Combinei encontrar-me com o Simion à uma e meia no primeiro piso do parque de estacionamento do Centro Comercial das Amoreiras, em Lisboa, mesmo em frente ao AutoSPA Pronto Wash. Ali parado, pergunto a um rapaz brasileiro de vinte e poucos anos se viu o Pai Natal. Ele ri-se, diz-me que ainda não o viu chegar e aponta para uma pequena porta branca com uma luz vermelha intermitente por onde o Simion alegadamente costuma entrar. Faltam cinco minutos para a hora combinada e eu ali estou, na esquina com a cancela, à espera de um homem de barbas brancas mais habituado a voar pelos céus do que a rastejar por parques subterrâneos. Passam Seats, Audis, Volkswagens e Mercedes, mas trenós puxados a renas, que é bom, nada, nem vê-los.
Até que, por fim, vejo à contraluz um homem de enormes barbas descer a rampa. Traz consigo um saco de supermercado com uma garrafa de refrigerante lá dentro. Cumprimenta-me e dirige-se aos balneários. Antes ainda de começar a vestir-se, explica que tudo começou em 2009, no então (também centro comercial) Dolce Vita Tejo, e passa-me para a mão dois livros: uma tradução sua de uma antologia de textos do padre António Vieira e Viva, Senhor Presidente!, um romance escrito por si em romeno e mais tarde traduzido para português. Espantado com tudo aquilo, pergunto-lhe se é escritor. Ele diz que não, que só escreveu uns livros. Quantos, pergunto eu. Sete ou oito, responde. Enquanto despe a camisa aos quadrados, acrescenta que tem dois doutoramentos, um obtido em Cluj, em Linguística, sobre o texto cúltico ortodoxo, e outro em Filosofia, pela Universidade de Lisboa, sobre a obra do linguista romeno Eugenio Coseriu.
Despe agora as calças enquanto me fala dos seus dois filhos, um a viver na Roménia e outra nos Estados Unidos, e dos três netos com quem fala através do WhatsApp, só tendo até hoje estado presencialmente com um deles, há já alguns anos. Pouco antes de chegar ao centro comercial, a ex-mulher telefonou a dizer que a filha tinha pena de que Simion fosse o Pai Natal. Diz isto resignado, enquanto explica que chegou a Portugal em 2001, por sugestão de um antigo aluno do seminário de Teologia, onde ensinava Língua e Literatura Romena.
À medida que pendura as roupas e se envolve em vermelho, Simion parece libertar-se também do homem que é, para se transformar, enfim, no Pai Natal. As barbas desgrenhadas, o olhar doce e atento e aquele português perfeito misturado com o sotaque transsilvânico tornam a ilusão quase mágica. De costas voltadas para mim, procurando com os dedos o cabide do cacifo, fala-me de um exorcista que conheceu na Roménia e, enquanto tenta fechar a presilha do cinto, recorda o pai, padre ortodoxo. Foi daí, garante-me, que surgiu a vontade de trabalhar no eixo espiritual, porque o Pai Natal é, segundo este Simion desvanecente, o padre das crianças.
Quando lhe pergunto porquê, responde, num padrão repetido vezes sem conta nessa tarde, com outra coisa absolutamente diferente, argumentando que quando se refere a crianças está a falar de todos nós. Olhando para trás, imagino agora que Simion talvez não me respondesse ao que lhe perguntava porque o papel do Pai Natal é o de nos dar o que precisamos e não o que queremos. Mas talvez ele estivesse só distraído a pensar na filha americana.
Enquanto ajusta o barrete, pergunto se o dinheiro pesou na decisão de se tornar no Pai Natal? Oh-oh-oh, ri-se Simion. Tento saber como decide o que dizer aos miúdos e ele garante que mal a criança se senta no seu colo, já percebeu se os pais lhe podem dar a prenda que quer ou não, dizendo sempre que o Pai Natal é velho e que por vezes se esquece das coisas. Depois, fala das crianças (normalmente raparigas) que pedem paz na família, sem me dizer o que se responde a uma coisa destas. É um segredo lá deles.
O Pai Natal levanta-se e, a caminho do elevador, lembro-me de que ainda não sei de que se ocupa durante o ano. Pergunto. “Sou Pai Natal”, responde. Percebo agora que Simion Doru Cristea desapareceu bem à frente dos meus olhos, para dar lugar a esta criatura que tenho quase a certeza absoluta de que não existe.
