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P.J. Harvey, “The Wheel”.
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Cante connosco esta canção enquanto lê este texto, amigo leitor. Sugiro também a leitura do artigo anterior de minha autoria, também publicado neste Observador, chamado “O Gigante Invertebrado”, para entender alguns conceitos que serão desenvolvidos e complementados aqui.
O círculo fechado
O povo brasileiro preparava-se para dormir quando Fernando Collor de Mello subiu ao púlpito do Senado Federal e iniciou o seu discurso.
Eram 22h58 da noite e, apesar da maioria dos cidadãos ter continuado com o seu quotidiano, sem se importar com a longa sessão de admissão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff (prevista para durar 22 horas), uma outra parte estava à espera do discurso daquele que, em 1992, tinha sido o primeiro governante do país a sofrer a mesma situação de que, agora, ele estava sendo testemunha; e ninguém sabia se seria também o algoz daquela mulher que era integrante do mesmo grupo opositor que, anos atrás, conseguiu a vitória para tirá-lo do poder – o Partido dos Trabalhadores.
Naquele ano, todos reconheciam que ninguém se esqueceria da histeria coletiva ocorrida durante o impeachment de Collor – e das passeatas com os chamados “caras-pintadas” (por causa dos seus rostos cobertos de tinta negra), que aconteciam como formigueiros. Ninguém também se esqueceria do dia 29 de setembro de 1992, na votação da admissão do processo na Câmara dos Deputados, em que cada congressista fazia questão de mostrar que estava ali exclusivamente pelo bem do país. Entre os vários exemplos que ficaram gravados na retina da memória estavam o do deputado Roberto Campos, depois imortalizado como combatente do pensamento liberal, e que naquele dia foi à Câmara adoentado, arfante, agrilhoado a uma cadeira de rodas, e deu o seu voto triunfal; outro foi o de Renan Calheiros, então aliado de Collor quando este foi eleito à Presidência da República, e depois tornou-se um dos primeiros a passar para o lado da oposição, ao acusar o esquema de corrupção montado por Paulo César Farias, (então tesoureiro particular do Presidente), sendo em seguida retaliado em uma acusação judicial de calúnia, infâmia e difamação oriunda do governo.
Vinte e quatro anos depois, foi o mesmo Renan, agora presidente do Senado e também um dos investigados na Operação Lava Jato (com nove indiciamentos processuais), que anunciava o discurso de Fernando Collor. O ex-presidente da República e agora senador de Alagoas, antes conhecido pelo seu porte atlético, vigoroso e incansável, ainda mantinha uma certa altivez física do passado, mas tinha os cabelos grisalhos indicando a passagem do tempo para todos os envolvidos naquele cenário surreal. Empertigado, ficou atrás do púlpito, dirigiu-se respeitosamente ao presidente do Senado (que foi seu aliado, depois o traiu e, naquele circunstância histórica, era novamente seu parceiro político) e ao resto do plenário com as seguintes palavras de abertura:
Esse é o título de uma obra clássica de Rui Barbosa, de 1931.
Nela o autor afirma: ‘Todas as crises, portanto, que pelo Brasil estão passando, e que dia-a-dia sentimos crescer aceleradamente, a crise política, a crise econômica, a crise financeira, não vêm a ser mais do que sintomas, exteriorizações parciais, manifestações reveladoras de um estado mais profundo, uma suprema crise: a crise moral'”.
“’Ruínas de um Governo”
Esse é o título de uma obra clássica de Rui Barbosa, de 1931.
Nela o autor afirma: ‘Todas as crises, portanto, que pelo Brasil estão passando, e que dia-a-dia sentimos crescer aceleradamente, a crise política, a crise econômica, a crise financeira, não vêm a ser mais do que sintomas, exteriorizações parciais, manifestações reveladoras de um estado mais profundo, uma suprema crise: a crise moral’”.
Pouco importava naquele momento se Fernando Collor de Mello também estava envolvido na Lava Jato, com seis processos – aliás, como também estavam enredados 58% dos senadores ali à espreita para verem como terminaria aquele discurso. Pouco importava ali o uso equivocado das palavras de Rui Barbosa – um sujeito que adorava uma retórica empolada, republicano militante, mas que também foi um dos responsáveis pela desastrosa política econômica do “encilhamento”, algo muito semelhante na época da República Velha ao que ocorreu com o surto de prosperidade da Era Lula-Dilma e que agora também fazia o país pagar um altíssimo preço.
