Numa noite de inverno, há uns anos, entrei no autocarro vindo da faculdade; vinha moído da aula de três horas, vinha dessintonizado da excitação boémia dos meus colegas, e quando contava encontrar aqueles olhares francos e perdidos de que os transportes públicos me tinham oferecido já tantos exemplares, vejo as duas passageiras septuagenárias — as únicas passageiras nessa noite — a jogar Candy Crush em telefones de última geração. Hipnotizadas pelos ecrãs cheios de cores garridas e formas geométricas. Alheadas da tristeza que tivessem, e também das ruas de Lisboa que passavam nas janelas como anúncios de um filme antigo. Pensei: “Deve ser a isto que chamam o espírito do tempo.”
A imagem dessas senhoras de rugas fundas e cabelo grisalho curvadas em silêncio sobre o deus de sete polegadas ficou-me como emblema da época atual. A respeito disto, é frequente ouvirmos lamentos como: “Agora as pessoas só mexem no telemóvel e não prestam atenção a nada!”, “Agora está tudo afundado no ecrã e já ninguém conversa!”. Mas, se é evidente que há uma mudança comportamental que está associada ao desenvolvimento da tecnologia, também é verdade que os smartphones não criaram ex nihilo o fenómeno com que deparamos em qualquer passeio pela rua ou dentro das nossas casas. Há algo em nós que propicia o vício dos pequenos aparelhos digitais, que nos leva a aproveitar estas ocasiões como o ladrão aproveita a carteira deixada à vista.
Que andamos todos à procura de alguma coisa — um bem sem espinhas, sem notas de rodapé, capaz de calar de vez as queixas da alma — é um lugar-comum do pensamento ocidental. E que a vida tem a estranha e teimosa mania de nos dar para trás, de pôr entraves à própria corrida que nos pôs a correr, qualquer pessoa minimamente atenta já se deu conta. Seja através de governos incompetentes, cônjuges temperamentais, lamentáveis defeitos próprios ou outras adversidades quaisquer, o tempo corresponde a uma sucessão mais ou menos airosa de negações da nossa aspiração suprema. O que Blaise Pascal descreveu com particular agudeza foi a maneira como, ensanduichados no meio deste mal-entendido entre o extraordinário bem que queremos e o ordinário mal que temos, tendemos a desviar o olhar do conflito, por meio de subterfúgios mais descarados ou mais subtis. Estamos predispostos para a alienação. Sentimos um apelo no sentido de não olhar nos olhos o problema que, no dia do nosso nascimento, veio pespegado a tudo; é o “Embriagai-vos!” que Baudelaire eternizou no Spleen de Paris: “De vinho, poesia ou virtude, não interessa. Mas embriagai-vos.”
Seria preciso uma tese de doutoramento para explicar isto. Mas há duas perguntas que ajudam a entrar na visão pascaliana. Porque é que é tão aliciante viver com pé e meio no futuro, imaginando as glórias por vir, sonhando as conquistas do amanhã, projetando permanentemente o que só mais tarde há-de ser — mesmo depois de tantos projetos que não pagaram o que prometiam? E porque é que exercem sobre nós um fascínio tão poderoso coisas que, no fundo, estamos fartos de saber que valem pouco, e não chegam para dar sentido à trabalheira de existir? Segundo Pascal, normalmente isso acontece porque estamos desesperados, ainda que de modo inconsciente, por fugir à impressão desoladora do nosso estado presente. Impressão essa que traduz o tal desencontro de fundo entre a plenitude a que aspiramos e a experiência comparativamente pobretanas que nos é dado ter.
O futuro é sobretudo o reino do imaginário, do não-real, o âmbito onde a possibilidade tem toda a margem de manobra: daí a sua leveza e o seu encanto. E o exterior, antes de ser isto ou aquilo, é sobretudo diferente de mim. Um passeio para apreciar a paisagem, uma telenovela no fim do dia, mais do que serem o que são, são oportunidades de eu ter algum descanso deste peganhento personagem insatisfeito que nunca me larga. Emigro então para as avenidas largas do futuro (“esse tempo que nem sabemos se chegará”) e passo o tempo imerso em bagatelas (que não aceitaria se me fossem oferecidas!), não tanto por ver nisso a salvação, mas sobretudo porque não é agradável reconhecer aquilo que o confronto comigo mesmo me mostra: que estou aquém de onde devia estar. A distração não é, assim, um mero fait-divers, o escape das horas livres. É um impulso existencial básico, capaz de moldar a totalidade da vida, convertendo as outras pessoas, a profissão e o que mais me pareça sério na existência em matéria desse modo alienado de viver.
