Este é um crime de que começa por não se saber nada. Aliás começa por nem se saber se houve crime. A única certeza é que para chegar à verdade tem de se encontrar um Henrique, seja ele quem for.
Henrique torna-se a personagem mistério de um enigma que começou numa bonita casa do Estoril, no dia 25 de Janeiro de 1970. Na verdade, tal como o crime começa por não ser um crime mas apenas um mistério, também a casa não é bem uma casa. É sim um pavilhão. Um pavilhão incrustado no jardim de uma casa situada numa das zonas mais bonitas da chamada Costa do Sol. Tudo à volta são árvores e flores. Logo ao fundo da rua está o mar.
Esse pavilhão fora alugado em 1961 a um pintor australiano radicado em Portugal. O pintor chamava-se Thomas Percy Reginald Wood e assinava os seus quadros como Rex Wood.
Em Janeiro de 1970, Percy ou Rex Wood tem 64 anos. Passou a maior parte da sua vida em Portugal onde chegara nos anos 30. Motivos de inspiração não lhe faltavam na linha do Estoril: o mar, os barcos, as flores, as casas… que tanto gosta de pintar. Também faz retratos. O seu traço é formal. O estilo contido. De vez em quando uma mancha abruptamente vermelha quebra as formas fluidas e as tonalidades pastel que predominam nos quadros que assina como Rex Wood.
No Estoril e em Lisboa, Percy Wood estabelece amizades. Foi aliás uma família de quem era amigo e a cuja casa em Lisboa devia ter vindo jantar no dia 24 de Janeiro quem primeiro deu pela sua falta: Percy, um homem tão cumpridor dos seus seus compromissos, tão rigoroso com os horários, não apareceu para jantar.
Horas depois, já a 25, esses amigos resolvem telefonar para a senhoria de Percy, uma senhora também ela de apelido estrangeiro que os jornalistas tratam respeitosamente por madame. Madame não é apenas senhoria de Percy. Também é sua vizinha pois o pavilhão onde vivia Percy era contíguo à casa da sua senhoria. Ou de madame.
Uma luz que ficou acesa toda a noite
Os amigos de Percy que em Lisboa o tinham esperado em vão para jantar, receiam que ele esteja doente. No Estoril, as dúvidas trazidas por este telefonema só acentuam a estranheza causada pelo facto de a luz do pavilhão se ter mantido acesa toda a noite. Estaria Percy doente, incapaz de sair e mantivera-se acordado toda a noite, com a luz acesa?
A criada Maria da Assunção que os jornalistas às vezes tratam por Ascensão, dirige-se ao pavilhão. A porta está encostada, a luz mantém-se acesa, o radiador está ligado. Mas Percy não está. Maria da Assunção ou Ascensão dá pela falta do chapéu de chuva e da gabardine: Percy deve ter saído apressadamente mas não para o jantar em Lisboa, pois os óculos e o porta-moedas ficaram em cima de uma mesa.
Mas entre uma saída apressada e um desaparecimento vai uma grande diferença. E é aqui que entram os testemunhos dos criados como Maria da Assunção que garantem que Percy avisava sempre sobre as suas ausências. E é aqui também que aparece o Henrique. Por enquanto Henrique é apenas um nome inscrito na agenda onde Percy anotava tudo o que fazia. No dia 24 de Janeiro de 1970, dia do seu desaparecimento, Percy escrevera “Henrique”. E mais nada.
Quem seria o Henrique? Terá sido para se encontrar com esse tal Henrique, fosse ele quem fosse, que Percy pegou no chapéu de chuva e na gabardine? Certamente contava que o encontro fosse breve pois não levou nem o porta-moedas nem os óculos. Deixou o radiador e a luz ligados, coisa rara nesses tempos austeros nos gastos de electricidade.
A 25 de Janeiro ao mistério do paradeiro de Percy junta-se outro enigma: quem é o Henrique?
No pavilhão onde vivia Percy o nome de Henrique é quase omnipresente; Henrique é o nome que aparece em algumas das fotografias em que se vê um jovem envergando uma farda de soldado. Henrique é também o nome que aparece no remetente de alguma correspondência enviada de Moçambique. “Correspondência muito íntima” escrevem os jornais.