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Sobre as relações entre Rui Barbosa e o “encilhamento”, ver aqui. É de se ressaltar que Collor também cometeu um equívoco de datas. Segundo as informações do site da Casa Rui Barbosa, a obra Ruínas de um Governo foi editada em 1913, depois reeditada sob o nome de Trabalhos diversos, o que faz sentido, já que o próprio Rui faleceu no ano de 1923. Portanto, a crise política referida no decorrer do discurso não se refere à década de 1930, mas muito provavelmente aos anos finais do Império e o surgimento da República Velha.
O que estava a assistir ali era nada mais nada menos que a História, assim mesmo, com H maiúsculo. E, de algum modo, Collor sabia que aqueles vinte e quatro anos de distância prepararam-no para viver aquele instante distendido em quinze minutos não de fama, mas de imortalidade.
Ele continuou a dizer na sua fala:
“Em 1992, esse trecho foi utilizado por Barbosa Lima Sobrinho [jornalista e advogado] como introito à denúncia que apresentou contra mim. Ruínas de um Governo é a expressão de Rui Barbosa para invocar as crises que atingiram o Brasil nos anos 30.
Sr. Presidente, jamais o Brasil passou, como hoje, por uma confluência tão clara, tão entrelaçada e aguda de crises na política, na economia, na moralidade e na institucionalidade. Chegamos ao ápice de todas as crises. Chegamos às ruínas de um governo, às ruínas de um país. Esse é o motivo pelo qual aqui e agora discutimos possíveis crimes de responsabilidade da Presidente da República. Não discutimos crimes comuns. Isso é pacífico. A esses a Constituição reserva o juízo do Supremo Tribunal Federal. Ao Senado da República, cabem a pronúncia e o julgamento quanto aos crimes de responsabilidade. Essa é uma diferenciação importante. Aqui, julga-se responsabilidade.
Em 1992, em processo análogo, bastaram menos de quatro meses entre a apresentação da denúncia até a decisão de renunciar no dia do último julgamento. No atual processo, já se foram mais de oito meses. A depender do resultado de hoje, mais seis meses são previstos até o julgamento final. O rito é o mesmo, mas o ritmo e o rigor não. Basta lembrar: entre a chegada no Senado da autorização da Câmara até o meu afastamento provisório, transcorreram 48 horas. Hoje, estamos há 23 dias somente na fase inicial nesta Casa. O parecer da Comissão Especial, que hoje discutimos, possui 128 páginas. O mesmo parecer de 1992, elaborado a toque de caixa, continha meia página, com apenas dois parágrafos – isso mesmo, dois parágrafos. O tempo é outro, Sr. Presidente.
Em 1992, fui instado a renunciar na suposição de que as acusações contra mim fossem verdadeiras. Mesmo sem a garantia da ampla defesa pelo Congresso, em todas as fases, me utilizei de advogados particulares. Dois anos depois, fui absolvido de todas as acusações do Supremo Tribunal Federal. Portanto, dito pela mais alta Corte de Justiça do País, não houve crime. Mesmo assim, perdi meu mandato e não recebi qualquer tipo de reparação. Pelo contrário, depois da renúncia, recorri ao próprio Supremo Tribunal para ao menos reaver os direitos políticos que me cassaram. Mesmo se tratando de matéria eminentemente constitucional – direitos políticos –, alheia ao mérito do impeachment, o Supremo negou o Mandado de Segurança sob a alegação de que não cabia à Corte se pronunciar sobre decisão do Senado, ainda que tomada após minha renúncia”.
Collor fazia algo raríssimo a quem é do Senado Federal (e, por extensão, a todos os políticos brasileiros, quiçá do mundo): ele se colocava no centro dos acontecimentos, punha a sua honra pessoal em jogo e fazia ousados paralelos entre o que havia acontecido no seu processo de impeachment e o que estava a acontecer com Dilma Rousseff. Por meio de uma retórica subtil e sofisticada, ele não hesitava em afirmar que, ao contrário do que os livros de História afirmavam e o que era o oposto do que a militância petista gritava aos quatro cantos naqueles dias, Dilma Rousseff não estava a sofrer nenhum golpe político. Quem fora golpeado tinha sido ele. Era a heresia das heresias, mas, graças a um discurso cheio de referências cifradas, poucos perceberam a reviravolta no raciocínio que ia contra o que era propagado pela elite cultural do país desde 1992, e que foi transmitido aos nossos “órfãos da democracia” como o governo que enfim traria o fim da desigualdade social – simbolizado eternamente pelo projeto de poder do Partido dos Trabalhadores.
