Fernando Medina apresentou esta sexta-feira as principais conclusões da auditoria à partilha de dados pessoais manifestantes que organizaram protestos na cidade de Lisboa. O autarca reconheceu que havia falhas, assumiu que o procedimento era errado e queixou-se de burocracias ultrapassadas.

Deixou, no entanto, muitas perguntas por responder. Desde logo, os 52 casos referidos são assumidamente (é a autarquia que o reconhece) apenas a ponta do icebergue. Depois, há uma parte considerável de comunicações que foram feitas durante o período de governação de António Costa e que ainda não foram passadas a pente fino. Porquê?

Além disso, continuam por saber concretamente que dados pessoais foram enviados, quando, de quem e para quem. Espera-se, é esse pelo menos o compromisso da Câmara Municipal de Lisboa, que esses detalhes venham a ser conhecidos em breve. Mas há ainda muitas dúvidas por esclarecer.

‘Só’ existem 52 casos de envio de dados pessoais para embaixadas?

Não e é a própria Câmara Municipal de Lisboa que o assume. Para o perceber é preciso olhar para o período temporal que a autarquia analisou. No final de 2011, esta competência foi transferida dos governos civis para as autarquias. Em 2018, entrou em vigor o novo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD).

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Atendendo a essa linha cronológica, a auditoria é dividida em dois momentos: de 2012 a 2018; e de 2018 até hoje. No conjunto destes oito anos, a autarquia reconhece que houve 180 casos em que a autarquia avisou as embaixadas de que iam ter protestos nas imediações.

É aqui que começam os problemas. Deste bolo total (180), a autarquia diz que 122 comunicações aconteceram no período de 2012 a 2018; e que 58 aconteceram no período depois da entrada em vigor do RGPD.

Sobre estas 122 comunicações, a câmara diz pouco ou quase nada. Em relação aos outros 58 casos, a autarquia reconhece que houve de facto 52 casos em que foram enviados dados pessoais dos promotores das manifestações — sendo que o critério utilizado foi o envio de, pelo menos, o nome de um dos organizadores da manifestação.

É isso que se lê no documento distribuído pela autarquia. “No total, foram remetidas 180 comunicações de realização de manifestação junto de embaixadas, 122 anteriores à entrada em vigor do RGPD e 58 após. Depois da entrada em vigor do RGPD, ou seja, para o período de maio de 2018 a maio de 2021, foram considerados como tendo sido enviados dados pessoais em 52 dos processos.”

Conclusão: fica por descortinar o que aconteceu na generalidade dos casos — as tais 122 comunicações que a autarquia fez às embaixadas.

Como é que a Câmara de Lisboa explica este critério?

Fernando Medina foi naturalmente confrontado com esta ausência de informação. O presidente da Câmara explicou que os dados entre 2012 e 2018 não foram ainda tratados, preferindo elogiar a celeridade com que a auditoria foi concluída.

Explicação para a demora: a grande maioria destes documentos não está informatizada e não houve tempo ainda para ler as resmas de papel.

O autarca prometeu fazer uma auditoria alargada que abranja também o período pré-RGPD. Mas não se comprometeu com prazos.

Este tipo de casos aconteceu durante a governação de Costa?

Sim. Apesar da ausência de informação detalhada, é assumido igualmente pela autarquia que este tipo de procedimentos acontecia igualmente durante o período de governação de António Costa na Câmara de Lisboa.

No documento divulgado pela autarquia, assume-se que no ano “2012 e seguintes” foi identificada “documentação em suporte papel” que “contém variados dados pessoais de promotores de manifestação”.

“No âmbito da presente auditoria foi ainda possível identificar alguma documentação em suporte papel respeitante a anos de 2012 e seguintes que contêm variados dados pessoais de promotores de manifestação, importando neste quadro assegurar o cumprimento de leis em matéria de arquivo e eliminação de dados pessoais e respetivos suportes uma vez já decorrido o prazo legal para a sua manutenção.”