No elevador, os adultos que viajam connosco fazem cara séria e fingem não reparar na presença inusitada, mas os seus olhos, retornados à meninice, sorriem. Uma senhora aponta sorrateiramente a câmara do telefone para as botas pretas e calças vermelhas, para, por um lado, não ser repreendida pelo Pai Natal, deitando tudo a perder na reta da meta, e, por outro, por precisar de uma prova de que conheceu mesmo o velho barbudo.
No caminho até ao trono, dois miúdos de quinze anos interpelam o Pai Natal, perguntando-lhe se está a dar presentes. Recebem dois rebuçados cada um, ao que o mais lampeiro responde: “Eish, obrigado, mano”.
O Pai Natal conta-me então que não é raro, durante o ano, crianças cruzarem-se com ele e reconhecerem-no, piscando o olho ou acenando, como se não fossem os adultos a guardar segredo da inexistência do Pai Natal, mas sim os miúdos a fazer caixinha da existência daquele homem santo. Enquanto sobe as escadas, passando ao lado do presépio, toca no ombro de uma menina com uns três anos que, ao dar meia-volta, solta um suspiro, tapa a boca com as mãos, esbugalha os olhos e fica cheia de alegria. Ela estende as mãos e o Pai Natal enche-as de rebuçados, em quantidades que o ministério da Saúde com certeza reprovaria.
Chegamos enfim à Aldeia do Pai Natal, que, sei agora, não fica na Lapónia mas na esquina da Maje com a Sandro. Mal se senta, uma rapariga sobe envergonhadamente para o seu colo e pede-lhe um relógio, o que leva o Pai Natal a falar da responsabilidade que trazer o tempo ao pulso acarreta. Na verdade, isso é o que o Pai Natal me diz que lhe disse, porque a partir daqui as conversas entre si e as crianças serão tidas em sussurros, o que me deixa a mim, enclausurado que estou na minha adultice, mais uma vez do lado de fora do segredo.
Poucos minutos depois, o senhor Gonçalves, que todos os anos visita a aldeia, abraça o Pai Natal e senta-se ao seu colo, mostrando-lhe fotografias que traz guardadas no telemóvel de encontros anteriores entre estes dois amigos e, a seguir, mostra-lhe também uma capa com retratos acabados de revelar das filhas. O senhor Gonçalves conta-me em segredo que o Pai Natal partilha com ele a paixão pelo Sporting, o que acredita ser um bom prenúncio para o clássico que haveria de ser disputado dali a umas horas. Mal se afasta, Simion garante que não liga a futebol, mas que diz a todos ser do seu clube, porque o Pai Natal torce por todos nós, acrescentando que sem fé não há Pai Natal, nem democracia, nem linguagem. Ao dizê-lo, parece libertar finalmente Simion, que passará os quinze minutos seguintes a dissertar sobre a diferença entre pensamento e linguagem, sobre o conceito de energueia em Aristóteles e sobre o comunismo romeno durante o governo de Ceaușescu.
Pergunto então pelo seu amigo Rudolfo. Simion volta a desaparecer enquanto o Pai Natal explica que as suas renas estão no sítio da espera, onde há gelo a sério, ao contrário do gelo a brincar do Amoreiras Shopping Center. Onde há gelo, diz, não há prazer. Tento sem sucesso conjugar isto com a ideia de Lapónia enquanto o Francisco, um garoto de cinco anos que me perguntou se aquele era o Pai Natal verdadeiro, lhe pede um carro amarelo e sai dali aviado com uns vinte rebuçados e uma promessa de felicidade diferida.
Pergunto-lhe então como fará para percorrer o planeta inteiro em vinte e quatro horas dali a menos de uma semana, ao que responde que quem ama está perto do objeto amado. Amando-nos a todos, o Pai Natal ocupa o centro de um mundo sem subúrbios, chegando por isso com facilidade a qualquer lado. Nesse momento, semicerro os olhos e, tal como o Francisco cinco minutos antes, procuro Simion por detrás daqueles óculos pretos, sem saber se ele está de facto ali.
Antes de nos despedirmos, o bom velho Nicolau conta-me que aqui há uns anos uma rapariga de vinte e tais lhe pediu para ficar noiva. Ele olhou-a muito sério e perguntou se era mesmo isso que queria. Ela disse que sim e ele prometeu que, nesse caso, o seu desejo se concretizaria. No ano seguinte, a rapariga esperava-o comovida na escadaria das Amoreiras, de mão dada ao noivo. O Simion aperta-me a mão e sussurra-me ao ouvido: “Quem vive o milagre, fica cheio e em silêncio”. Eu afasto-me e, a caminho da saída, levo à boca o rebuçado de mirtilo que ficara entre a minha mão e a de Simion.
Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vidas