E assim, continuava a falar:
“Pois bem, Sr. Presidente, todas as tragédias que se podem imaginar reduzem-se a uma mesma e única tragédia, o transcorrer do tempo. É o mesmo tempo imperioso do mundo que nos traz à razão.
É nesta quadra, de adversidade para uns e tragédias para outros, que constatamos que o maior crime de responsabilidade está na irresponsabilidade pelo desleixo com a política; na irresponsabilidade pela deterioração econômica de um país; na irresponsabilidade pelos sucessivos e acachapantes déficits fiscais e orçamentários; na irresponsabilidade pelo aparelhamento desenfreado do Estado que o torna inchado, arrogante e ineficaz; na irresponsabilidade pela ação ou omissão perante obstruções da justiça.
É crime de responsabilidade, Sr. Presidente, a mera irresponsabilidade com o país, seja por incompetência, negligência ou má-fé.
Mas não foi por falta de aviso. Desde o início deste Governo, fui, ao longo dos anos, a diversos interlocutores da Presidente para mostrar os problemas que eu antevia e que desembocaram nesta crise sem precedentes. Falei, dentro da minha convicção, dos erros na economia, na excessiva intervenção estatal, nas imprudentes renúncias fiscais, falei da falta de diálogo com o Parlamento. Nos raros momentos com a Presidente, externei minhas preocupações, especialmente após a sua reeleição, quando sugeri a ela uma reconciliação de seu novo Governo com seus eleitores e com a classe política.
Sugeri que fosse à televisão pedir desculpas por tudo que se falou na campanha eleitoral, desmentido depois por seus próprios atos, nos primeiros meses do atual mandato.
Alertei-a sobre a possibilidade de sofrer impeachment, mas não me escutaram. Coloquei-me à disposição, ouvidos de mercador. Desconsideraram minhas ponderações, relegaram minha experiência. A autossuficiência pairava sobre a razão. […]”.
Talvez o leitor português não consiga imaginar como aquelas palavras continham uma ironia que era, ao mesmo tempo, trágica e agridoce. Collor sempre foi um político constantemente crucificado tanto pela população como pela imprensa, considerado por muitos como um parlamentar medíocre e com graves falhas de caráter – e, para piorar, desde Março de 2015 insistia que a ação de impeachment contra Dilma Rousseff não era válida. Mas, naqueles instantes, por incrível que pareça, fazia uma anatomia cruel, corajosa e verdadeira do que estava a acontecer no final melancólico da Nova República. Era o tempo falando por meio da sua boca, era o tempo a confirmar que a sua experiência da derrota poderia ter ajudado a presidente petista, mas ela não o ouviu – e aí estava o resultado: o colapso de um sistema de governo:
“Por tudo isso, o sistema está em ruínas. E ruínas, Sr. Presidente, demandam reconstrução. Reconstrução requer determinação que, por sua vez, exige conscientização e admissão da verdade.
Collor de Melo
Há 11 anos vimos o choro de Parlamentares decepcionados com as agruras e a verdade crua de um partido [aqui, Collor se refere ao escândalo do Mensalão, em 2005, que mostrou que o PT foi eleito e mantido às custas de um esquema de “caixa 2” comandado pelo então chefe da Casa Civil, José Dirceu, hoje preso pelo mesmo crime de formação de quadrilha na Operação Lava Jato]. Hoje, envoltos em tormentos muito piores, não vemos sequer uma lágrima, uma lágrima de constrangimento que seja. Ao contrário, o que se vê é a defesa rouca, cega, mouca e intransigente.
