As críticas contundentes à Rússia são comuns, à NATO também; mas, na política nacional — já para não falar da vida interna do Bloco — multiplicam-se os pontos de divergência. São estas algumas das conclusões dos documentos internos sobre o futuro do partido que os dirigentes do Bloco de Esquerda estão a preparar, a que o Observador teve acesso, e que mostram as diferenças entre a linha maioritária do partido e o maior grupo de críticos.

Depois da derrota eleitoral pesada de 30 de janeiro, a ideia é preparar o futuro do Bloco, numa conferência nacional agendada para 30 de abril. No documentos inicial que apresentou na Comissão Política, a linha de Catarina Martins, cujo texto a Lusa já tinha noticiado, explica em detalhe os planos para o futuro, incluindo uma aposta nas lutas antigas — e identitárias — do Bloco, a oposição à maioria absoluta e a necessária redução de custos do partido.

Já os críticos, associados à tendência Convergência, nem sequer concordam com o modelo da própria conferência: o encontro pode, sim, existir, mas a orientação do Bloco precisa de ser discutida numa convenção — ou seja, num congresso do partido — que ainda assim não propuseram formalmente, até agora, antecipar.

Duas visões sobre a geringonça e a aposta nas lutas antigas

O que diz a linha maioritária

É nos capítulos dedicados à política nacional e ao rumo que o Bloco tem seguido que se encontram as maiores divergências entre os dois grupos. Na visão da linha de Catarina Martins, há espaço para um breve elogio à geringonça, que permitiu “recuperar condições de vida e de mobilização popular”, mas também uma forte culpabilização do PS – e de Marcelo Rebelo de Sousa – pelo “fim dessa fase”.

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“O governo do PS manteve durante toda a legislatura 2019-2022 uma estratégia de provocação e ensaio de crise política, visando impor restrição de despesa essencial e congelamento da legislação laboral. (…) O Presidente da República decidiu fazer a legislatura depender da aprovação do Orçamento para 2022, criando uma oportunidade extraordinária para a crise política que o PS desejava. Ao Bloco de Esquerda faltava mandato para sustentar um governo – através da aprovação dos seus Orçamentos do Estado – que representa a permanência da troika na lei do trabalho e o avanço, na prática, da privatização dos serviços de saúde”.

Com a governabilidade do país a tornar-se o “tema único” da campanha, o Bloco assume que viu “parte do seu eleitorado” – o partido perdeu 250 mil votos nestas eleições e o PS ganhou quase exatamente a soma dos votos da esquerda – “engrossar a maioria absoluta do PS”, fosse por “adesão” ao discurso dos socialistas ou por medo da maioria de direita. Depois, a explicação da opção pelo chumbo do Orçamento e a promessa de “oposição” à maioria absoluta:

“O Bloco assumiu os riscos eleitorais do chumbo do Orçamento e da bipolarização. Aceitar a chantagem do PS teria sido abdicar da presença de uma alternativa socialista em Portugal. A alternativa existe e, como afirmado na XII Convenção, o Bloco não desiste de um espaço político amplo à esquerda que se mobiliza pelo Pão e pelo Clima. Essa disputa faz-se hoje na oposição ao governo de maioria absoluta do PS”.

O documento explica ainda, mais à frente, como é que fará essa oposição a uma maioria que descreve como uma garantia dos grandes interesses económicos e que prevê que deixará intocada a estrutura das leis laborais e entregará funções do Estado social aos privados. Será preciso, defende o texto, virar o Bloco contra o “ressentimento e medo” que alimenta o Chega e o PS.

“O Bloco empenha-se em diálogos amplos para a mobilização social. Quebrar o ciclo de ressentimento e medo, que alimenta simultaneamente o crescimento do CH e o poder absoluto do PS, exige uma esquerda combativa e mobilizadora”.

Para isso, frisa o partido, convém ter em mente que a direita continua a ser minoritária no Parlamento e que o resultado combinado de Chega e Iniciativa Liberal fica abaixo do que o CDS tinha em 2011. O Bloco deve agora apostar nas suas causas, ou, como diz a linha maioritária, mostrar “clareza na luta das ideias e a disputa da juventude”. Outro sinal que é saudado pelo partido e que vai no caminho dessas causas é a “potência” da mobilização feminista do Dia da Mulher, até porque, recorda o documento, “o Bloco terá sido a terceira força política entre as eleitoras e manteve uma elevada expressão eleitoral entre os mais jovens”. E a aposta nas preocupações desses setores é todo um programa.

