A meio caminho entre o português “a falar é que a gente se entende” e o latim “in vino veritas”, existe um provérbio catalão que diz: “Os segredos do teu vizinho ser-te-ão ditos por um jarro de vinho”. Seja com um cava catalão, seja com um espanhol vinho de La Rioja, a imagem de um qualquer Presidente de Governo de Espanha sentado com um presidente do governo regional da Catalunha parece estar hoje mais distante do que nunca.
Tudo isto culminou nesta semana, na qual foi publicada a sentença do julgamento em torno da preparação e execução do referendo independentista catalão de 1 de outubro de 2017. Dos 12 arguidos presentes durante o julgamento, todos foram considerados culpados de crimes que vão da desobediência à sedição, passando pelo desvio de fundos públicos. A sentença foi especialmente pesada para nove dos arguidos, que foram condenados a passar entre nove e 13 anos na prisão.
As reações políticas que surgiram dos dois lados da barricada deixam bem claro que tão cedo estes “vizinhos” não se falam e muito menos irão para os copos juntos.
Da parte do presidente do governo regional da Catalunha, Quim Torra, a sentença foi um “ato de vingança, não de justiça” e à qual entende que só se deve responder de uma maneira: convocar um novo referendo à independência da Catalunha já em 2020, mesmo que à revelia dos tribunais. Isto é, reincidir.
Da parte do Presidente de Governo em funções, Pedro Sánchez, ficou a garantia implícita de que todas as opções estão em cima da mesa no que toca a atuar na Catalunha, inclusive uma nova aplicação do Artigo 155, suspendendo de novo a autonomia da Catalunha: “O Governo não descarta nenhum cenário para agir na Catalunha, está tudo previsto e agirá, se for necessário, a partir de uma posição de firmeza e proporcionalidade”. Além disso, espetou uma farpa no independentismo catalão, dizendo que com a sentença se confirmava “o naufrágio de um processo político que fracassou na sua tentativa de lograr apoio interno e também internacional”.
Ainda mais assertivos foram os partidos à direita do PSOE. Tanto o Partido Popular (PP), de Pablo Casado, como o Ciudadanos, de Albert Rivera, apontam já numa direção apenas: Artigo 155. Tomando em conta a violência que assumiram os protestos na Catalunha (chegando a um nível sem precedentes no chamado “processo independentista”, onde até agora as manifestações foram predominantemente pacíficas), os dois principais partidos da direita espanhola exigem o fim de funções de Quim Torra de forma imediata.
O Vox, o partido de extrema-direita liderado por Santiago Abascal, quer ir para lá do Artigo 155 e aplicar o Estado de exceção para a Catalunha, o que permitiria limitar ou suspender até 30 dias direitos fundamentais como a inviolabilidade do domicílio ou a liberdade de imprensa.
Esta radicalização do discurso coincide não apenas com a sentença do julgamento dos independentistas catalães, mas também com a rampa para as eleições gerais espanholas de 10 de novembro — as quartas em apenas quatro anos e as segundas em pouco mais de seis meses.
“Vivemos um período muito obscuro no qual não dá para vislumbrar qualquer esperança, porque se mistura um período eleitoral onde todos estão a competir para ver quem é o mais duro”, diz o filósofo basco Daniel Innerarity ao Observador. Em suma, cada lado aprofunda a suas convicções e recusa sair de onde está.
Não são, por isso, tempos fáceis para os otimistas. Porém, eles existem. Fernando Vallespín, professor catedrático de ciência política na Universidade Autónoma de Madrid, publicou no El País uma crónica com o título “Depois do depois”.
Fernando Vallespín faz a pergunta e oferece uma resposta: “depois do depois”, terá de vir a política. “Depois da sentença, entraremos num novo depois. Terá chegado o momento de afastar os pomposos demagogos e deixar falar os estadistas frios e calculadores”, diz. “Mas, acima de tudo, terá de ser posta à prova a coragem que implica assumir uma derrota parcial recíproca para que saiamos todos a ganhar”.
Madrid: um grande consenso para falar com a Catalunha
Em entrevista por telefone ao Observador, Fernando Vallespín sublinha a tese de que para tudo ficar melhor, muito terá de mudar — implicando, de parte a parte, concessões.
“Já que não temos outro remédio além de ter todos um Estado comum, então temos de mudar a natureza do Estado”, diz. “Não se trata de uma questão de atribuições como a saúde ou a educação, porque as comunidades autónomas já têm várias. É antes uma questão de se sentirem parte de um Estado e da sua identidade. Porque, neste momento, o Estado espanhol é muito espanholista.”
Da parte dos principais partidos nacionais, Fernando Vallespín indica que teria de ser a direita a vergar a sua posição — em particular o PP, maior partido da oposição. “O PP terá de ser, a certa altura, realista e não ter uma posição circunscrita ao nacionalismo espanhol”, diz. “O PP é um partido mais pragmático do que aquilo que aparenta e o caso do aborto é um bom exemplo disso. Como partido conservador, custou-lhes muito deixar de fazer a defesa da penalização do aborto, mas agora já nem falam disso, já não é um problema. Afastaram-se de algumas questões do PP original. E isso também terá de acontecer com a Catalunha.”
Fernando Vallespín entende que “este problema só começará a ter solução quando algum líder da direita estiver disposto a fazer concessões”. “O problema é que a direita habituou o resto de Espanha a um discurso muito duro em relação à Catalunha e não tem demonstrado capacidade para entrar num discurso diferente, que tenda para uma federalização”, completa.
