Há vinhas a perder de vista na Quinta de S. Mateus, em Anadia. Não deixam ninguém indiferente e surgem ordenadas, como que encaminhando-se para junto da adega da família Campolargo, o destino final das uvas onde estas são, posteriormente, transformadas em néctares bairradinos de renome. O autocarro que nos leva de visita à quinta demora-se em redor da paisagem vinhateira, numa procissão lenta que parecer querer prestar homenagem ao vinho e deixa perceber uma realidade iminente: há uma outra Bairrada que se esconde do turista por entre milhares e milhares de cachos.
A terra encravada entre três serras — Caramulo, Lousã e Bussaco — e situada a meio da costa Atlântica tem mais do que aparenta ao primeiro olhar. Além do leitão e do espumante porque é continuamente procurada, a Bairrada tem outro encanto, o do enoturismo. No cenário pouco idílico bairradino encontram-se quintas dedicadas à produção de vinho que abrem as suas portas a todo o curioso. Visitas acompanhadas a adegas e provas de vinho andam de mãos dadas com uma história vínicola capaz de despertar o interesse de quem a visita. Que o diga o Mister Baga, também conhecido por Luís Pato e um dos produtores mais famosos daquelas bandas: “Todas as regiões têm fases melhores e piores e isso resulta da capacidade que os agentes económicos locais têm para acompanhar as ‘modas’. A Bairrada só agora está a levantar-se do adormecimento pelo qual passou nos últimos 20 anos”, explica ao Observador.
Pato sabe do que fala. A família produz vinho na Quinta do Ribeirinho desde o século XVIII e foi João Pato, o pai, quem começou a engarrafar as vinhas em 1970, tornando-se assim no primeiro produtor-engarrafador na região após a sua demarcação. Luís, o filho, tomou conta da quinta já na década de 1980 e atualmente trabalha vinhos que diz combinarem a técnica do “novo mundo” com a tradição secular do “velho mundo”. O legado que lhe corre no veias revela-se também na arte de (bem) receber: provas e visitas à parte, na propriedade é possível saborear um almoço regional servido por um restaurante local (menu completo com vinho incluído por 50 euros a pessoa).
O acérrimo defensor da casta tinta que domina a paisagem vinhateira, a Baga — que diz ser tanto amada como desamada — conta que a perceção da qualidade vinícola da região tem vindo a mudar. É por isso que faz parte de um clube restrito que pretende “adorar” a casta: os Baga Friends surgiram há coisa de três anos para explicar ao mundo que a casta temperamental, que ora dá vinhos bons como gera outros imbebíveis, vale a pena ser conhecida. O grupo composto por sete elementos, sobretudo membros de uma nova geração incomodada pelo uso recorrente de castas voadoras (aquelas que facilmente encontramos em diversas regiões e que, diz Pato, são sobretudo oriundas de França) quis fazer valer a Baga, na qual veem o cartão-de-visita da região (que é igualmente conhecida pela produção de espumantes, sendo que seis a sete milhões de unidades da bebida, de um total nacional de 11 milhões, provêm daqui).
Mário Sérgio, da Quinta das Bageiras, é um dos produtores associados aos Baga Friends. O negócio de família vai na terceira geração e a exploração que começou com 12 hectares de vinha em 1989 tem hoje 28. A evolução não é significativa e é mesmo essa a intenção, isto é, manter o projeto pequeno e com primazia no uso de técnicas de produção mais artesanais. É o caso dos espumantes — brancos, tintos e rosés — produzidos com a designação “bruto natural”, o que significa sem adição de sacarose. Na quinta de Mário as portas também se abrem e é o proprietário que, por norma, faz questão de receber quem se faz de convidado. Sorriso colado ao rosto, discurso num ritmo frenético e paixão pela história que repete vezes sem conta caracterizam o percurso pela adega de pequenas dimensões. No final há prova de vinhos que funcionam por marcação.
