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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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O novo programa de Ricardo Araújo Pereira é trabalhar com quem goza

Alberto Gonçalves viu a estreia do regresso do humorista à SIC. Na primeira parte, encontrou um Ricardo com a perfeição habitual, a que lhe deu fama. Mas os segundos 15 minutos não foram famosos.

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O “meio”

Convidaram-me para escrever aqui sobre o novo programa do Ricardo Araújo Pereira na SIC. Fiquei espantado. A SIC ainda existe? Ou melhor, eu sei que a SIC e a TVI ainda existem (a RTP, para efeitos além da propaganda, faleceu há décadas ou nem chegou a nascer). O que não sabia é que continuavam a exibir programas distintos de concursos, novelas, Cristinas e variedades disfarçadas de telejornais. Pelos vistos, do alto dos seus prejuízos, a SIC resolveu patrocinar um telejornal disfarçado de variedades. Ou um noticiário humorístico, que é o que “Isto é Gozar com quem Trabalha” pretende ser. Também estranho que uma estação que conta com o sr. Costa Ribas nos quadros não aproveite (a designação moderna é “fomentar sinergias”) tamanho mestre do burlesco e, após deixar fugir Pacheco Pereira, vá recrutar comediantes no exterior.

Para cúmulo, recrutou o Ricardo, merecedor de uma data de elogios que me dispenso de repetir. Digo apenas que gosto de ver o Ricardo e que nunca me lembraria de ver a SIC se não fosse o convite do Observador. E digo-o para dizer que não conheço ninguém da minha idade ou abaixo dela (hoje uns 55% dos portugueses, raios os partam) que veja canais assim. A experiência ensina-me que:

1) os velhinhos vêem exclusivamente a CMTV, onde pessoas da geração real ou mental deles peroram acerca de crimes passionais e acidentes de motorizada;

2) os sujeitos de meia-idade vêem a Netflix, a HBO e a Amazon Prime, onde pessoas da geração deles tentam reproduzir, normalmente em vão, os méritos de “Breaking Bad” ou “The Sopranos”;

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3) as crianças, dos 3 aos 33 anos, vêem outras crianças aos berros no YouTube.

O novo programa de Ricardo Araújo Pereira vai ser “uma pessoa a resmungar numa mesa, com pessoas a ver”

Não faço ideia de quem vê os canais tradicionais, decerto um nicho dentro de um nicho. Sobretudo não faço ideia de quem vê os canais tradicionais para ver o Ricardo. Consultam-se as listas dos “mais vistos” a cada ano e, nos anos recentes, dezoito ou dezanove dos vinte primeiros lugares estão ocupados por jogos de futebol. Tradução: um “youtuber” que se filma na casa da mãe e pontua as frases com “uoréver” tem audiências superiores a todos os “conteúdos” televisivos, com a possível excepção de duas dúzias de partidas da bola. À semelhança do que aconteceu em tempos com os jornais, as televisões atravessam um processo de mudança: a questão é que o processo muda e as televisões ficam imóveis.

O “formato”

Recentemente, o Tiago Dores contou-me que muitos sugeriam aos Gato Fedorento fazerem uma versão nacional do “Daily Show”. Era, obviamente, um bitaite de entendidos sem noção dos custos de um programa assim. Há o imenso custo de pagar aquilo. E, pela parte que me toca, há frequentemente o relativo custo de assistir àquilo. Tirando o período áureo de Jon Stewart, ajudado por figuras que fariam carreira fora dali (Steve Carrell, Ed Helms, Stephen Colbert), o “Daily Show” raramente foi suportável. No seu melhor, foi magnífico, e criou um novo padrão para a paródia de telejornais. Por azar, criou igualmente uma crença no próprio brilhantismo que irritava um santo. De tão incensado, o “Daily Show” passou a levar-se a sério – e a dificultar que o levássemos a brincar. De palhaço inteligente, Stewart desceu a guru partidário, consciente de que, para sectores consideráveis da população, o seu espaço de rábulas era mais influente do que os noticiários convencionais. Sem surpresas, a graça perdeu-se pelo caminho: não tem piada ponderar e antecipar o efeito “social” da piada. Depois, Stewart reformou-se sério e institucional, o “Daily Show” prosseguiu com um apresentador que desconheço e as derivações (“spin-offs”, em estrangeiro) multiplicaram-se.