Entre retóricas e evidências; entre quimeras e realidades, entre golpe e a farsa do golpe, apesar de tudo e, por tudo isso, a população brasileira evoluiu na participação política. Mas admitamos, Sras e Srs. Senadores, regredimos no agir da política. Reafirmo: uma Nova Política precisa se estabelecer. Seja qual for o resultado de hoje, precisamos virar esta página, repensar e instituir a política pela qual a sociedade clama. O atual processo de impeachment nada mais é do que a tentativa de, a partir do passado, aplainar o presente para decantar o futuro. Um futuro em que precisaremos conciliar uma altiva e corajosa voz de comando do Executivo, com a moderadora e conciliadora voz do Legislativo”.
E Collor não pararia por aí. Faltava o golpe de misericórdia. Como se não fosse suficiente, ele resolveu terminar o seu discurso – que passava a ser interrompido pela campainha ruidosa do plenário que o avisou que o seu tempo estava prestes a acabar – citando ninguém menos que o mais recente livro do historiador Marco Antonio Villa, justamente dedicado ao seu governo, intitulado singelamente Collor Presidente.
Villa é reconhecido como um dos mais ferrenhos opositores do governo petista, sem hesitar de chamar a administração Lula-Dilma de “organização criminosa” (e de presente ganhou uma queixa-crime por parte do ex-presidente Lula devido a esta afirmação). Sua característica principal como historiador é a compilação obsessiva de datas, dias e horários, ao mesmo tempo em que há uma imparcialidade próxima da entomologia no momento da análise dos fatos (apesar de que, na hora de discorrer sobre conceitos especificamente filosóficos, chega a ser de um primarismo adolescente, ao classificar o PT como um “partido conservador” porque ele teria corrompido os ideais da esquerda ao abraçar o crime institucional).
Ao citá-lo, Collor reafirmava a auto-imagem que sua persona política tentava construir para a posteridade: a de que, apesar de tudo, e no fim e ao cabo, ele foi um verdadeiro democrata que, em nenhum momento, segundo o seu discurso, deixou de respeitar “as solicitações dos parlamentares; encaminhou, através do Banco Central e da Receita Federal, toda a documentação solicitada; cumpriu as determinações legais, não coagiu o Supremo Tribunal Federal e respeitou a Constituição, isso tudo em meio ao maior bombardeio midiático da nossa história e tendo de conviver com uma acelerada tramitação da denúncia – e depois do processo – que criou obstáculos à plena defesa. Aceitou o afastamento e se preparou para a defesa no Senado. Perdeu. Buscou reparações na Justiça, defendeu-se em vários processos e acabou absolvido em todos eles – os que envolviam atos quando do exercício da Presidência da República”
Na sua luta pela sobrevivência política, Collor tinha feito exatamente o oposto do que o PT fez naqueles últimos dias entre Abril e Maio de 2016 para garantir o seu posto de poder no Executivo, a qualquer custo – inclusive atrasar os trâmites do rito do processo tanto na Câmara dos Deputados como no Senado, acionando recursos jurídicos quase infinitos no Supremo Tribunal Federal ou então apelando a um parlamentar medíocre como o deputado Waldir Maranhão, então presidente interino da Câmara (posto no cargo depois que o polêmico Eduardo Cunha foi afastado por uma medida extraordinária do juiz do STF, Teori Zavascki) e que alegou que a decisão dos deputados não tinha mais validade porque vislumbrou vício no devido processo legal. A medida de Maranhão durara menos de vinte e quatro horas e depois soube-se que ele tinha feito aquilo a pedido do Advogado Geral da União, o petista histórico José Eduardo Cardoso, que insistia nessa tática para ver se conseguia “comprar algum tempo”. Foi a trapalhada da semana e, com isso, Maranhão passou a ter de administrar o caos da sua própria vida para evitar o retorno ao ostracismo em Brasília, de onde ele jamais deveria ter saído.
O discurso de Collor se aproximava do fim. A campainha soava pela segunda vez. Aparentemente, não havia mais o que dizer. Mas não, havia sim, e ele arrematou sua fala com esta despedida:
“Encerro, Sr. Presidente, dizendo: a História me reservou este momento. Devo vivê-lo no estrito cumprimento de um dever. Porém, inspiro-me no ensinamento de [Barão de] Holbach: ‘Tudo nos prova que a cada dia nossos costumes se abrandam, os espíritos se esclarecem e a razão conquista terreno’.
Muito obrigado, Sr. Presidente.”
