Foram oito horas de uma reunião que juntou mais de 400 militantes, vindos de várias partes do país. A ideia era debater o rumo do Bloco de Esquerda depois da hecatombe das últimas eleições, numa solução que a direção do partido encontrou para promover o debate interno sem antecipar a convenção nacional — onde se discutiria, naturalmente, a liderança.
Descontando alguns choques com os críticos à porta fechada, no final a direção de Catarina Martins saiu claramente (re)legitimada: a sua proposta de rumo, vertida num documento com as ideias para a reorientação política do Bloco, conseguiu uma maioria esmagadora (85,4% dos votos) em confronto com votações reduzidas nos documentos alternativos (12% na proposta do maior grupo de críticos, associados à tendência Convergência, e 2,5% num outro grupo mais reduzido, que apresentou a moção Q na última convenção).
O caminho da recuperação que o Bloco precisa de fazer — agora com uma presença reduzida a nível parlamentar e com a prioridade de reforçar o aparelho do partido pelo país fora — fica decidido: este será um Bloco de volta às “lutas”, ou causas, e em choque frontal com o PS absoluto, “mais papista do que o Papa de Bruxelas”. O tom está definido — espera-se um Bloco bem diferente do que se viu durante aquilo que agora descreve como o “breve parêntesis” da geringonça.
Política “kamikaze” e “caçada à direção”
Da parte da direção, esperava-se um encontro “tranquilo”. Por um motivo simples: apesar de os críticos internos terem atacado consistentemente a estratégia de campanha do Bloco nestas legislativas e terem, depois, apontado o dedo à direção — que responsabilizam pelos fracos resultados —, mesmo dentro desses grupos não parece haver consenso sobre os próximos passos a seguir na definição do futuro do Bloco.
Isso mesmo confirmou-se na reunião da Comissão Política do final de março, quando parte dos críticos levou a votos um documento assinado por mais de cem militantes em que se pedia a antecipação da convenção nacional do próximo ano. Para a cúpula do partido, a proposta não passava de uma forma de questionar a liderança de Catarina Martins, uma vez que a direção é decidida nas convenções nacionais. Mas nada feito: os críticos internos dividiram-se e, chegados à Comissão Política — onde têm uma representação minoritária — só conseguiram um voto a favor.
A direção estava assim confiante que este encontro mostraria essas fraturas e não seria dominado pelos ataques dos críticos.
À porta fechada, os relatos que chegaram ao Observador divergem — a direção fala numa reunião calma, os críticos em “muito confronto político” — mas confirmam que houve alguns ataques aos opositores internos, nomeadamente por exporem publicamente e junto da imprensa as suas queixas e não se cingirem à participação nos órgãos do partido.
Do lado da Convergência, nomeadamente na intervenção do ex-deputado Pedro Soares, ouviram-se ataques a uma “linha política kamikaze” da linha de Catarina Martins, por insistir em posições que não consegue explicar as suas posições ao eleitorado, como as últimas eleições pareceram indicar. A resposta da direção a isto terá passado por acusar os opositores de quererem “lançar uma caçada à direção” e substituir Catarina Martins — mas, no final, as discussões acabaram mesmo com a direção a levar a melhor.
Bloco de volta às causas e em oposição absoluta
Já ao final da tarde, Catarina Martins apareceu, numa intervenção aberta aos jornalistas — a convocatória enviada à imprensa era apenas para esse momento, embora no boletim emitido sobre os trabalhos se referisse que os trabalhos podiam ser acompanhados por representantes da comunicação social credenciados — e transmitiu as conclusões do encontro.
Desde logo, uma mudança ficou clara: a postura em relação ao PS, como de resto tem sido possível observar nos primeiros embates parlamentares com o novo Governo de Costa, é de oposição total. A geringonça já lá vai e até as referências a esse período são bem diferentes do que eram.
Pegando no contexto de inflação que tem valido ao Governo associações aos tempos de austeridade — por, na visão da oposição à esquerda e à direita, não combater o aumento dos preços com uma subida de salários nem medidas de atenuação suficientemente fortes — Catarina Martins disparou: “O PS fechou em definitivo o breve parêntesis aberto com a geringonça e abandona até os poucos e modestos objetivos de política social que se tinha colocado nesses anos”.
Mas as acusações ao PS são mais duras: o Governo “assumiu o argumentário da direita como guião para os anos da maioria absoluta”; trouxe o “discurso da prudência e da prioridade ao défice de volta em todo o estilo”; aproveita a inflação para “desfazer a tímida recuperação” conseguida nos anos da geringonça; é mais “papista do que o Papa de Bruxelas” e uma “maioria arrogante”; apesar de dar “respostas certeiras a André Ventura no Parlamento” acaba por “alimentar o ressentimento social que a extrema-direita explora”; e acabou por “fechar o breve parêntesis da geringonça” para voltar a ser “o PS de sempre”.