Como “Esmiúça os Sufrágios” e “Gente que não Sabe Estar”, “Isto é Gozar com quem Trabalha” prometia para aí uma dúzia de políticos. Dias antes da estreia, a SIC anunciou o primeiro: o prof. Marcelo. Não me surpreendia tanto desde que a Protecção Civil nos aconselhou a vestir roupa quente no Inverno.

Algumas das derivações têm sucesso (“Last Week Tonight With John Oliver”, “Colbert Report”), algumas não (o “Nightly Show”, de Larry Wilmore, ou “The Opposition With Jordan Klepper”). Algumas das derivações são tão bem feitas que quase se toleram (Oliver), algumas dão vontade de inocular o coronavírus no responsável (o detestável Colbert). Algumas das derivações são militantemente “liberais” (no sentido americano do termo), nenhumas são coisa diferente da militância “liberal”.

Eis um ponto interessante (no sentido deprimente do termo): a sátira política no “cabo” está por conta da esquerda local. Não é por causa de Trump, discutivelmente um alvo apetecível (e que inspirou as melhores “punch lines”, ao vencer as eleições que Oliver, Colbert e etc., divertidíssimos e pedantes, garantiam perdidas). Independentemente de quem ocupa a Casa Branca, o alvo são os republicanos, ou a “direita”. A verdade é que à direita (que se diverte na “net” e na “talk radio”) ou à esquerda (que suga até ao fim um ramo em declínio: nos últimos 5 anos, 10 milhões de lares americanos cancelaram as subscrições da televisão), não aprecio humor com “agenda”. Nem sequer aprecio demasiadamente humor político. E não tenho apreciado as incursões do Ricardo no género, com ou sem os Gato Fedorento, adaptações à escala nacional do “Daily Show” sem um pingo dos meios ou, vá lá, da pretensão.

O “conteúdo”

Esta longa mas desnecessária introdução serve para informar que o último programa do Ricardo que eu vira sem a obrigação de escrever a propósito foi “Melhor do que Falecer”. A culpa não é do Ricardo, indiscutivelmente o maior comediante português a seguir a Fernando Tordo. A culpa é dos “magazines” políticos, os quais, incluindo aqueles com aspirações à galhofa, me aborrecem – porque tratam de políticos e, santa misericórdia, porque contêm políticos, em geral sob a malfadada forma de entrevista “gira”, na qual o político “simpático” e “descontraído” finge rir-se de si mesmo e consente à ralé a ilusão de julgar que se ri dele. Salvo por motivos profissionais, não veria um político a falar a menos que me ameaçassem com dois políticos a falar. Como “Esmiúça os Sufrágios” e “Gente que não Sabe Estar”, “Isto é Gozar com quem Trabalha” prometia para aí uma dúzia de políticos. Dias antes da estreia, a SIC anunciou o primeiro: o prof. Marcelo. Não me surpreendia tanto desde que a Protecção Civil nos aconselhou a vestir roupa quente no Inverno.

Serão sempre deprimentes as metades que dependam dos políticos convidados e não do talento do Ricardo e dos argumentistas

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

O Artigo 328.º do Código Penal (“Ofensa à honra do Presidente da República”) colide com as minhas opiniões sobre a personalidade que ocupa o cargo. Talvez escape da multa ou dos três anos de cadeia se me limitar a dizer que, descontando a generalizada demência do Bloco de Esquerda, o prof. Marcelo simboliza o pior do regime. Ao contrário de Gerald Ford, Clinton e até Obama, as passagens do prof. Marcelo pelo mundo do espectáculo não são ocasionais cedências ao público: são a sua rotina e foco exclusivo. Se há universo a que o prof. Marcelo não cede é a tudo o que não seja pagode, sentimentalismo ou divertimento inconsequente. Se lhe cheira a forrobodó ou melodrama infantil, lá comparece o prof. Marcelo num ápice e com as câmaras atrás (ou à frente). Em compensação, se o assunto parecer complicado ou prometer polémica, não haverá vestígio de Sua Excelência nas imediações. Programa cómico? Em horário nobre? Contem com ele. Com o entusiasmo das vítimas de sacrifícios maias, contei com ele, a SIC sintonizada e o computador ao colo. Pouco antes da comédia do Ricardo, Marques Mendes terminava a prédica que presumo semanal. A SIC é realmente péssima a fomentar sinergias.

