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Há cerca de 21 anos, em agosto de 1997, uma miúda de 13 anos perguntou à mãe se podia ir a um festival de música. A mãe, como seria de esperar, disse que não. Dias depois, a miúda disse à mãe que ia passar uma semana de férias com o pai. Foi então que perguntou ao pai se podia ir a um festival de música. E o pai, mais distraído nestas coisas, disse que sim. E a miúda de 13 anos foi mais ou menos em segredo ver o concerto da sua banda preferida e o primeiro concerto a sério da sua vida (não contando para a história, intencionalmente, uma actuação de Cândida Branca Flor na feira da vila).
Nessa altura, os Blur eram cabeça de cartaz. Nessa altura, na primeira edição, o Festival Sudoeste ainda era um festival de música. Nessa altura, havia uma tal de “Song 2” a tocar nas rádios e ainda não era um som estafado ao ponto de se usar em anúncios de automóvel. Nessa altura, quando eu tinha 13 anos, os meus pais tinham os Beatles, e eu tinha os Beatles dos meus pais, mas o que eu tinha mesmo de meu era o Damon Albarn (que também tinha os Beatles) e os Blur (que nos tinham a todos pelo beiço). Nessa altura, Damon Albarn ainda não tinha 30 anos, mas hoje já tem cinquenta, acabados de fazer no dia 23 de março, e ainda bem que ainda o temos.
Quando se deu a ver ao mundo pela primeira vez, em 1991, ele era a própria juventude em toda a sua glória. Era a juventude dele, era a juventude de uma década, a juventude de uma banda e de um movimento musical, a nossa juventude toda. No vídeo de “There’s no Other Way”, o primeiro single dos Blur, aparece com um corte de tigela e a cara de enjoo juvenil que os hipsters acham que inventaram, ainda tão distante do sucesso que os Blur teriam nos álbuns seguintes (Leisure foi longe de consensual) – quanto mais do seu sucesso enquanto entidade criadora superior, com poderes divinatórios sobre o que a música há-de vir a ser uns meses depois de ele já a ter sido.
Isto significa que aquele Damon inicial, das sweatshirts de capuz e dos pólos Fred Perry (e que, nos primeiros tempos, estava tão falido que tinha de passar o dia com a banda a fazer tempo no estúdio só para ter acesso à comida grátis), estava longe deste Damon que é também Gorillaz, que é também música do Mali, que é compositor de óperas, que é melancolia a solo, que continua a ser o motor de projectos que se desdobram (como The Good, The Bad & The Queen ou Rocketjuice & The Moon). Podemos ter saudades dele, mas é ainda melhor termos chegado com ele até este meio século em que não daria para enumerar tudo aquilo que já fez.
O homem que quis salvar os anos 90
Ainda antes de ter os 13 anos da miúda que conseguiu ir ao festival de música, aos nove, Damon Albarn pediu aos pais para ir a Istambul numa viagem com uns amigos de família. Estavam em processo de mudança: iam sair de Leytonstone, no Este de Londres, para viver numa zona mais rural, e os passeios por mesquitas e bazares noutra parte do mundo salvaram-no do sentimento de deslocação.
Embora não fale muitas vezes da sua vida privada, contou uma vez ao “The Guardian” que se sentiu desenraizado a viver no campo (não é por acaso que existe “Country House”, uma música feita de ironia), que isso o levou a ler Herman Hesse e muitos livros sobre budismo, e que essa experiência foi um daqueles momentos fundadores. Curiosamente, também foi por se ter mudado para Colchester que conheceu o guitarrista Graham Coxon, outro momento fundador, já que sem esse encontro não teria existido Blur – e também sem o desencontro entre eles talvez não tivesse deixado de existir Blur.
O primeiro registo público que há de ambos a partilhar um palco é do início dos anos 80, na produção escolar de uma opereta chamada “Orpheus in the Underworld”, precisamente em Colchester, e em que a descrição do elenco inclui Albarn no papel de Júpiter e Coxon no papel de Styx, um dos criados de Plutão. Teriam 12 ou 13 anos na altura, e era o início da amizade de infância que esteve na origem da formação da banda por volta de 1988 – com mais dois amigos da altura, Alex James (baixista) e Dave Rowntree (baterista). Mesmo a tempo de atacar as promessas sonoras dos anos 90.