Era suposto isto ser um artigo sobre smartphones? Ainda é. Não para enumerar de maneira paternalista as vantagens do aparelho, que são óbvias e dão muito jeito; nem para maldizer o progresso tecnológico, como os que gostam de mandar para a fogueira tudo quanto põe a nu as vergonhas da sua liberdade. O foco está apenas nesta fortíssima inclinação para usarmos o smartphone para lá do razoável — no sintoma que assim se manifesta. Numa canção chamada “Illegal Smile”, John Prine canta: “I’ve got a key to escape reality”. Com o smartphone, o que passámos a ter à nossa disposição, aqui, agora e sempre, é precisamente isso: “a key to escape reality”. Uma chave para escapar à contradição em que damos por nós fechados, e que se expressa naquele confuso mal-estar, naquele repetido empurrão para algo diferente, que sentimos a partir do momento em que cessam as ocupações e ficamos a sós com o que somos, aqui e agora. Pascal viveu quatro séculos antes de poder conhecer os espectaculares ecrãs multi-funcionais a que dedicamos uma boa fatia do nosso tempo; mas os seus textos sugerem que o triunfo do smartphone, sob a capa do inesgotável sucesso burguês, é sintoma da mais velha crise do mundo.
Acontece que agora, graças aos milagreiros de Silicon Valley, sempre que o aborrecimento nos deita uma das suas mãos sufocantes, sempre que o vazio nos visita na sua apavorante lividez, temos o smartphone para nos salvar. Seja a meio de um trabalho maçador, enquanto os filhos gritam por atenção ou até mesmo no silêncio de uma casa-de-banho demasiado branca, o smartphone resgata-nos do mundo da contradição, trazendo até nós a suave melodia de uma notícia qualquer ou o perfume inebriante dos melhores lances do Rivaldo. É a distração 3.0; a distração sem necessidade de esforço; a distração portátil, omni-presente, cómoda e infinita, emancipada até do trabalho de imaginar. Salve, ó bendito objeto!
Visto desta maneira, trata-se apenas da forma mais recente de uma tendência imemorial: a tendência para passarmos por este lugar enigmático em modo fuga-para-a-frente, em contramão ao “conhece-te a ti mesmo” que animou Sócrates. No entanto, há características que são de facto novas e configuram uma novidade sociológica relevante. Ao permitir um acesso tão fácil a formas de entretenimento, e ao disponibilizar a qualquer momento um diversificadíssimo leque de possibilidades, o smartphone não só multiplicou as ocasiões para pormos em prática a nossa predisposição natural, como acelerou os ciclos de evasão, dotando o fenómeno de um dinamismo mais sôfrego do que nunca. O efeito aditivo dos estímulos visuais acentua ainda mais a sofreguidão. E o sucesso social do aparelho também. O facto de o uso do smartphone estar tão disseminado habitua-nos a ver as pessoas recorrerem a esta nova “terapia ocupacional” nas situações mais variadas — e o hábito tem a capacidade mágica de converter os contornos polémicos de qualquer comportamento na evidência de que a vida é assim, de que não há nenhum problema nisso. De tal maneira que o mundo contemporâneo se vai transformando, cada vez mais, num carrossel vertiginoso de soluções infantis para um problema tão relevante como o que cada um de nós faz de si; mas como se nada de especial se passasse.
Se já vivíamos na chamada sociedade do espectáculo, com a sua avalanche de propostas potencialmente alienantes, passámos a viver numa sociedade em que os meios de distração se tornaram híper-individualizados, ainda mais abundantes e sobretudo com uma proximidade permanente que aumenta o seu poder de sedução. Assim, por um lado, é certo que, além de todas as vantagens que trouxe, o smartphone veio agravar a nossa queda por formas alienadas de estar na vida. Mas, por outro lado, como agora é quase impossível estar num sítio sem nos cruzarmos com pessoas absortas no entretenimento digital e como o fenómeno vai ganhando proporções verdadeiramente gritantes, o fundo desesperado de onde ele brota ficou menos escondido. De certo modo, para quem quiser ver, o triunfo do smartphone dá um destaque inédito ao problema que Pascal descreveu sem meias palavras num fragmento dos Pensamentos:
“A única coisa que nos consola das nossas misérias é a distração, e no entanto é a maior das nossas misérias. Pois é sobretudo isso que nos impede de pensar em nós, e que nos leva a perdermo-nos insensivelmente. Sem isso estaríamos em tédio, e esse tédio impelir-nos-ia a procurar um meio mais sólido de sair dele; mas a distração entretém-nos e faz-nos chegar insensivelmente à morte.”