Desceu do púlpito com a mesma frieza e com a mesma altivez que subiu. O plenário do Senado nem sequer conseguiu aplaudir: apenas ficou num silêncio puro, cristalino, como se o ruído do tempo tivesse sido dissipado, e o que sobrara era a mensagem inequívoca de que, finalmente, depois de vinte e quatro anos, um círculo se fechara para todo o Brasil, mas principalmente para Fernando Collor de Mello e o Partido dos Trabalhadores, o início e o fim da Nova República, o círculo fechado daquela prisão perpétua que cada brasileiro estava sentindo na pele e que fazia de tudo para se libertar.
Às 7h03 da manhã do dia 12 de maio de 2016, o Senado Federal decidira pela admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff, com 54 votos a favor e 11 contra. Entre os defensores da suspensão do mandato da presidente, lá estava a decisão de Collor. E assim foi que, após duas décadas, ele finalmente se transformara naquilo que Renan Calheiros também fora quando este o denunciou pelo esquema de corrupção montado por Paulo César Farias em 1992: um traidor do bem.
Agora era esperar a despedida (talvez provisória) de Dilma e a rápida posse (igualmente provisória) de Michel Temer, o vice-presidente que também é o comandante deste partido idiossincrático chamado PMDB – e suportar os longos 180 dias previstos para o julgamento da presidente que aconteceria no Senado, agora sob o comando do juiz do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski.
A gaiola dos intelectuais
Para quem sabe separar o ruído do tempo da informação verdadeira que fala sobre o que está realmente acontecendo no Brasil, a citação feita por Fernando Collor ao trabalho de Marco Antonio Villa em seu discurso no Senado não foi aleatória. Ela simboliza nada mais nada menos o lento, mas sólido, choque de visões de mundo que ocorre no país – um choque que intensifica cada vez mais a sensação de que a incerteza parece ser a única constante. E, para muitos, isso não é nada bom – especialmente para quem faz parte da imprensa, da elite intelectual e da casta política.
No livro A Era do Inconcebível, o cientista político americano Joshua Cooper Ramo afirma claramente que um país que tenha uma elite ineficiente ao entender a nova situação que surge diante dos olhos da sociedade, também se torna inviável para resolver qualquer crise que apareça – e pelo motivo mais simples: a sua incapacidade de entender que a mudança está no centro da vida de todos nós. Devido à busca pela permanência nas estruturas do poder e pela estabilidade que supostamente a política profissional deveria trazer às suas contas bancárias, esta mesma elite fica perplexa quando o improvável acontece – e passa a querer enganar a sociedade civil usando dos truques mais comuns da mídia, tal como a construção de narrativas paralelas e a disseminação da mentira pura e simples, tudo para continuar no topo da Segunda Realidade onde vivem. Até aí, podemos entender isso perfeitamente porque, afinal, é a regra do jogo. O problema é quando a própria imprensa e os meios culturais resolvem virar cúmplices desse mesmo sistema.
Senso Comum
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Desenvolvo este mesmo raciocínio no texto “A Coroa Vazia”, publicado no site Senso Incomum.
É só ligar a TV, abrir o jornal, ir à internet e olhar brevemente a timeline do Facebook ou do Twitter para comprovar o contágio geral desta moléstia de comportamento. Numa corrente de vícios que se retroalimenta constantemente, a elite brasileira, a que supostamente comanda o nosso país, dá ouvidos a uma outra elite, formada em sua maioria por intelectuais, jornalistas e artistas, que não consegue entender o ambiente de incerteza em que vivemos e, sem saber se isso é algo que pode ser mais uma vantagem do que um prejuízo, querem divulgar ao resto da população, tida como iletrada, que tal instabilidade seria negativa e que corromperia as “nossas instituições solidamente democráticas”.
Do outro lado, a imprensa resolve sufocar uma nova leva de um pensamento que vai contra a social-democracia obscurantista que domina as redações, as universidades e o mercado editorial. Se, da década de 1960 em diante, os brasileiros eram obrigados a aguentar sem reclamação o lançamento dos livros de Antonio Gramsci, Michel Foucault, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Susan Sontag, Marilena Chauí, José Arthue Giannotti, Renato Janine Ribeiro, Mario Sergio Cortella, Vladimir Safatle, e outros que fazem questão de serem os integrantes da grande nomenclatura esquerdista que impregnou uma visão de mundo falsamente progressista nas mentes dos estudantes, dos leitores e dos telespectadores – agora, desde a década de 1990, surgiu uma outra onda, a de um pensamento mais próximo de um conservadorismo britânico ou americano, incentivado pelas figuras do escritor Olavo de Carvalho, do jornalista Reinaldo Azevedo, dos colunistas da Folha de S. Paulo João Pereira Coutinho e Luiz Felipe Pondé, do já citado historiador Marco Antonio Villa, do polemista liberal Rodrigo Constantino, do cantor e compositor Lobão e, mais recentemente, do cientista político Bruno Garschagen.