Sobre Blur haveria muito a dizer – que entre 93 e 95 fizeram a trilogia do nosso contentamento (Modern Life is Rubbish, Parklife, The Great Escape) e venderam milhões de cópias; que se zangaram, separaram, voltaram para alguns concertos em 2012 e de novo em 2015, com um álbum que planearam em Tóquio depois de terem ficado lá retidos uma semana quando iam actuar num festival (The Magic Whip, gravado 12 anos depois do último); que se reinventaram várias vezes, do rock inconsequente dos primeiros tempos ao experimentalismo mais sombrio dos últimos (13) –, mas talvez dê para resumir tudo numa ideia que algumas pessoas defendem (ou que aqui se defende): os Blur inventaram a Britpop.
A afirmação é polémica e o combate está lançado, como esteve ao longo dos anos 90 – é neste momento que surgem os fãs de Oasis a dizer que não. A guerra foi essa: era como escolher entre Pepsi ou Coca-Cola, entre Saramago ou Lobo Antunes, entre Beatles e Rolling Stones. De um lado do ringue da Britpop estavam os Blur, do outro estavam os Oasis, e não havia meio termo. Os líderes das respectivas bandas (Damon e Noel Gallagher) tomaram as dores do público e das tabelas de vendas e deram o corpo à luta. Só recentemente, tantos anos depois, enterraram o machado dos tempos em que Gallagher chegou a afirmar que queria que Damon “apanhasse Sida e morresse”. “Éramos novos e deixámo-nos levar. A competitividade foi ridícula durante algum tempo, mas eu no fundo sabia que nunca poderia bater o Noel numa guerra de palavras”, disse Damon ao “The Guardian”, na entrevista que aqui se cita. Hoje já tiram fotografias juntos, já trocam elogios, já planeiam colaborações.
Seja como for, Damon – que ouvia Beatles, Specials, Dylan, Clash, Smiths – e os Blur atiraram-se à Britpop com vontade de salvar os anos 90. Talvez se tenha perdido a oportunidade. “A canção pop de três minutos era uma forma tão boa de expressarmos o nosso descontentamento. Mas acho que se tem tornado mais burra com o tempo. Só nas margens é que se encontram coisas interessantes. No mainstream é como se tivesse tudo voltado a ser apenas showbusiness. É um cenário que existe se Dylan e os Beatles nunca tivessem acontecido… quanto mais os Specials.” Mas não se perdeu tudo.
Depois da tempestade vêm os Gorillaz
A era Britpop da vida de Damon foi a fase dos discos de platina e a base de tudo o que viria a seguir, mas teve também, antes do fim, muitos períodos negros. Não foi apenas o azedar da relação com o amigo de infância Graham Coxon, mas também o fim da relação conturbada com Justine Frischmann (da banda Elastica) e, como assumido mais recentemente, um período coincidente em que consumiu heroína.
Como sempre, foi resolvendo as questões em canções, que muitas vezes ao longo da sua obra são reflexos biográficos. Diz-se da natureza etérea de “Beetlebum” que é uma declaração sobre a dependência de heroína (o refrão final vai em fade enquanto Damon diz “He’s on, he’s on, he’s on it”), assim como “Caramel” (do álbum “13”) ou a mais recente “You and Me”, do único álbum a solo (“Everyday Robots”). Mas depois da tempestade vem a calma, ou, no caso presente, depois da tempestade vêm os Gorillaz.
Entre viajar para a Islândia e passar algum tempo na Jamaica, um dos passos no processo de recuperação de Damon Albarn depois do fim da relação e nos suspiros finais de Blur foi começar a dividir casa com Jamie Hewlett, artista gráfico que era também um bom amigo. E foi aí, enquanto estavam em casa a ver MTV, que aconteceu: “Foi uma coisa maravilhosa e espontânea. Tudo começou com duas pessoas sentadas no sofá a dizerem de repente – vamos fazer uma banda”. Um atirou-se aos desenhos de quatro personagens virtuais – 2-D, Murdoc, Noodle e Russel – e o outro atirou-se à música: ao sétimo dia (talvez tenha passado mais tempo…), o Rei criou os Gorillaz.
O primeiro single, “Clint Eastwood”, foi lançado em 2001 (embora o seu criador ache que os Gorillaz já estavam em forma de embrião na música “On You Own” de Blur), e aí estava o Damon Albarn do novo milénio: depois das experiências com rock, pop, electrónica, os Gorillaz eram isso tudo e ainda rap underground e hip hop, numa amplitude colaborativa que já vai em cinco discos (o mais recente, Humanz, lançado no ano passado) e dezenas de artistas. Já para não falar da experimentação visual e virtual, dos músicos-personagem, dos filmes e da história, lugares a que Albarn chegou também por ter lido Orwell, também por ter visto Kubrick (o vídeo “The Universal”, ainda na era Blur, é uma homenagem à adaptação que o realizador fez de “Laranja Mecânica”).