Mas sendo o Henrique um soldado onde estaria ele? A cumprir serviço militar em Moçambique ou já teria regressado? Ora precisamente a 24 de Janeiro de 1970, dia em que se deu pelo desaparecimento de Percy e em que na agenda do pintor estava escrita apenas a palavra Henrique (como se Percy tivesse reservado a esse Henrique todo o seu dia), chegara a Lisboa um barco com tropas provenientes do Ultramar.
A pista do código SPM9864
O Henrique viria nesse barco? Teria algum desses jovens o código SPM9864 atribuído pelo Serviço Postal Militar ao Henrique com quem Percy se correspondera? Estaria Percy entre a multidão de pais, irmãos e namoradas que no cais aguardavam impacientes pelo momento em que no meio de centenas de uniformes reconheciam aquele por cuja vida tinham temido? Entre essas centenas de rapazes que descem sorridentes do barco alguns haveria certamente chamados Henrique. Teria algum deles suspeitado que sobre si recaía a suspeita de envolvimento no desaparecimento do pintor Percy Wood?
A natureza homossexual da relação de Percy com o soldado Henrique que lhe escrevera de Moçambique era óbvia. Mas daí a que o Henrique fosse responsável pelo desaparecimento de Percy ia uma distância abismal.
Fosse como fosse e fosse o Henrique quem fosse ele é o único que parece ter a chave da vida e talvez da morte de Percy Wood, o pintor australiano que escolhera em 1961 o Estoril para viver e quem sabe para morrer em 1970, porque a hipótese do suicídio começa a ser avançada.
Entre os amigos de Percy – “as melhores famílias do Estoril”, escreve-se nos jornais – levanta-se a hipótese de suicídio: Percy teria ficado muito abalado com a morte da mãe. Aliás Percy tinha estado fora de Portugal quase todo o ano de 1968 precisamente porque a morte da mãe o levara à Austrália. Por lá ficara ano e meio, tendo regressado apenas em Agosto de 1969. Mas seria isso suficiente para pôr termo à vida?
Os dias passam e as dúvidas sobre o destino de Percy continuam a crescer. No início de Fevereiro, o pavilhão onde Percy vivera entre 1961 e 24 de Janeiro de 1970 foi selado e finalmente o seu interior deixou de ser vasculhado por jornalistas que com as criadas por cicerones vasculhavam os papéis de Percy em busca de uma pista, de matéria para coscuvilhice ou simplesmente de nada.
Entretanto a PJ junta-se à PSP na investigação sobre o paradeiro de Percy. Um sinal de que a hipótese do crime começa a ganhar peso. Nas reportagens que os jornais da época dedicam ao caso percebe-se que a PJ investiga nos meios e locais associados à prostituição homossexual, os então chamados “certos meios da Costa do Sol”. O pintor era no dizer dos jornais “um homem educado mas de hábitos estranhos” forma eufemística escolhida pelo Século para referir o que o Diário de Lisboa descreve abertamente como “caso de homossexualidade”.
Até que a 10 de Fevereiro é feita uma prisão. Trata-se de um jovem de 24 anos que trabalhava como criado numa casa do Estoril. De facto fora soldado e sim conhecera Percy antes de ir para o Ultramar cumprir o serviço militar. Contudo não desembarcara em Lisboa a 24 de Janeiro. Até já tinha chegado do Ultramar há algum tempo. Mas chamava-se Henrique.
Henrique acaba a confessar ser o responsável, involuntário, pela morte de Percy. De facto, relata, estivera a 24 de Janeiro com Percy. Encontraram-se na linha do Estoril, mais precisamente na zona amuralhada da Praia da Poça. Discutiram. Porquê? Percy, recorda Henrique na confissão que faz à polícia, ainda o contratara como modelo depois do seu regresso do Ultramar, mas afastava-se cada vez mais. Já nem o recebia em casa, no tal pavilhão entre as árvores, onde ele, Henrique, esperara ser convidado a ficar. O jovem não aceita a separação. A conversa que os dois mantêm nesse dia 24 de Janeiro apenas acentua as divergências. Percy mantém-se na disposição de se afastar de Henrique. E é então que Henrique, quase 40 anos mais novo que Percy, dá um encontrão no pintor. Este cai da muralha ao mar. O resto é fácil de supor.
Quando os amigos esperavam por ele em Lisboa para jantar já Thomas Percy Wood estava morto. Enquanto o seu corpo era engolido pelas ondas o criminoso voltava costas ao mar e fugia. Não havia testemunhas nem deixara pistas. Só não podia deixar de se chamar Henrique.