Perto da casta progressista, os nomes acima são poucos, porém valentes. Infelizmente, mesmo tendo um inimigo em comum (o projeto totalitário do PT), às vezes um resolve brigar com o outro – como aconteceu recentemente entre Olavo de Carvalho e Reinaldo Azevedo –, alegando uma pureza nas intenções e nos diagnósticos que o futuro ainda mostrará quem tem ou não tem razão. Entretanto, o que surpreende os intelectuais de esquerda é o fato de que essas publicações estão a ter um excelente apelo ao público, com números de venda muito expressivos, especialmente em um país onde a leitura não é muito valorizada. Os dois fenômenos recentíssimos são os livros de Olavo de Carvalho, o volumoso. O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota, com 150 mil exemplares vendidos, e o de Bruno Garschagen, o elegante. Pare de acreditar no governo, que vendeu cerca de 30 mil exemplares – um feito para um livro que trata exclusivamente de um assunto árido: política.
Além disso, soma-se o estrondoso sucesso do blog de Reinaldo Azevedo, hospedado no site da Revista Veja, a maior revista semanal do Brasil (com 5 milhões de visitas por mês, muito mais que a circulação da publicação-chefe, que fica em torno de 1,5 milhão de exemplares impressos) e do site jornalístico O Antagonista, feito pelo escritor Diogo Mainardi e os jornalistas Mario Sabino e Claudio Dantas, com 4 milhões de visitas mensais, e que faz um impecável trabalho de limpar o ruído das informações do governo petista lançadas na grande imprensa.
Este ruído conta com a ajuda dos MAVs (Milícias para Ataques Virtuais), militantes pagos pelo PT para invadirem as redes sociais e plantarem informações falsas, junto com os chamados “blogs sujos”, que tem investimento estatal direto de empresas públicas como Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e até mesmo a já combalida Petrobrás na publicidade dos seus veículos; e depois há a colaboração sutil e mais sofisticada das “agências de comunicação corporativa”, como a FSB Comunicação ou a Companhia da Noticia (CDN), que influenciam a pauta das redações com seus relacionamentos de influência (leia-se: lobby) entre os jornalistas e os donos dos jornais.
Neste embate de fatos e opiniões, o brasileiro comum não sabe quem está a falar a verdade e quem está a contar a mentira. A guerra política que ocorre em Brasília se reflete em uma guerra das palavras que, no fim, querem conquistar o coração de cada um. A persuasão não tem nada de racional; é puramente emocional, e finalmente ocorre aquilo na cultura brasileira que é a base de todo o sistema pós-totalitário descrito por Václav Havel: tudo se inverte, e o que antes era direita agora é de esquerda, e vice-versa, e o que era progresso se torna reação, e o reacionário de hoje será o revolucionário de amanhã.
Neste campo de batalha, agoniza o jornalismo brasileiro e, por sua vez, qualquer amostra de sanidade na discussão política que envolva alguma razoabilidade.
Um dos principais responsáveis por esta situação é o próprio jornalista, acostumado a discutir de forma abstrata assuntos que não possuem a mínima importância e a ficar petrificado naquela “zona de conforto” apelidada de “O Efeito Rolodex” – em que o homem de imprensa decide que não adianta mais ousar em qualquer coisa que faça na grande mídia, e então apela para os contatos mais habituais e seguros, os que não darão nenhum problema, todos marcados em um Rolodex já empenado e embolorado. Consequentemente, esses contactos terão lugar certo em cada edição do seu programa ou na apuração da sua reportagem, talvez com uma alteração de nome aqui, outra acolá, mas o suficiente para que contamine o debate cultural-político de tal maneira que a doença passe a ser vista como uma normalidade e o espectador, anestesiado e confuso, acredite que aquilo que escuta dos “luminares” ali presentes seja percebido como a verdadeira visão sobre o estado de coisas do país.