Depois de uma banda e de um movimento musical absolutamente britânicos, que, por isso mesmo, só saiu da Europa em alguns singles pontuais, nasceu a “banda americana” do homem que é um património do território de Sua Majestade (e até tem o título real de Officer of the Order of the British Empire).
Damon Albarn é esta espécie de Fernando Pessoa da música, de Usain Bolt (caso este seja tão bem sucedido no futebol como foi na corrida dos 100 metros), ou de Leonardo DaVinci contemporâneo, e é por isso que ainda se fala tanto dele aos 50 anos como se falava aos 20. Um grau de desdobramento e inquietação artística que talvez tenha herdado dos pais – a mãe Hazel era cenógrafa da encenadora britânica Joan Littlewood, muito dada a extravagâncias, e o pai Keith foi manager dos experimentais Soft Machine antes de se tornar professor de arte e de ter ido dirigir o departamento de arte e design do Colchester Institute –, e que não parou com o sucesso comercial dos Gorillaz.
Músico das nove às cinco, e só nos dias de semana
Mais uma vez, como nos tempos de Istambul, houve uma viagem que agitou a vida de Albarn. Em 1998, conheceu Suzi Winstanley (que é a sua actual mulher e mãe da sua filha Missy, um nome-homenagem a Missy Elliott), uma artista plástica cujo trabalho passa essencialmente por pintar animais selvagens no seu habitat natural. Incentivado por ela, que já tinha estado muitas vezes em África, Damon Albarn juntou-se a uma viagem da Oxfam até ao Mali no ano 2000. E nunca mais tirou da cabeça os sons que ouviu por lá.
“Não foi apenas uma viagem que me mudou. Foi, de certa forma, uma reabilitação em relação a tudo o que estava para trás. E foi o oposto daqueles períodos mais negros: foi uma experiência de libertação através da clareza.” O resultado mais directo deste novo fluxo de influências musicais africanas é o projecto Africa Express, e o disco Mali Music de 2002, mas também é a partir daqui que surge o nome de Tony Allen, lenda do afrobeat, no seu grupo de colaboradores mais permanentes (está presente na banda de um só disco The Good, The Bad and the Queen – que conta também com Paul Simonon dos Clash e Simon Tong dos Verve e se diz que pode voltar a gravar em breve – e no projecto Rocket Juice & The Moon, que tem uma música com o rapper ganês M.anifest), e também que a sua ópera “Dr. Dee” acabou por convocar Madou Diabate, músico do Mali conhecido por tocar kora.
“Temos de avançar. Há algo de terrível que acontece quando ficas sempre igual. Só estamos aqui por um breve período de tempo, e se não estás a absorver o máximo que podes estás só a desperdiçar tempo precioso.”
Este vício das colaborações, esta vontade de absorver o que os outros têm para dar, de aprender coisas novas, resultou até num universo tão distante do seu rock original como a ópera (além de “Dr. Dee”, já apresentou “Monkey: Journey to the West”, com influência da música oriental, e “Wonder.land”), e pode explicar que o primeiro disco a solo de Damon Albarn tenha chegado tão tarde, em 2014, e continue tão isolado na sua natureza individual.
Esse álbum, Everyday Robots, é ainda assim, ou talvez por isso, uma das partilhas mais íntimas deste Damon Albarn que envelhece e que fez agora 50 anos. Um “álbum sobre amor, perda, envelhecimento e aprender a viver com isso”, que abrandou outras referências musicais e foi ao encontro do folk inglês das origens, da tal melancolia que se mantém próxima de todos os seus projectos, mesmo quando são mais barulhentos.
Além de ter músicas inspiradas por algumas horas passadas no sofá a jogar numa consola com a filha adolescente (“Lonely, Press Play”, uma canção sobre as ligações digitais que se foram estabelecendo entre as pessoas), é um reflexo da vida de escritório, muito pouco rock’n’roll, que por estes dias gosta de levar no seu estúdio em Londres – a trabalhar com música só nos dias de semana, e das 9h às 17h, com acesso a uma mesa privada de ping pong para libertar energia.
Ele já tão distante da agitação alegre de “Girls and Boys”, “Charmless Man”, “Parklife”. E a miúda de 13 anos que foi ao Sudoeste já tão distante de quem agora escreve sobre o cinquentão que, felizmente, ainda não se pode definir. Ou como o próprio disse à “Vulture” em 2017: “Faço tantas coisas diferentes. É isso que sou. Sou todas essas coisas, não apenas os Gorillaz ou… e isso nem importa. Esqueçam as identidades. Vamos viver isto juntos.”