“A luta é contra o egoísmo político ultraliberal, destrutivo da democracia e do planeta, e pela afirmação do orgulho antifascista”.

O que dizem os críticos

As maiores divergências dos críticos aparecem aqui, no que diz respeito ao rumo que o Bloco tem seguido e às relações com o PS – não por acaso, o capítulo da Convergência dedicado ao assunto chama-se “um traço comum no ciclo de perda de influência política”. E a ideia é mesmo essa: o rumo que a maioria defende, no entender dos críticos – que só se constituíram como tal numa lista formal na Convenção do ano passado – levou à perda de influência, dada a “ansiedade” que o Bloco mostrou nos últimos anos em posicionar-se como parceiro do PS “ou até parceiro de um governo enquadrado pelos tratados da UE” (na fase em que o Bloco falava sem pudores da vontade de integrar um governo).

Para os críticos, a consequência é óbvia: “Perdas eleitorais sucessivas, diminuição da representatividade e menores condições para a luta política de oposição, de apoio aos movimentos e de combate à direita e à extrema-direita”.

Esta sucessão de derrotas torna evidente que não podem ser assacadas responsabilidades apenas e de forma superficial a cada uma das conjunturas. Há um traço comum: a linha política de permanente apelo a uma aliança com o PS com diluição das bandeiras que foram essenciais na afirmação do Bloco”.

Esse mesmo Bloco, prosseguem, até à geringonça tinha procurado “ligar-se a algumas das grandes lutas sociais”, mas foi progressivamente virando-se mais para a ação na frente parlamentar e para “intermináveis negociações” com o PS. Por isso, os eleitores de esquerda terão ficado com a perceção de que o Bloco faria parte de uma “coligação de governo, afastando-se das lutas dos trabalhadores e dos movimentos sociais”.

Deixava de “correr por fora” e concentrava-se política e organizativamente, com a desvalorização das organizações locais bloquistas, degradação da democracia interna, da participação e da pluralidade, em “correr por dentro”, concretizando a linha de que as mudanças só são alcançáveis nas instituições e na estrita submissão às suas regras. A ideia de que assim deslocaria o PS para a esquerda e alcançaria melhorias para a população criou uma espécie de cultura “geringoncista” que diluiu a radicalidade identitária que fez crescer o Bloco, retirando acutilância às bandeiras políticas do Bloco e impedindo-o de polarizar à esquerda”.

À crítica evidente que a maioria faz – o Bloco já se afastou do PS, votando contra os dois últimos Orçamentos do Estado – respondem que foi insuficiente face a uma linha política “incoerente e ziguezagueante”, que continuou na campanha de janeiro, quando Catarina Martins defendeu insistentemente a necessidade de um acordo com o PS. Para os críticos, não houve linhas vermelhas claras nem apoio orgânico dos movimentos sociais. E também não há explicações apenas externas, como as sondagens e a ameaça de um governo de direita, que valham para explicar a pesada derrota das últimas eleições.

Se o essencial dependesse de um apoio à proposta de OE, o PAN teria tido um bom resultado eleitoral. O problema não foi rejeitar um OE, mas enfatizar como grande objetivo eleitoral conseguir um acordo com o mesmo partido que apresentou a proposta de OE que o Bloco tinha acabado de recusar. Os sinais foram contraditórios e a campanha não conseguiu responder à perplexidade e incompreensão. A bipolarização (artificializada) pressionou o voto útil, à esquerda e à direita, mas só teve efeitos críticos à esquerda.”.

Com “todos os objetivos eleitorais” falhados (manter-se como terceira força política, impedir a maioria absoluta, ficar à frente do Chega e negociar com António Costa), os críticos concluem que é preciso fazer “um balanço sério” que não se resolve com “a demissão deste ou daquela dirigente”, até porque têm excluído que a demissão de Catarina Martins seja solução para a crise do partido. E atacam:

Não retirar consequências dos resultados eleitorais obtidos configura uma atitude de arrogância política inadmissível num partido de esquerda que pretende responder à vontade popular. É essencial retirar conclusões do ciclo de derrotas, ter uma atitude autocrítica que será popularmente valorizada e começar a construir um caminho de polarização à esquerda, porque quem não polariza perde sucessivamente”

A solução será, no entender deste grupo, fazer frente à maioria absoluta com uma oposição que seja “influente e mobilizadora”, não apenas “fiscalizadora”, com o objetivo de voltar às causas do partido: “Deslocar a sua ação política para fora, exprimir anseios e reivindicações dos movimentos sociais, organizar a intervenção no movimento laboral”.