Ora, António Costa foi presidente da Câmara Municipal entre 2007 e 2015, logo terá sido no seu turno que parte das 122 comunicações de manifestações foram feitas às embaixadas.

Por outras palavras: a informação existe, houve dados pessoais de manifestantes que foram enviados para embaixadas, mas os documentos não estão informatizados. Em que manifestações? Que dados foram enviados? Para quem? Ainda não é possível dizer.

Afinal, em que circunstâncias eram comunicadas as manifestações?

Continua a ser uma das grandes falhas nas explicações da autarquia. Em teoria, segundo a versão oficial dos factos, as embaixadas só eram avisadas quando as manifestações aconteciam junto dos respetivos edifícios, até para garantir que não existiam constrangimentos nas imediações.

Ora, a autarquia continua com dificuldades em justificar casos entretanto tornados públicos. Em 2019, a Câmara informou a embaixada de Israel de que o Comité de Solidariedade da Palestina ia organizar uma manifestação, apesar de esta acontecer a mais de dois quilómetros do edifício da embaixada. Porquê?

Na altura, o caso motivou uma queixa do Comité de Solidariedade da Palestina. Na resposta aos queixosos, a assessora de imprensa do município explicou que a Câmara reencaminhava as comunicações de manifestação às forças de segurança, ao Ministério da Administração Interna e também às embaixadas “sempre que um país [era] visado pelo tema”.

Afinal, para que serviam estas comunicações? Para avisar as embaixadas dos eventuais constrangimentos que poderiam existir nas imediações? Ou para dar nota de que o país estava a ser visado por um protesto? Mais uma vez, Fernando Medina voltou a não dar uma explicação cabal sobre esta prática.

O Governo civil de Lisboa enviava dados pessoais?

Tem sido uma das peças da narrativa de Fernando Medina, já usada também por António Costa e José Luís Carneiro, secretário-geral adjunto do PS.

Sinteticamente, o que os três dizem (e Medina repetiu-o esta sexta-feira) é que esta prática começou ainda com o Governo Civil e que o protocolo se manteve inalterado ao passar para a alçada da câmara.

Ou seja: até 2011, argumenta Medina, o Governo Civil já comunicava às embaixadas as manifestações que decorriam na cidade e, mais grave, já entregaria dados de promotores desses protestos a entidades estrangeiras.

Assim que percebeu que esta argumentação estava a ser ensaiada, António Galamba, o último Governador Civil de Lisboa, veio a público garantir que a única coisa que fazia era avisar as embaixadas que os protestos iam decorrer no ‘dia y, às x horas’.

Desta vez, no entanto, Medina apresentou documentação que prova que, de facto, o Governo Civil tinha como hábito comunicar às autoridades competentes (e às respetivas embaixadas) pelo menos o nome de um dos promotores da manifestação.

Aos jornalistas foram entregues dois documentos. O primeiro é referente a uma manifestação de 2002 junto à Embaixada da Guiné-Bissau; o segundo diz respeito a um protesto de 2011 (António Galamba era governador civil) contra Israel organizado junto da residência oficial do primeiro-ministro. Em ambos os casos, na comunicação que seguiu para as embaixadas da Guiné-Bissau e de Israel estava descrito o nome de pelo menos um dos promotores.

Então António Galamba mentiu?

É importante perceber que as declarações de António Galamba foram feitas à luz do caso concreto dos três ativistas anti-Putin, que viram os seus nomes, moradas, emails e contactos telefónicos entregues à embaixada russa e aos Negócios Estrangeiros Russos.

No documento entregue pela equipa de Medina aos jornalistas referente ao protesto de 2011 contra Israel, os promotores das manifestações são identificados por “Nome – Apelido e Outros”. Não constam as moradas, os emails ou os contactos telefónicos.

Não há nada no passado do Governo Civil que justifique qualquer ação atual. O Governo Civil indicava quem era o promotor, só com a denominação, e a informação do dia em que ia acontecer o evento e o período horário em que ele aconteceria, nada mais”, defendeu-se esta sexta-feira Galamba.