O “Isto é Gozar com quem Trabalha”

O programa abriu inevitavelmente com o coronavírus. Vimos o dr. Costa a recomendar distância às pessoas, como se alguém com dois neurónios ou vergonha na cara se chegasse à criatura. Vimos a directora geral de saúde a recomendar as compras nas lojas dos chineses, como se as lojas dos chineses tivessem pechisbeques fascinantes. E vimos o prof. Marcelo a dizer não sei bem o quê, como o prof. Marcelo diz. Pelo meio, o Ricardo acrescentava umas graças que, sem serem más, não acrescentaram muito à graça inicial. É o problema da sátira política em países exóticos: já vem pronta.

Dado que a eutanásia é uma questão complexa, o prof. Marcelo executou uma finta espectacular para evitá-la: o sr. presidente não se sente à vontade para comentar a vida, a morte ou o sofrimento. Nem, digo eu, qualquer tema susceptível de suscitar divisões e retirar-lhe votos. Golo!

De seguida, o aeroporto, que agora terá de ser impreterivelmente do Montijo e antigamente teria de ter sido obrigatoriamente noutros lugares, de acordo com as flutuações do PS e do PSD. A sátira já vem pronta.

Entrou enfim o profeta André Ventura, a berrar dezenas de vezes a palavra “vergonha” na apresentação da candidatura presidencial. Ao estafar a “vergonha”, decidiu confessar que sonha com a castração física dos pedófilos. O Ricardo puxou das facas e o dr. Ventura puxa a corda do radicalismo: não tarda, exige a degolação de homossexuais e portistas. A sátira, escusado repetir, já vem pronta.

A segunda parte de “Isto é Gozar com quem Trabalha” preencheu-se com o prof. Marcelo no palácio de Belém, que pelos vistos é do povo (a título de teste, amanhã vou lá estrelar ovos ao pequeno-almoço). O prof. Marcelo, que demorou breves segundos até falar de Cristina Ferreira, uma das suas referências intelectuais, começou por ouvir o Ricardo questioná-lo sobre a eutanásia. O Ricardo não ouviu o prof. Marcelo responder-lhe. Dado que a eutanásia é uma questão complexa, o prof. Marcelo executou uma finta espectacular para evitá-la: o sr. presidente não se sente à vontade para comentar a vida, a morte ou o sofrimento. Nem, digo eu, qualquer tema susceptível de suscitar divisões e retirar-lhe votos. Golo! À questão em volta de Tancos, o prof. Marcelo, fortíssimo no um para um, aplicou um túnel sob as pernas e a ladainha do, cito (juro que cito), “Tem de se apurar responsabilidades, de alto a baixo, custe o que custar, doa a quem doer”. Golo! Se não se distingue pela coragem ou pela franqueza, o prof. Marcelo é exímio na lata. E a lata funciona: o Ricardo desistiu das perguntas difíceis e alinhou nas vacuidades em que o prof. Marcelo se deleita.

Ricardo Araújo Pereira: “Tenho responsabilidade sobre as piadas, não de educar as pessoas”

O prof. Marcelo emitiu vacuidades alusivas à democracia e vacuidades alusivas aos emigrantes. À boca da baliza, rematou um portentoso “Quem corre por gosto não cansa”. Golo! A goleada construiu-se no inventário presidencial às virtudes e defeitos dos líderes partidários. A banalidade absoluta e golos aos magotes! E um tédio de cortar os pulsos! Com o frémito com que o dr. Ventura retalhará os pedófilos!

O “rescaldo”

O Ricardo, que aparece sozinho ao longo da emissão, faz o que tem a fazer com a perfeição habitual. As piadas, de facto poucas, oscilam entre o mediano e o óptimo. A metade inicial vê-se com gosto. A metade final, no caso por obra (e não por graça) do prof. Marcelo, é deprimente. Serão sempre deprimentes as metades que dependam dos políticos convidados e não do talento do Ricardo e dos argumentistas. Mas, para mais com os pindéricos recursos pátrios, um produto destes dá uma canseira, e os enfadonhos convidados dão folga e, quiçá, manchetes. No fundo, eles é que gozam. Os autores trabalham. Vale a pena? Vale os proverbiais 15 minutos de fama. Os restantes 15 minutos não são famosos.

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