Mas nem todos partilham o carinho pela Baga, a casta que vinda do Dão foi adotada pela grande maioria dos bairradinos. Nos 170 hectares do negócio de família de Carlos Campolargo, que ocupam as quintas de S. Mateus e de Vale d’Azar, há espaço para 29 castas diferentes que foram sendo cultivadas ao longo do tempo e das gerações. Em conversa com o Observador, Campolargo garante que a Baga não é a única oportunidade da região: “Isto da Baga ser dominante é uma coisa do século XX, pós-filoxera. Antes desta reorganização da vinha bairradina, a região usava uma variedade de uvas, tal como as demais regiões do País, capaz de proporcionar uma melhor resposta em cada ano à variabilidade do tempo”. O produtor lança ainda a acusação: “Foi a Baga, maioritariamente, que levou a região ao ponto de que só agora dá mostras de querer sair”. Não obstante, não se diz “inimigo” da casta. Apenas tem outras 28 amigas.
O certo é que a fama da Bairrada não é de todo linear. Entre as décadas 1970 e 1990, viveu tempos áureos a par e passo com o Dão. Os vinhos característicos bairradinos, com forte acidez, cheios de taninos e imbebíveis nos primeiros anos de produção, foram perdendo protagonismo à medida que os néctares mais fáceis do Alentejo (e não só) chegavam às prateleiras com uma rapidez resoluta — as colheitas eram boas de ano para ano, ao contrário do que é capaz de proporcionar a Baga.
A mudança tornou-se inevitável. A redução de consumidores convidou à readaptação das casas vinícolas que antes se limitavam a engarrafar os vinhos que eram vendidos a granel pelas adegas cooperativas. Recentemente, a relação tornou-se bilateral e, agora, quem produz também engarrafa. “Hoje estamos a colher os primeiros frutos dessa mudança. Ainda há um caminho a percorrer, mas estamos muito mais a par das outras regiões vitivinícolas do país”, explica Pedro Soares, presidente da Comissão Vitivinícola da Bairrada, ao Observador. “Hoje consegue-se tirar partido de anos como este, que foi mau, ao apostar no rosé e no branco ao invés do vinho tinto”.
O enoturismo é uma clara oportunidade, explica Pedro Soares, que ainda não está devidamente explorada e, talvez por isso, a Bairrada continue muito associada ao leitão e ao espumante, como faz questão de relembrar. Apesar do ritmo de evolução mais lento do que seria de esperar por quem luta pela terra onde vive, o interesse da Bairrada estende-se também a entidades culturais que vão ganhando destaque. É exemplo o Aliança Underground Museum: as tradicionais caves da Aliança Vinhos de Portugal, fundada em 1927, acolhem coleções distintas com o cunho José Berardo. Acervos nas áreas de arqueologia, etnografia, mineralogia e até cerâmica, cuja exposição funciona tal qual uma linha de metro, podem ser visitados (a pé) ao longo de cerca de um quilómetro. O turista é convidado a explorar as caves num percurso contínuo, pelo qual vão marcando presença inúmeras garrafas e barris. As visitas são guiadas, de outra maneira não poderia ser, e duram perto de 1h30.
O Museu do Vinho da Bairrada é outro ponto de referência. Inaugurado em setembro de 2003, apresenta uma exposição permanente designada por “Percursos do Vinho” que ocupa seis salas temáticas e multiplica-se em peças de valor arqueológico, etnográfico e técnico. É, no fundo, o resultado de um trabalho de equipa de diversos vitivinicultores, entre outras entidades de âmbito local e nacional. O museu tem ainda uma enoteca, loja de vinhos e um auditório para 80 pessoas.
E porque a Bairrada abraça oito concelhos — Águeda, Anadia, Aveiro, Cantanhede, Coimbra, Mealhada, Oliveira do Bairro e Vagos — há também turismo de termas, no Luso, cujas virtudes terapêuticas das águas datam de 1726. E também aquele paisagísitico se pensarmos na Mata do Bussaco. Situado a 548 metros de altitude, o bosque compreende uma grande variedade de árvores nativas, mas também espécies de vários pontos do globo que ali foram plantadas (e cuidadas) por gerações de monges Carmelitas Descalços. Destaque ainda para o antigo Convento de Santa Cruz da mesma ordem de monges fundado em 1834, e o histórico Palace Hotel, um projeto de Luigi Manini construído para os últimos reis de Portugal, no século XIX.
Posto isto, coloca-se uma questão inevitável: o que é que a Bairrada tem? Charme, muito provavelmente.