Um passo em relação a um sistema federal por parte da direita seria, sublinha Fernando Vallespín, uma condição sine qua non para o PSOE (partido mais aberto a uma solução federalizante) negociar com o beneplácito do PP. “Se à sua direita tiver alguém disposto a negociar com a Catalunha, ou pelo menos aberto a deixá-lo, o PSOE estará disposto a sentar-se com os catalães”, diz.
No entanto, se esse dia chegar, não chega apenas que o Estado central espanhol e as suas principais esferas de poder revejam os seus objetivos e intenções declaradas. Também o vizinho do lado terá de fazê-lo.
Catalunha: a realidade dos números para lá das ruas
Atrás das emoções, por trás do estrondo mediático e bem acima das fogueiras metafóricas e também literais que se ateiam nas principais cidades catalãs, os números que surgem da Catalunha sugerem uma moderação muitas vezes ignorada.
Da última vez que os catalães escolheram o seu governo regional — a 17 de dezembro de 2017, numas eleições que foram convocadas após a dissolução do governo regional por decisão do então Presidente de Governo Mariano Rajoy — os resultados foram mistos.
Por um lado, o Ciudadanos ficou em primeiro (25,4%) lugar e passou a ser o maior grupo parlamentar na região — além de que o bloco contra a independência da Catalunha, entre as suas várias matizes, soma 51% dos votos e 65 deputados. Por outro lado, as vicissitudes do sistema eleitoral catalão levaram a que o bloco dos independentistas ficasse com uma maioria absoluta de deputados (70 ao todo), apesar de todos somados terem apenas 47,6% dos votos.
Ou seja, no que era à altura o maior pico de tensão do processo independentista, com a aplicação do Artigo 155, os independentistas não conseguiram somar uma maioria de votos — mesmo que, devido ao método eleitoral, tenham saído por cima nas contas parlamentares.
Se esses números sugerem uma realidade dividida ao meio, os números mais recentes do Centro de Estudos de Opinião (CEO) da Generalitat apontam para uma realidade ainda mais fragmentada.
Numa sondagem publicada em julho, quando limitados a responder apenas “Sim” ou “Não” à pergunta “Quer que a Catalunha se torne um Estado independente?”, 44% responderam afirmativamente e 48,3% disseram preferir ficar em Espanha. Porém, os mesmos inquiridos demonstraram mais nuances quando lhes foi dada a oportunidade de escolher entre um leque mais alargado de possibilidades.
Quando se lhes pediu que completassem a frase “Penso que a Catalunha devia…”, as respostas foram:
- … ser uma região de Espanha (7,8%)
- … [continuar a ser] uma comunidade autónoma de Espanha (27%)
- … um Estado dentro de uma Espanha federal (24,5%)
- … um Estado independente (34,5%)
- … não sei (4,6%)
- … não responde (1,6%)
Ou seja, apesar de 44% dos catalães terem respondido quererem ser independentes num cenário a preto e branco, apenas 34,5% voltaram continuaram a fazê-lo quando lhes foi dado a perceber que também há tons de cinzento — como seria continuar como uma comunidade autónoma (27%) ou mudar o sistema territorial para o modelo federal (24,5%).
Esta é uma realidade que não escapa às contas dos principais partidos independentistas catalães, que atualmente repartem funções na Generalitat: o Juntos Pela Catalunha (JPC) e a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC). Porém, cada um difere quanto ao que deve ser feito a partir daqueles números.
Sentença da Catalunha: o trauma que dividiu o independentismo — e que o pode voltar a unir
Do lado do JPC, de Carles Puigdemont e Quim Torra, a convicção é a de aproveitar o momento catártico do pós-sentença para voltar a uma posição ativa — o que passa, como o presidente da Generalitat sublinhou, por convocar um novo referendo no espaço de um ano.
Porém, do lado da ERC, mesmo que a independência continue a ser um objetivo, ela não é assumida como uma meta ao virar da esquina. Tanto que, em resposta à promessa de um novo referendo independentista, o porta-voz da ERC no parlamento catalão, Sergi Sabrià, que foi tal como todos no seu partido apanhado de surpresa por aquele anúncio de Quim Torra, tentou pôr água na fervura: “Não é altura de colocar prazos”. E, além de pedir eleições regionais antecipadas, sublinhou que o caminho a seguir terá de ser o da negociação: “Foi através dos grandes consensos que o independentismo se tornou grande”.
Para Daniel Innerarity, o que há a fazer é parar o carro — e, idealmente, começar a pôr a marcha-atrás. O filósofo basco, cujo nome chegou a ser proposto pelo Podemos e aceite pelo PSOE para mediar o conflito entre a Generalitat e o Governo de Espanha, acrescenta ainda que esse papel cabe às lideranças partidárias — possivelmente, outras que não as atuais, cuja visão surge toldada pelo conflito em que cresceram.
“As lideranças que existem neste momento foram formadas em momentos de confrontação e o tipo de liderança que é necessário para este tipo de situações é completamente diferente”, diz. “É necessária uma liderança de compromisso, de libertação, uma liderança capaz de dizer às pessoas que as expectativas iniciais não serão cumpridas.”
No fundo, uma liderança que entenda o que está de errado noutro provérbio catalão, que diz que “fazem mais barulho duas pessoas que gritam do que cem que se calam”.