A “estrutura menor” e os objetivos futuros

O que diz a linha maioritária

Quanto à vida interna do partido, forçosamente alterada graças ao rombo financeiro que levará ao fecho de sedes e despedimentos de funcionários, a linha da maioria traz aqui uma antevisão sobre o que será o futuro.  “O resultado eleitoral impõe uma redução significativa do financiamento da organização. Uma estrutura menor exigirá mais mais agilidade, economia de esforços e maior responsabilização militante”, reconhece a linha de Catarina Martins, defendendo que o Bloco deve “reforçar-se” com “novos mecanismos de autofinanciamento e campanhas para novos aderentes”.

Com a intenção de atingir uma “atividade partidária e social de alta intensidade” e preparar o próximo ciclo eleitoral (regionais da Madeira em 2023 e Açores em 2024, europeias no mesmo ano e autárquicas em 2025), as ideias para os eixos orientadores do Bloco nos próximos anos estão definidas:

“O Bloco de Esquerda afirma a alternativa à esquerda na oposição à maioria absoluta do PS e em torno de confrontos que são choques frontais com a direita radicalizada”.

Também é explicado mais ao pormenor como é que essa oposição se vai fazer: fica prevista uma “campanha unitária em defesa do SNS” que partirá do terreno, com comissões distritais de profissionais de saúde e utentes do SNS, e de uma revista online destinada a esses profissionais que promoverá encontros; o lançamento de um roteiro climático no final do semestre, com iniciativas de rua todos os fins de semana; foco nos direitos do trabalho (sobretudo combate ao outsourcing e defesa das 35 horas de trabalho); o regresso a eventos presenciais nacionais, como o acampamento de jovens e o fórum Socialismo 2022.

Mais uma vez é frisada a importância das mobilizações no 8 de março, a juntar-se a outras causas:

“O alargamento a todo o país das marchas do orgulho LGBTI+, a permanência do ativismo anti-racista e o largo consenso em torno da necessidade da despenalização da morte medicamente assistida criam condições para avanços da agenda pelos direitos”.

No plano do Trabalho, o Bloco precisará de criar “formas permanentes de articulação e presença em alguns setores” e “estimular o conflito social em torno dos direitos do trabalho, e dar centralidade ao acompanhamento desta área em todos os distritos”. A direção quer ainda realizar um encontro do interior, jornadas autárquicas e ciclos de formação política, com apresentações sobre a história do Bloco, o ecossocialismo, o feminismo, o liberalismo, a luta contra a extrema-direita e a União Europeia.

No fundo, além da “ação militante” – que deriva das dificuldades financeiras que o partido está a atravessar e por causa das quais vai ter de se virar mais para o trabalho voluntário – o Bloco quer regressar a algumas causas identitárias que definiram o partido desde o seu nascimento, depois dos anos de geringonça.

O que dizem os críticos

É, aliás, precisamente essa uma das grandes reivindicações dos críticos. Mas estes guardam também ataques para a forma como o partido se está a organizar por dentro e a tomar decisões sobre o futuro. Sem “desvalorizar” esta conferência nacional, o texto da Convergência entende que definir o rumo do partido sem passar por uma Convenção (equivalente, no Bloco, a um congresso) é uma “grave entorse à democracia interna”, que para estes militantes já é “limitada”.

“Torna-se insensato e temeroso considerar negativa a realização da maior reunião pública do Bloco, o órgão máximo da democracia bloquista. Esse novo rumo deve incluir o resgate da pluralidade, da promoção da cooperação entre sensibilidades, da descentralização e do inteiro respeito pelos órgãos estatutários, dos núcleos à comissão política, do trabalho de enraizamento na base e da democracia que torne a vida interna do Bloco mobilizadora e inspiradora, expurgada de intriga, ataques pessoais e exclusões”.

Pelo meio de todas estas críticas, de um grupo que tem considerado as decisões no Bloco demasiado centralizadas e hierarquizadas, os críticos alertam: “Os tempos que se seguem vão ser de luta não só contra a maioria PS e a guerra imperialista, mas, e por isso mesmo, pela recondução do Bloco à sua matriz fundadora”.

