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A austeridade regressa disfarçada de “taxas e taxinhas”. A proposta de Orçamento do Estado para 2017 é mais credível que a de 2016, e está ajustada àqueles que são os condicionalismos financeiros da economia portuguesa e às regras europeias. É um Orçamento contraccionista e segue até aquilo que os economistas consideram como as melhores práticas: quando a economia está a aquecer o Estado deve arrefecê-la com a política orçamental. Só não é assim porque o crescimento da economia portuguesa é anémico, estando perigosamente perto da estagnação.
São as escolhas para reduzir o défice que podem gerar divisões. Os funcionários públicos e alguns pensionistas são os grandes ganhadores. Mas o facto de as pensões mínimas não terem o aumento extraordinário de 10 euros conjugado com a eliminação da CES para as pensões ditas “milionárias” vai traduzir-se num fosso maior entre reformas baixas e altas. O que, se não for corrigido com outras medidas sociais, contraria, neste segmento da população, o objectivo de promoção da igualdade.
Os grandes números dizem-nos que é um Orçamento que respeita as regras e aquela que deve ser a política ajustada a um país com uma dívida muito elevada. As escolhas das medidas já podem ser mais controversas. Olhemos pois para o Orçamento.
Previsões mais realistas
O Conselho de Finanças Públicas já o disse. “Ainda que com riscos descendentes assinaláveis, o cenário macroeconómico subjacente” à Proposta de Orçamento do Estado para 2017 “apresenta projecções estatisticamente plausíveis.” Está em linha com as que neste momento são as melhores previsões do enquadramento externo e da situação interna da economia portuguesa, ainda que sejam marginalmente mais optimistas que as mais recentes estimativas para a economia portuguesa (o FMI prevê 1,1%).
A produção de bens e serviços (PIB) deverá crescer 1,5% em 2017, a recuperar do que se projecta ser a evolução deste ano e marginalmente abaixo do registado em 2015. Esse crescimento é fundamentalmente explicado pela evolução da procura interna, com especial relevo para o investimento. O consumo privado, na perspectiva do Governo, verá crescer menos em 2017 do que em 2015. Em contrapartida o consumo público vai diminuir, contribuindo assim negativamente para o aumento do PIB.
A redução do consumo público (menos 1,2%) interrompe dois anos de crescimento e regista uma quebra semelhante à de 2014. “O consumo público deverá reduzir-se, resultado da continuação do processo de ajustamento da despesa pública”, afirma o Governo no relatório que acompanha a proposta de lei do Orçamento do Estado para 2017. A melhor explicação para esta evolução está relacionada com a quebra prevista para as despesas com o pessoal que o Governo prevê nas contas públicas. Um comportamento que justifica com a redução do número de funcionários públicos.
As previsões económicas da proposta de Orçamento revelam-se mais realistas do que as elaboradas para as contas públicas deste ano e mais próximas do que é considerado pela maioria dos economistas como o perfil mais adequado às características e condicionalismos da economia portuguesa.
A mais recente previsão é a do FMI e do Conselho das Finanças Públicas que apontam para um crescimento de 1,1% e 1,2% respectivamente. No exercício de previsões da Primavera, a Comissão Europeia previa um crescimento de 1,7%, quando já antecipava que a economia apenas iria crescer 1,5% este ano, como o Governo ainda apontava para 1,8%.
A prudência do Governo é ainda manifestada nas previsões para as exportações, com a aceleração das exportações a ser calculada em linha com a evolução da procura externa sem qualquer ganho nas quotas de mercado.
A aproximação do perfil de crescimento às condições da economia é justificada pela importância que o investimento assume na evolução da economia em detrimento do consumo privado assim como, e especialmente, pela redução do consumo público. A arquitectura ideal passava por um contributo mais significativo da componente externa, com maior crescimento das exportações, mas o Governo optou pela prudência.
