Esta autora dirige-se a Vossas Excelências com a humildade que advém da educação que seus pais lhe deixaram de dote, mas não renega o sentimento de missão cumprida de forma estoica nas últimas 80 horas, grosso modo. Não será epopeia que mereça ser lavrada em 10 cantos ou pela qual valha a pena perder uma vista, mas…
Venho por este meio declarar que devorei de uma assentada as temporadas todas de Bridgerton, a história da ficcional família inglesa do séc. XIX, cujo apelido batiza o mais recente diamante da rainha da TV Shonda Rhimes. Sim, a “mãe” da Anatomia de Grey, a série de médicos que muitos consideram que devia ter sido eutanasiada há para cima de uma dúzia de anos, mas vai para a 21ª temporada. Como a conta bancária da criadora pode seguramente atestar.
E porque é que iniciei o texto conjugando o verbo dessa forma, qual ponta-de-lança que voava entre os centrais? Porque a dita série é narrada na terceira pessoa por Lady Whistledown, pseudónimo da redatora do folhetim de mexericos que põe a nu — e a expressão não é inocente — o que passa nas alcovas da corte londrina. Jornalista do social essa, eufemismo atual, que cita Byron logo para começo de conversa, coisa que não estou a ver acontecer numa TV Mais, chamem-me preconceituosa.
“Of all bitches, dead or alive, a scribbling woman is the most canine. If that should be true, then this author would like to show you her teeth.”
Se fiquei com vontade de tatuar? A resposta é um rotundo sim. Se vou assinar este texto com o pseudónimo Senhorita Assobia-para-o-Lado. Não, porque felizmente o editor possui a sensatez que me falta.
Mas voltemos ao prelúdio que me diz respeito: a meio da tarde de uma passada sexta-feira, perguntaram-se se eu queria escrever sobre a terceira temporada de Bridgerton, título em primeiro lugar no top da Netflix. Respondi “Giro, mas nunca vi.” É verdade que esta que vos escreve é consumidora ávida de todo o tipo de entretenimento audiovisual e é menina para ir de um Too hot to handle a um Bertolucci em menos de um fósforo, mas nunca tinha visto um minuto que fosse desta adaptação da saga de romances históricos da escritora Julia Quinn.
Factos curiosos sobre a autora: é americana (e não britânica, como muitos pensam), tirou História de Arte em Harvard e começou medicina em Yale, que abandonou devido ao sucesso literário. E ganhou 79.000 dólares no Elo Mais Fraco. E por falar em grande feitos: se eu fui uma heroína por ter dedicado mais horas a isto para me preparar para esta resenha, do que certos candidatos às europeias dedicaram à preparação para o cargo a que concorrem? Fica no ar.
Lembro-me de ouvir falar Mariana Cabral, a nossa Bumbs, pela altura da estreia (em meados de 2021), sobre Bridgerton. Dizia ela que era daquelas que servia o tão são propósito de vegetar em frente ao ecrã, reduzindo as sinapses a mínimos olímpicos. Perfeito para nos abstrairmos na nossa sala, de tudo o que de péssimo se passa lá fora. Um paliativo audiovisual recheado de gente bonita e saudável que, talvez por isso mesmo, padeciam de uma contundente dificuldade em manter as ceroulas vestidas. Se Bumba mentiu? Nadinha.
Aos três minutos e um segundo do primeiro episódio da primeira temporada, podemos assistir a Anthony, o primogénito da família, a arremessar-se contra um pinheiro, com uma moça de saias arregaçadas a almofadar as investidas entre ele e a árvore. Se é um início promissor? Alguns acharão. Se é meio batota para prender o espectador pelas hormonas? Talvez. Se é um sucesso retumbante? Os números dizem que sim. E eu gosto muito da palavra retumbante.
Em cada temporada, a trama anda à volta de um dos Bridgerton à procura do amor, uns com mais vontade do que outros. Passo a elencar as minhas considerações sobre as duas primeiras temporadas e sobre o quarteto de episódios da terceira, já disponíveis.
