Naquela tarde, Carlos Pinillos atravessou o frenesim do Chiado e chegou ao Teatro Nacional São Carlos, em Lisboa, em silêncio. Assim se manteve para conseguir com precisão notar cada detalhe que queria gravar na memória. “Tentei que fosse um dia como qualquer outro, mas era óbvio que não era um espetáculo igual aos outros. Dancei com a energia de um miúdo de 23 anos. Parecia que as minhas pernas não se cansavam.”
A 17 de dezembro de 2023, o bailarino principal da Companhia Nacional de Bailado despediu-se dos palcos. “A vida profissional de um bailarino é curta, efervescente. Mas, como na vida, há um momento para tudo e eu sabia que esse tempo ia chegar”, diz-nos.
Foi com La Sylphide, de Auguste Bournonville, considerado por muitos como o primeiro bailado romântico da história da dança, que, aos 46 anos, Carlos Pinillos deu por terminada a carreira como Primeiro Bailarino — o nível mais alto a atingir pelos bailarinos na hierarquia da CNB, e que executa essencialmente os primeiros papéis no repertório de uma companhia de bailado. No final, houve flores, discursos e lágrimas.
“Bailarino académico-clássico de incontestável valor artístico e com uma ética de trabalho irrepreensível”, escreveu sobre ele Carlos Prado, diretor artístico da CNB. “A excelência do trabalho que desenvolveu ao longo destes anos fez de Carlos uma referência incontornável no panorama da dança, tanto a nível nacional como internacional, e um exemplo para todos os jovens que aspiram alcançar a distinção artística, o respeito do público e a admiração dos seus pares.”
Nascido em Madrid, era garoto quando pousou o olhar na televisão, inebriado pelos movimentos do bailarino espanhol Antonio Gades. Não havia nem um rapaz naquela primeira aula de ballet em que apareceu pouco depois envergando um kimono do karaté. Aos sete anos, obteve uma bolsa de formação na escola de dança de Victor Ullate, passando a integrar a companhia do mestre e coreógrafo espanhol nove anos depois. Tornou-se primeiro bailarino em 1999 e deu o salto para a Companhia Nacional de Bailado em 2001. Foi bailarino estrela convidado da Ópera Estatal de Praga e de Istambul, recebeu prémios e elogios da crítica. Agora, no momento em que faz trinta anos de carreira numa das profissões fisicamente mais exigentes, escolheu parar.
No Teatro São Carlos, Pinillos senta-se com o Observador e recorda aquele dia invernoso. “Sempre quis sair do palco em silêncio. Acho que agora quem deve levantar a voz são os jovens artistas”, diz. Veste calças jeans e um casaco de cabedal, a voz é baixa e o tom pacífico. “Enquanto bailarinos, somos, desde crianças, avaliados todos os dias. Pelo professor, pelo diretor, pelo público, pelo coreógrafo, pelos colegas. O físico é um status”, acusa.
Nos últimos meses fora do palco, tem apreciado o tempo e a leveza que nunca encontrou nos dias ditados pelo horário frenético que o consumia. “Ver os meus filhos a crescer de uma forma tão saudável e tão pouco expostos à tensão e à pressão que eu e a mãe temos sido submetidos desde tão miúdos… Tanto a Filipa [Castro, também bailarina da CNB] como eu fizemos questão disso. Vê-los crescer com essa ingenuidade e liberdade é maravilhoso. É algo que estou a aprender com eles. Parece que as escolhas deles são mais realmente livres, a avaliação neles não é tão constante.”
Os filhos de 13 e 16 anos observaram a dureza com que os pais — dois primeiros bailarinos da companhia portuguesa — levaram o corpo ao limite em prol da profissão. “As pessoas têm uma ideia do bailarino que não é a de chegar à uma da manhã a casa e arrumar a máquina de lavar a loiça, preparar o almoço dos filhos para a escola, acordar às sete para os levar, voltar e dormir porque depois o trabalho começa às três, porque o espetáculo vai ser às nove da noite”, diz.
Contrariando a estatística, Carlos Pinillos não quis que fosse uma lesão a ditar o fim da carreira, como frequentemente acontece com os seus pares. “Um bailarino que não teve uma lesão grave é um bailarino com tal sorte que deveria sair do trabalho e jogar no Euromilhões”, brinca. As lesões são inevitáveis e momentos de crescimento (“a forma como nos levantamos vai revelar muito quem somos”, nota), mas nunca o pararam.
Decidir sair de cena, por fim, acabou por ser “orgânico”. “A forma como abraço esta arte fez com que tivesse uma ideia de qual era o meu papel. É muito clara a altura do guião na qual a minha personagem sai do palco. É aqui que sai.”
É um ato pacificado, que nada tem de revolta ou frustração. “É um ato de carinho”, classifica. “As coisas que senti em cima do palco foram maravilhosas, mas há miúdos atrás de mim que ainda não sabem o que isso é. E eu quero muito que eles saibam. A minha voz em cima do palco não se vai ouvir tanto como as dos artistas mais jovens. A quem cabe mudar o mundo é às gerações que vêm atrás de mim. Sinto que fiz o meu contributo. Agora posso ajudá-los.”
Não foi e não continua a ser fácil para os bailarinos encontrar um novo rumo quando chegam à meia-idade. Em Portugal, lutaram durante mais de quatro décadas pela criação de um estatuto próprio que reconhecesse as especificidades da profissão de desgaste rápido. Isso aconteceu em 2019 e hoje os bailarinos podem aceder à pensão de velhice dos profissionais de bailado clássico ou contemporâneo, direito que pode ser reconhecido aos 45 ou 55 anos, com diferentes limitações.
Mas Carlos não optou por nenhuma destas soluções. A nova lei prevê mecanismos de reconversão profissional automática para os bailarinos da CNB sempre que o bailarino não consiga mais exercer a sua atividade. Esse mecanismo de reconversão passa, nomeadamente, pela possibilidade, de, com o acordo do próprio e sem perda de direitos, pôr ao serviço de outros organismos do Estado, nomeadamente educativos e culturais, as competências e experiência dos bailarinos.
“Quero ainda continuar a contribuir com conteúdo, com o conhecimento acumulado ao longo destes 450 anos”, exagera. Carlos Pinillos continua a ser formalmente bailarino principal da CNB, que reúne atualmente 72 bailarinos, entre os 18 e os 58, de acordo com informação disponibilizada pela companhia ao Observador.
A lógica da reconversão “não é menosprezar aquilo que o bailarino fez ao longo da sua carreira”, sublinha. “Tanto a instituição [CNB] como eu precisamos de um tempo de reflexão para perceber de que forma podemos tornar mais útil aquilo que represento dentro da instituição.” Passará pela pedagogia, pelo apoio às novas gerações, pela salvaguarda da memória, garante. “Sinto uma grande falta de memória perante uma mercantilização das artes tão agressiva. Em cima do palco a minha voz já não se ouve tanto como a de outras gerações, mas fora do palco, a nível institucional acho que há um labor muito pedagógico para fazer em todos os âmbitos, educativo, político, social. Quero dar o meu contributo.”