As surpresas negativas para o crescimento podem chegar fundamentalmente do consumo público, do investimento e das exportações. No domínio dos gastos do Estado é preciso garantir a redução implícita no número de funcionários públicos. No investimento é preciso que exista um clima de confiança que não está, na sua totalidade, nas mãos do Governo.
Entre as “realidades” possíveis que estão fora do controlo do executivo estão os efeitos da saída do Reino Unido da União Europeia, a estabilidade financeira (tendo como referência que há problema na banca alemã e italiana), a evolução do preço do petróleo e uma evolução mais desfavorável do que o antecipado da procura externa relevante para as exportações portuguesas.
Em termos gerais pode dizer-se que estamos perante um enquadramento macroeconómico do Orçamento do Estado para 2017 mais realista do que aquele que foi realizado para 2016. E com as contas públicas a assumirem uma orientação também mais ajustada às restrições financeiras do país.
Mais austeridade orçamental
A política orçamental desenhada pelo Governo para 2017 marca o regresso inequívoco da austeridade, entendida como um conjunto de medidas na despesa e na receita pública que produzem um efeito contraccionista na economia. Cumprem-se as regras europeias e contribui-se para reduzir a dívida pública
É o regresso da austeridade orçamental após uma inequívoca interrupção no ano eleitoral de 2015. Esta política é identificada em praticamente todos os indicadores usados para avaliar se uma política orçamental é ou não expansionista. Se a economia não estivesse a crescer tão pouco podia até dizer-se que a política orçamental está desenhada como devia ser a regra geral: política restritiva contra-cíclica, o que acontece pela primeira vez desde 2014 (ver o gráfico que está no relatório do Orçamento do Estado).
O Governo faz o seu Orçamento com um défice público, na óptica das contas relevantes para Bruxelas, de 1,6% do PIB, em queda dos 2,4% agora projectados para 2016. O saldo das contas públicas sem os juros melhora, projectando-se um excedente de 2,8%.
As contas feitas tendo em conta o ajustamento estrutural – simplificadamente, levando em conta aquilo que se pode considerar como não dependente do ciclo económico – apontam para uma redução do défice em linha com as exigências de Bruxelas. E é o mais elevado desde 2015, o ano de eleições em que a política orçamental foi expansionista como se pode ver pelos números.
Se as contas feitas na óptica estrutural estiverem em linha com as exigências de Bruxelas, o Governo apresenta um Orçamento que dificilmente chumbará no exame da Comissão Europeia, no quadro das regras orçamentais subscritas pelos Estados-Membros.
O compromisso com as regras europeias é explicitado no próprio Orçamento. “Para cumprir a recomendação do Conselho Europeu para 2017, o ajustamento estrutural necessário deve ser de pelo menos 0,6 pontos percentuais do PIB. É firme compromisso do Governo cumprir essa recomendação”, lê-se no relatório que acompanha a proposta de lei do Orçamento para 2017.
Do ponto de vista estrutural – que são sempre cálculos que dependem da escolha dos modelos -, o contributo dado pela despesa e pela receita para a melhoria do défice é igual – a despesa estrutural diminui 0,3 pontos e a receita aumenta 0,3 pontos.
O “regresso da austeridade orçamental” traduz-se numa diminuição do consumo público que vai contribuir negativamente para o crescimento da economia. Ou seja, a economia cresceria mais se os gastos públicos aumentassem, teoricamente. E é teoricamente porque só faria crescer o PIB se essa subida do consumo público não tivesse qualquer outro efeito. E aquele que pode anular essa mecânica (mais consumo público sinónimo de mais crescimento) é a ausência de financiamento que inviabilizaria, na prática, essa subida dos gastos públicos.
Com a política orçamental que se vê nos grandes números, aquilo a que assistimos é basicamente ao regresso da estratégia de redução do défice público que só não é igual à dos anos da troika porque a economia está a crescer. Ou seja, é um política restritiva contra-cíclica (modera o crescimento) e não uma política restritiva pró-cíclica (agrava ainda a recessão).