Ainda assim, no documento de 2011, consta de facto o nome de um dos promotores da manifestação, detalhe esse que foi enviado para a embaixada de Israel — um dado que António Galamba não tinha referido na primeira vez que falou sobre o caso.

Mais uma vez, no entanto, é importante apontar para a diferença entre os casos em comparação: na manifestação anti-Putin que despoletou toda a investigação, foram enviados os nomes, moradas, emails e contactos telefónicos de três ativistas para a embaixada russa e Ministério dos Negócios Estrangeiros; no que caso que Medina fez chegar aos jornalistas (protestos anti-Israel, em 2011) foram enviado o nome próprio e apelido de um dos promotores da manifestação.

Outro dado que importa referir: em momento algum na lei, mesmo na lei de 1974, existem referências à necessidade de as autarquias ou, antes delas, os Governos Civis, de informarem as embaixadas dos protestos que visavam os respetivos países. Continua, portanto, por esclarecer quem começou exatamente essa prática.

António Costa tentou alterar o procedimento?

Voltando à cronologia para contextualizar: no final de 2011, deu-se a passagem de competência para liderar com manifestações do Governo Civil para as autarquias, começaram os problemas. António Costa era presidente da Câmara de Lisboa.

Até que, em 2013, durante o Governo de Pedro Passos Coelho, houve a ameaça de uma manifestação na Ponte 25 de Abril, que ameaçou a circulação naquela estrutura. Não era exatamente claro quem é que podia proibir o protesto.

Costa, então na qualidade de autarca, decidiu escrever a Miguel Macedo, ministro da Administração Interno, alegando não ter “competência para impedir ou condicionar o exercício do direito constitucional de manifestação”.

Esta carta — que a equipa de Fernando Medina também fez chegar aos jornalistas — é, aos olhos do autarca e do atual primeiro-ministro, prova provada de que o processo de extinção dos Governos Civis foi mal conduzido e criou uma grande incerteza.

Mais importante: nessa carta para Miguel Macedo, António Costa informa que dali para a frente a autarquia de Lisboa limitar-se-ia a informar o Ministério da Administração Interna e a PSP das comunicações sobre manifestações que iam decorrer naquela cidade.

Também se lia que, por decisão de António Costa, os promotores da manifestação iam ser informados de que a comunicação ia ser remetida para o Ministério da Administração Interna e para a PSP. Como? Nos termos com decreto-lei de 1974 que regulava o direito à manifestação, em que uma das condições para se organizar uma manifestação é que o aviso deve ser “assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respetivas direções”.

Como é que os dados foram parar às embaixadas mesmo depois da decisão de Costa?

Ora, se o então presidente da Câmara Municipal de Lisboa deu ordens para que os serviços da autarquia se limitassem a fazer seguir para o Ministério da Administração Interna e para a PSP todos os avisos de manifestação que recebesse, como é que os dados dos promotores chegaram às embaixadas?

Fernando Medina reconheceu que o despacho de Costa foi alvo de “reiterados incumprimentos” ao longo dos anos, ou seja, ocorreu “uma prática relativamente homogénea, mesmo quando houve instrução do presidente da câmara para alteração desse procedimento”. Por outras palavras: as ordens de Costa foram ignoradas.

António Costa fez alguma coisa para mudar lei?

Apesar do conhecido (e registado) desagrado de António Costa com a forma como a extinção dos Governos Civis se traduziu num cenário de alguma imprevisibilidade, a verdade é que o socialista, já como primeiro-ministro, nunca revisitou o tema.

Além disso, e apesar de o caso relevado pelo Observador e pelo Expresso ter exposto as falhas dos serviços da Câmara de Lisboa, a verdade é que as queixas sobre este tipo de procedimentos remontam, pelo menos, a 2019, altura em que o Comité de Solidariedade da Palestina se queixou sobre as comunicações transmitidas à embaixada de Israel.

Na altura, o caso foi divulgado pela RTP e pelo jornal i, a Câmara respondeu dizendo que era um procedimento habitual e seguido noutras manifestações. Já o Governo manteve a lei tal como estava.