Conclusão: “Aqui estamos, pois, na oposição. Não poderia ser de outra forma”.
E que oposição será essa? De “construção”, com um modelo “construído na luta”, disse Catarina Martins. É um dos pontos cruciais da reorientação e recuperação política do Bloco: voltar à política de causas e lutar contra as “ameaças” à democracia, incluindo a extrema-direita e o ressentimento social que a alimenta e aumenta.
“Sabemos que as lutas são o ar que respiramos e é com elas que enfrentaremos não só o governo mas também a direita radicalizada, seja a do egoísmo liberal, seja a política do ódio – só uma oposição pela igualdade e pelos direitos as pode derrotar”, resumiu Catarina Martins.
Quanto a essas lutas que o Bloco “respira”, Catarina Martins priorizou o clima, área em que diz só se conhecer “a paralisia e a câmara lenta”, acusando os responsáveis políticos mundiais e nacionais de “mentirem” quando dizem que as mudanças são lentas e que é preciso dar “pequenos passos”. “O que fizermos na próxima década determinará as condições da nossa sobrevivência”, alertou.
Por outro lado, destaque para a luta feminista, outra das causas clássicas a que o partido quer voltar a dar força. “Não perdemos o horizonte: a igualdade. Combatemos todos os sectarismos, porque queremos mesmo avançar, mas não cedemos”, declarou.
A coordenadora bloquista referiu-se ainda, na sua intervenção final, à guerra na Ucrânia, avisando que só uma “solução negociada” pode evitar uma guerra mundial e nuclear e que “tão indigna é a bravata de Vladimir Putin” como é “a bravata de quem sugere que se ignore essa ameaça, prometendo que o prolongamento da guerra dará uma lição histórica ao agressor”.
Com consciência de que o tema pode colocar o partido em dificuldades — a direção já tinha transmitido que era preciso ter cuidado com o que entende ser uma “caça às bruxas” nas posições relativas à guerra — o Bloco coloca a sua posição nestes termos:
“Não confundimos o apoio ao povo ucraniano (incluindo em meios de auto-defesa, que aprovamos) com aquele militarismo de sofá que se ri, irresponsavelmente, dos riscos de escalada nuclear”.
Para a direção, “o ponto de partida para uma paz duradoura é a retirada russa e a neutralidade militar da Ucrânia”. À intervenção também assistiu Yulia Yurchenko, dirigente do partido de esquerda “Movimento Social Ucraniano”, convidada para a conferência bloquista.
Rumo de Catarina reconfirmado
A intervenção final de Catarina Martins veio, assim, sintetizar parte do que constava no documento que a linha oficial do partido levou a votos neste encontro. No seu texto, a parte maioritária da direção acusava o PS de provocar a crise política por querer interromper o caminho seguido nos anos da geringonça e admitia que tinha visto parte do eleitorado fugir para “engrossar a maioria absoluta”, mas assumia “os riscos eleitorais” que tinha corrido e já se colocava na “oposição”.
Essa oposição, prosseguia o documento, teria de ser feita contra o tal “ressentimento” que alimenta o Chega e apostando nas causas, incluindo nas que mais mobilizam mulheres e jovens — os dois setores em que o partido se sai melhor em termos eleitorais.
Os críticos da Convergência, o segundo documento mais votado, apontavam à direção a responsabilidade por uma“perda de influência política” registada nos últimos anos e provocada, na sua perspetiva, por uma estratégia demasiado focada nos acordos com o PS. Ou, como os críticos lhe chamam, no “geringoncismo”. E resultaria mesmo numa “diluição das bandeiras” que identificam o Bloco — uma crítica a que a direção parece querer responder com este rumo que assume agora.
Na Convergência, criticava-se também a atitude de “arrogância política inadmissível” da direção ao não retirar consequências políticas dos resultados das eleições de janeiro, assim como a própria organização da conferência nacional — que, por não ser uma convenção nacional, não poderia decidir o rumo do partido por “incompatibilidade estatutária e democrática”. Quanto a isso, nada feito: a convenção continua prevista para 2023.
O terceiro texto, apresentado por um grupo minoritário de críticos, também continha críticas ao tal “geringoncismo” e ao que considerava ser uma atitude “autojustificativa” da cúpula do partido: “A direção tem sempre razão e a culpa foi da situação difícil”, ironizavam estes críticos. Na sua proposta liam-se ideias para abrir o Bloco à sociedade e reforçar a democracia interna, tornando o BE cada vez mais um “partido-movimento”.