Com o perfil da política orçamental adaptado aos condicionalismos financeiros do país – elevada dívida pública e riscos de aceso a financiamento – e a respeitar genericamente as regras orçamentais da União Europeia, a questão que se coloca agora é nas “escolhas”. Como é que esses objectivos estão a ser atingidos?
Muito mais receita e mais despesa
É no “como fazer a redução do défice público” que se concentram as divisões e controvérsias. A escolha do Governo foi reduzir o défice público com mais receita fiscal e outras receitas e à boleia do crescimento económico, o que lhe permite aumentar a despesa pública, mesmo reduzindo o número de funcionários, como promete.
O novo imposto sobre o património, a taxa sobre os refrigerantes e o perdão fiscal (que o Governo considera que não é) pagam a quase totalidade da eliminação gradual da sobretaxa e da redução do IVA na restauração. No seu conjunto as receitas de impostos, taxas e perdão fiscal fariam reduzir o défice público dos 2,4% previstos para este ano para 2,3% (0,1 pontos percentuais).
As despesas, em contrapartida, agravam o défice público em 0,2 pontos percentuais – ou seja, já comeram os 0,1 da receita e colocariam o défice acima do registado em 2015. Esta subida dos gastos públicos é fundamentalmente explicada pela reposição salarial e pela actualização das pensões, que não consegue ser anulada pelas poupanças que o Governo espera fazer com a redução do emprego público.
Onde vai então o Governo buscar as poupanças para reduzir o défice público? No que designa como ”outros efeitos” e no impacto favorável do crescimento da economia – com a dinâmica da economia há menos subsídios de desemprego a pagar e mais impostos e contribuições que se cobram.
Nos “outros” efeitos receitas, onde espera ir buscar 812 milhões de euros ou 0,4 pontos do PIB, estão receitas como os dividendos do Banco de Portugal, a recuperação da garantia do BPP e poupanças em juros e nas Parcerias Público-Privadas.
Esta escolha por mais receita para permitir ao mesmo tempo subor a despesa e reduzir o défice público é ainda visível nas contas das administrações públicas que são relevantes para Bruxelas, onde se verifica que a receita total sobe 4,1%, aumentando o seu peso no PIB (de 43,6% para 44,1%). A despesa total aumenta 2,1%, o que não aconteceu nem em 2015 nem em 2016.
Mas se a receita aumenta o seu peso como é que o Governo diz que a carga fiscal diminui? Porque, de facto, a receita que vem dos impostos regista um crescimento em linha com o aumento nominal do PIB mantendo ou até reduzindo ligeiramente o seu peso. Mesmo as contribuições, muito sensíveis à evolução da economia, têm praticamente o mesmo peso na economia. O segredo está nas vendas e outras receitas.
Verificam-se assim dois grandes movimentos do lado da receita: a substituição da tributação directa, como IRS e IRC, pela indirecta (como o IVA e impostos sectoriais) – movimento que o Governo assume como uma escolha sua – e o crescimento de “outras receitas” que permitem dizer que a carga fiscal está a diminuir.
No seu conjunto, a descida do défice público é totalmente explicada pela receita, seja ela fiscal ou não. A austeridade regressou na linha do que é exigido pelas condições da economia e pelas regras europeias, como demonstram os grandes números, mas é basicamente explicada pela actuação do Governo através da receita.
As escolhas do Governo
É preciso fazer escolhas. Esta foi uma das mensagens do ministro das Finanças na apresentação da proposta do Orçamento do Estado para 2017. E foram essas as escolhas que o Governo fez.
O efeito da economia, só por si e levando em conta as contas do Governo, faria descer o défice público em 0,5 pontos percentuais (dos 2,4% para os 1,9%). Os 0,3 pontos adicionais são determinados por escolhas que fizeram aumentar a despesa pública e tornaram necessário ir buscar mais receita.