A condenação da Rússia e o “cadastro” da NATO

O que diz a linha maioritária

No plano internacional, a linha maioritária do Bloco de Esquerda e os críticos estão genericamente de acordo: ambos condenam sem reservas a invasão da Ucrânia pela Rússia – com a linha oficial a carregar mais nas críticas ao “ato de guerra criminoso” e “repugnante” do regime de Vladimir Putin – mas também guardar ataques fortes à NATO, de onde o Bloco tem defendido sempre que Portugal deve sair.

A invasão da Ucrânia pela Rússia é um ato de guerra criminoso, que tem como consequência a destruição de um país e a criação de uma crise humanitária que ultrapassa as fronteiras dos Estados em confronto. A declaração de Putin, negando o direito do povo da Ucrânia à autodeterminação, é repugnante e não tem qualquer justificação legítima ou atenuante.

Sobre a NATO, a linguagem não é mais branda: o seu “cadastro de agressões militares” deveria obrigar à sua substituição por “um mecanismo de Defesa articulado entre os países europeus, com respeito pela sua soberania”, uma vez que a sua expansão é um “fator de insegurança na Europa”, garante a linha de Catarina Martins. As críticas são ainda dirigidas às “pressões para um aumento da despesa armamentista” que Augusto Santos Silva defendia ainda esta terça-feira no Parlamento – para o Bloco, um sinal de uma “opção perversa” da Europa, que deve focar-se na mediação do conflito.

É urgente a realização de uma Conferência de paz, sob a égide das Nações Unidas, para cuja mediação a União Europeia deve estar disponível (…). A NATO, declarada em “morte cerebral” depois da derrota no Afeganistão, renasce com o anúncio de uma nova Guerra Fria, submetendo pelo caminho, sem matizes, a União Europeia. O cadastro de agressões militares que a NATO possui (…) obriga à sua substituição por um mecanismo de Defesa articulado entre os países europeus, com respeito pela sua soberania”.

A nível internacional, a análise não fica pela situação na Ucrânia. Apesar de reconhecer que a União Europeia prometeu, desta vez, uma resposta diferente à crise financeira, contrária à “política destrutiva da troika”, a linha maioritária do Bloco frisa que a solução está mesmo na “reestruturação da dívida dos países periféricos do euro”, sem a qual “o estrangulamento orçamental” e as assimetrias na UE continuarão. É essa agenda liberal, diz o Bloco, que alimenta o ressentimento dos povos e, por conseguinte, a extrema-direita.

O que dizem os críticos

Do lado do grupo maioritário de críticos internos no Bloco, a condenação da Rússia é clara – fala-se numa “brutal invasão da Ucrânia”, que é “inadmissível” – mas explicada com o “confronto entre o agressivo expansionismo russo e imperialismo norte-americano, secundado pela UE e pela NATO, ameaçador da segurança e dos povos”. A avaliação da guerra conduz a críticas mais fortes à UE e à NATO, como se pode ler neste excerto:

A guerra na Europa, tendo como palco o inadmissível ataque militar à Ucrânia, não é apenas um limitado conflito regional. Expressa o declínio da economia e do mundo unipolar dominado pelos EUA/NATO, que submeteu a Europa e militarizou os limites da fronteira com a Federação Russa, e da ascensão de potências hegemónicas a nível global em que, nesta fase, sobressaem os Estados da Rússia e da China”.

Com isto, também os críticos atacam uma “lógica armamentista” que voltou a ganhar força e que impõe o aumento das despesas militares “sobre quaisquer outras despesas públicas”. E dão o salto no raciocínio para defender mesmo que a tal “lógica” não evitou a guerra e, pelo contrário, “precipitou-a”.

A nível nacional, para além da disponibilização de meios para a região enquadrados na NATO e do envio direto de armas para a Ucrânia, o ministro da Defesa aproveitou a boleia da guerra para reafirmar o consenso entre os governos do PS e do PSD com o aumento do financiamento militar já no próximo Orçamento de Estado, que se fará inevitavelmente à custa do investimento no SNS, na habitação, na cultura ou nos direitos e rendimentos dos trabalhadores”.

A preocupação dos membros da Convergência é que seja agora necessária uma “forte intervenção pública para combater o empobrecimento” que não será, no seu entender, compatível com a política do PS e a sua bandeira das contas certas. Consequências para o Bloco? Essas encontram-se nos capítulos sobre política nacional, mas também aqui se conclui que é preciso que o partido aprenda com as lições da “falta de ligação aos movimentos e às lutas sociais” e de uma linha baseada na geringonça.