Temporada 1
A abrir o primeiro episódio, conhecemos a família Bridgerton: quatro irmãos, quatro irmãs e a matriarca viúva. Dada essa condição chata de ser mulher, é Anthony o filho mais velho que manda lá em casa (aquele que veríamos dentro de pouco mais de um minuto a abraçar a natureza com o corpo todo). Daphne Bridgerton é apresentada à sociedade, deslumbra a rainha com a sua beleza, que a nomeia o diamante da temporada, logo o prémio mais cobiçado pelos machos casadoiros… Isto é que é objetificação da boa, hein?
[o trailer da primeira temporada:]
Vai daí, Daphne conhece um duque com uma boca doce, mas uma alma azeda. Graças a trauma de pai tóxico e a ainda não terem inventado a terapia. Simon, o Duque de Hastings, tem tanto de sensualão como de descrente na humanidade, cuja frase de assinatura que repete ad nauseum é “I can’t have kids”. A narrativa é o que é: os protagonistas conhecem-se, tomam-se de ponta graças a um equívoco. Por conveniência mútua bem forçadinha, decidem fingir que são namorados, apesar de “se odiarem”… Sure, sure. No final, acabam juntos. Vitória, vitória, acabou-se a história. Aborreceu-me a tempos, apesar do rodízio sexual com que os protagonistas nos presenteiam na lua-de-mel.
Temporada 2
One down, seven to go. O Bridgerton que se segue é o primogénito, Anthony. Passou a primeira temporada a interferir na vida da irmã Daphne, com a desculpa que era tudo para o bem dela, mas na verdade só dificultava, qual Banco Central Europeu. Depois de um amor escandaloso com uma cantora de ópera, decide fazer o que lhe compete como macho alfa ou chefe de família ou guardião da galáxia ou o raio que o parta e vai procurar uma parideira. Peço desculpa, uma noiva.
O Anthony é um drama queen do pior. Passa a temporada toda a dizer que é um gentleman, com aquele sobrolho franzido de quem só vai bater aquele penálti porque já esgotaram as substituições. Lá lhes vislumbramos um sorriso quando consegue quebrar a armadura de Kate, a forasteira que veio para Londres para casar a irmã mais nova. E devo dizer que Anthony “quebrou a armadura” de Kate, pela primeira vez, nos jardins do palácio. Enquanto lá dentro, logo ali ao lado, acontecia um baile para toda a alta sociedade, famílias dos respetivos e Rainha da Inglaterra incluídos. Na mesma série onde jovens são obrigados a casar se forem apanhados a conversar depois do sol se pôr, sem a vigilância de alguém, o sexo ao ar livre é praticado com a ligeireza com que André Ventura insulta a constituição.
[o trailer da segunda temporada:]
Anthony e Kate provocaram piquinhos mútuos no baixo ventre no primeiro episódio, mas por motivos de fazer render o conflito, só se entendem no último. Apesar do cliché, ou trope como dizem os fãs, gostei bem mais desta season. Os outros núcleos ganham corpo e as personagens são melhor desenvolvidas, enquanto na primeira parecem terem a mesma relevância que os extravagantes arranjos florais.
Especial destaque para a família Featherington, que já tinha importância na história, mas ganha aqui outro peso. A mãe Portia faz tudo para manter a posição social, depois de uma viuvez com contornos escandalosos. Tem três filhas: as mais velhas que têm a sagacidade de um cântaro rachado e exalam odor de desespero para casar. A mais nova Penelope, tratada com desdém pela família e não só, é a mais inteligente do burgo. E senão é a estrela da série, está lá muito perto. Na terceira temporada então… Facto curioso: a matriarca da família é a cara chapada da Tia Cátia do 24 Kitchen e desafio para um duelo quem me contrariar.
