e da promoção global). Aos jornalistas que o queriam entrevistar, impôs como condição que passassem quatro horas e meia a levar com propaganda da Cientologia.
Em 2006, a Paramount, estimando que as maluquices de Cruise lhe tivessem custado 100 milhões de dólares, tomou a decisão e Sumner Redstone, presidente da Viacom, que detinha a produtora, proferiu a sentença: “O comportamento recente dele [Cruise] não é aceitável para a Paramount. Não tem nada que ver com as capacidades de representação dele, ele é um magnífico ator. Mas julgamos que alguém que se suicida artisticamente e que nos causa prejuízos não tem lugar na empresa.”
As notícias do suicídio artístico de Tom Cruise eram manifestamente exatas. O que ninguém esperava era que ele conseguisse fazer marcha-atrás e voltasse a ser o Tom Cruise que o mundo se habituara a idolatrar. Em março de 2008 deu início ao que o seu biógrafo chamou “Operação Recuperar a Carreira” e convidou para um almoço de reconciliação o homem que o tinha despedido. O que aconteceu a partir desse momento é um caso raríssimo entre estrelas de primeira grandeza. Cruise sacudiu o pó da Cientologia dos ombros e fez aquilo que Paul Haggis, um antigo membro da igreja e realizador e argumentista oscarizado, lhe sugeriu que fizesse: voltou a ser uma estrela de cinema.
Ao contrário do que alguns esperavam, Cruise nunca se escondeu em papéis secundários. Mesmo nos projetos mais arriscados (arriscados porque, na ditadura dos super-heróis, filmes como “Esquecido” ou “No Limite do Amanhã” não estavam ancorados em nenhuma história conhecida do grande público), deu sempre a cara. E se já não tinha a mesma capacidade de transformar em ouro tudo o que tocava, quase nunca caiu no ridículo ou na absoluta indiferença do público (podemos abrir uma exceção para “Noite e Dia”). Mas foi com o seu próprio super-herói, Ethan Hunt, e com a preciosa ajuda de Christopher McQuarrie, realizador dos últimos filmes da “Missão: Impossível”, que Cruise hipnotizou os espectadores do mundo inteiro, fazendo com que se esquecessem que aquele era o mesmo homem que poucos anos antes tinha saltado como um tresloucado no sofá de Oprah, que tinha dado algumas das entrevistas mais bizarras da história de Hollywood e que tinha recebido medalhas da Cientologia em cerimónias sinistras.
Mesmo agora, a recuperar o filme que o tornou numa megaestrela global, a sensação não é a de alguém a servir comida requentada, mas a de uma estrela que ainda acredita nos seus dotes e que para a frente é que é caminho. Voltou a ser o profissional dos lançamentos, a percorrer o mundo para vender o seu produto, mantendo-se fiel às salas de cinema e recusando alianças com as plataformas de streaming. Por tudo isto, o New York Times rende-se e diz que ele é “a última estrela de cinema”. Podemos discutir se é ou não. Mas ele acredita que é e age como se fosse. Quando falamos de um homem que conseguiu sobreviver a si mesmo, o melhor é acreditarmos também.