Uma das escolhas vem deste ano e corresponde a acelerar a reposição dos salários da função pública e a repor as 35 horas. No seu conjunto vão custar 282 milhões de euros no próximo ano. Se somarmos a este valo a actualização das pensões que custam 187 milhões de euros temos os 0,2% do PIB que agravam a despesa pública.
A actualização das pensões integra o acordo do PS com o PCP e garante um aumento extraordinário de 10 euros, por pensionista, em pensões que vão dos 275 aos 633 euros. Mas esta subida será apenas concretizada em Agosto e deixa de fora, como se vê, as pensões abaixo de 275 euros por terem sido actualizadas durante o anterior Governo. De resto aplicam-se as regras já em Janeiro de actualização de acordo com a lei.
Ainda nas pensões, o Governo decidiu eliminar definitivamente a Contribuição Especial de Solidariedade (CES) ainda aplicada a pensões de valor superior a 4611,22 euros. Isto significa perder pouco menos de 20 milhões de euros. A última avaliação do Tribunal Constitucional a esta norma foi em Julho de 2014 quando numa votação em sete juízes votaram pela constitucionalidade e seis contra.
Uma das práticas que se reforça neste Governo é a aplicação gradual das medidas que envolvem mais despesa ou menos receita, como é o caso da actualização das pensões e da eliminação da sobretaxa de IRS. As pensões só terão o aumento extraordinário em Agosto e a sobretaxa ser eliminada trimestre a trimestre, só se podendo dizer que termina totalmente em Novembro de 2017.
Esta eliminação gradual da sobretaxa – que merece ainda o desacordo do Bloco de Esquerda – custa 200 milhões de euros. E tal como aconteceu com a reposição salarial da função pública, só no ano seguinte, neste caso em 2018, terá o efeito total.
Quando se compara os “custos” de algumas medidas verifica-se, por exemplo, que a actualização das pensões traduz-se praticamente no mesmo aumento de despesa que a redução do IVA na restauração em perda de receita. Ou seja, a controversa medida de diminuição do IVA da restauração, se não tivesse sido aplicada, “pagava” o aumento das pensões no sentido em que não se agrava o défice.
No seu conjunto, o novo imposto que incide sobre o património, a “taxa coca-cola” e o “perdão fiscal” são menos de metade do aumento da despesa gerado pelas escolhas do Governo que se traduziram em aumento da despesa. É, como já se viu, noutras receitas e no crescimento da economia que o Executivo espera garantir o pagamento das escolhas que fez.
Quem ganha, quem perde
As escolhas feitas pelo Governo, com o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda, elegem como ganhadores e por ordem decrescente, os funcionários públicos, desde o ano passado, os pensionistas com excepção dos que têm reformas mínimas, e todos trabalhadores por conta de outrem por via da eliminação gradual da sobretaxa.
As medidas anunciadas para as empresas, designadamente para a capitalização ou para o investimento não têm “custos” explicitados no relatório do Orçamento.
Os proprietários com imóveis que no seu conjunto têm um valor patrimonial superior a 600 mil euros são os visivelmente “perdedores” deste Orçamento, independentemente de se considerar ou não a medida justa. Além disso, a tributação dos refrigerantes e outras taxas menos visíveis mas que garantem um adicional visível de receita são outros dos vencidos. Há ainda as empresas o os proprietários de Alojamento Local que pagarão mais impostos.
Em termos gerais, este Orçamento mantém a marca que já vem da era da troika de introduzir “taxas e taxinhas”, no sentido de se criarem cada vez mais impostos dirigidos a sectores específicos. A taxa dos refrigerantes soma-se às contribuições para a energia e para a banca assim como o “imposto dos sacos plásticos” o último dos impostos sectoriais, introduzido no Governo de Pedro Passos Coelho.
Um imposto digno desse nome, o Adicional do IMI, marca a estreia de uma nova tributação o que não acontecia desde 2003, quando foi lançada a Contribuição Autárquica.
A fragmentação da tributação, sendo menos visível para os contribuintes, não deixa de transformar este Orçamento naquele que tem mais austeridade desde o de 2014.