Temporada 3
From friends to lovers é o cliché… Desculpem, é o trope que se segue no menu e o protagonista é Colin Bridgerton, o irmão que na primeira temporada teve um desgosto de amor e foi para à Grécia (há vidas piores). Na segunda temporada, passa o tempo a falar na dita viagem (no tempo do Facebook seria daqueles que partilham álbuns com cerca de 84 fotos) e agora é convocado para ponta de lança da história.
Embora já se tivesse verificado anteriormente o chamado “Shonda Effect” — um qualquer feitiço que Shonda Rhimes administra nas personagens que puxa para protagonista, transformando pães sem glúten em travesseiros da Piriquita — no caso de Colin a coisa é drástica. Se o glow up de Anthony passou por pouco mais que lhe mudar aquele penteado meio vocalista dos Placebo, para um cabelo de gente, o Colin da temporada 3 parece uma versão A.I. do Colin das anteriores. Eu cá não aprecio muito o look harmonização facial de ex-concorrente de reality show, mas posso ser só eu.
[o trailer de terceira temporada:]
A Penelope sempre foi apaixonada pelo Colin, já sem grande esperança de sair da friendzone. Mas no momento em que decide botar-se para jogo e desperta o interesse de um Lord vegetariano, o amigo que a tinha arrumado na gaveta das migas, começa a ganhar-lhe outro apetite. E leram bem: um lord vegetariano no séc. XIX. Se dúvidas houvesse que esta é a melhor temporada (embora ainda faltem os 4 episódios finais), acho que isto diz tudo. Menção honrosa para as lições da mãe Featherington às filhas, sobre a conceção dos seus futuros e necessários netos. Ri-me bem.
De resto, continua a haver muita cor, muito joia, muito tudo. Os rolos de tecido que não se gastaram neste seriado, em particular com estas fashion icons: Lady Danbury, Queen Charlotte e prémio Un Certain Regard para Cressida Cowper, a mean girl da história que usa uns figurinos over the top que me fazem lembrar a Helena Isabel no Tal Canal. Para os mais novos, a Helena Isabel é a mãe do Agir. E o Tal Canal… Vão procurar. De nada!
E numa série desta época é claro que isto é bailes dia sim, dia sim. Com a particularidade de boa parte das “valsas”, ao som das quais os gulosos e as gulosas se cortejam, são adaptações de músicas atuais: temos Taylor Swift, Ariana Grande, Rihanna, Pink, Miley Cirus, Alanis Morissette, Beyoncé… Mas o momento alto para mim é uma sequência de “dates” desastrosos de Anthony ao som de Stay Away dos Nirvana. Vocês sabem lá o quentinho que me deu. Por falar em calor, então e a cena que fecha o quarto episódio? Ó lindos, só vos vou dizer que se passa numa carruagem, mas não são só os cavalos que relincham. Desculpem, foi muito Parque Mayer, bem sei. Dormi pouco nos últimos dias, deem-me o devido desconto.
Bridgerton não é o Orgulho e Preconceito ou a Importância de Ser Ernesto, mas nem tudo tem de ser incrível, épico, o melhor de sempre. Como diria o meu pai, não deves confundir a obra prima, como a prima do mestre de obras. Mas há-de haver para aí algum sujeito que se juntou com a dita prima do dito mestre e não se queixa. Não é todo uma obra revolucionária, apesar das questões de classe e privilégio serem abordada aqui e ali. Também o feminismo é tema, de alguma forma, até porque as personagens nem sempre aceitam de ânimo leve o destino acetinado, mas constrangido pelos espartilhos literais e figurados que lhes são impostos.
Por outro lado, em Bridgerton, graças ao Rei se ter apaixonado por uma mulher negra, é declarado o fim da escravatura. Neste universo, cheio de rendas, folhos e laços, o amor vence tudo, de facto, e um ato individual resolveu o mal do mundo e apagou o ódio racial por decreto. Não me querendo repetir, não sei se isto é perfeito para nos abstrairmos na nossa sala de tudo o que de péssimo se passa lá fora, mas é um bom paliativo por umas quantas horas. 13 de junho há mais.