O uso excessivo do Efeito Rolodex na apuração de informações descritas na imprensa brasileira tem uma agravante: temos a suspeita de que não estamos mais assistindo um programa de entrevistas, capaz de uma discussão frutífera, ou uma reportagem que nos diz algo concreto sobre um determinado facto – e sim uma ata de reunião feita por consultores corporativistas que, no melhor estilo “cada um por si, Deus por todos”, querem convencer o cidadão de que eles não têm uma “agenda oculta” quando isso, na verdade, está escarrado na nossa cara o tempo todo – em geral, para convencer os clientes da elite financeira de que são os sujeitos ideais a serem contratados, sem se importar se alguém assumirá o verdadeiro risco pelas ideias que proferem.
E não adianta nada o cidadão reclamar: se quiser alguma alteração na cabeça dos donos da imprensa, o Rolodex agirá novamente, com apenas uma rodada na agenda de contatos e mais uma mudança “cosmética” para disfarçar o fato de que a maioria da elite cultural está gravemente doente.
São tantos os exemplos que ocorrem no debate sobre os rumos do país que, se o leitor quiser fazer o teste para comprovar que este texto não está sendo malicioso, terá a impressão certeira de que entrou no meio de uma cena criada por Eça de Queirós em O Primo Basílio e está a conviver, sem pedir nada para isso acontecer, com um batalhão de Conselheiros Acácios – representações do famoso personagem que dizia o “óbvio ululante” com a linguagem mais empolada possível.
Nesta lista que parece estender-se ao infinito, temos desde William Waack e Renata Lo Prete, âncoras do programa de debates Painel, exibido pelo canal de assinatura a cabo GloboNews, passando por seus convidados frequentes, como Fernando Schüler, diretor do Insper (uma das faculdades mais prestigiadas do Brasil) e fundador do ciclo de eventos “Fronteiras do Pensamento”, que consegue a proeza de pasteurizar gigantes da literatura como Mario Vargas Llosa e John Gray cada vez que estes aterram por aqui. Apesar de se vender como um intelectual anti-petista, Schüler parece querer competir com o professor de Geopolítica e colunista da Folha de São Paulo, Demétrio Magnoli, o título de “desinformante do ano”, talvez da década, ao confundir os incautos com sua defesa da “democracia” e do “pluralismo” quando, na verdade, acentua (ou revela) ainda mais a pusilanimidade da elite intelectual em relação à permanência da Nova República no poder.
Há também um outro professor do Insper, o soi disant cientista político Carlos Melo, que poderia ser também apelidado de “O Senhor dos Anéis” pois, sempre no meio de qualquer programa de TV que esteja presente, diz pérolas de sabedoria como “se [a situação política] piorar, piorará para a gente; se melhorar, será melhor para a gente”, enquanto nos obriga a ouvir o choque dos três adornos de metal que cobrem seus dedos no exato momento em que ele inicia um raciocínio em que fica nítido que mal consegue articular um “urubu, meu louro”. Nesta mesma lista, não podíamos nos esquecer, é claro, de Salem Nasser, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, praticamente um garoto propaganda não oficial da causa palestina e que, protegido pela carapuça acadêmica, fala as maiores barbaridades contra Israel e sobre a situação do Oriente Médio. E, para terminar (se não achaste tudo isso suficiente), o que dizer do indecifrável Celso de Barros, sempre promovido por Renata Lo Prete toda vez que ela substitui William Waack no programa Painel, e que brinca de ser cientista político, pois acredita que, por ter escrito há priscas eras em um blog batizado justamente daquilo que fazia quando discorria sobre a situação política nacional – NPTO (Na Prática, a Teoria é Outra) –, pode fazer o mesmo quando brinca de Erasmo de Roterdã na televisão nacional?
Aparentemente, cada um desses “iluminados” (entre tantos outros) teria uma postura “crítica” a respeito do governo do Partido dos Trabalhadores, mas, na verdade, eles colaboram para uma visão extremamente limitada da política, semelhante a de um “cavalo de jockey” numa corrida alucinada, em que não conseguem perceber que o atual momento histórico é algo que só pode ser compreendido adequadamente se tiverem a certeza de que as suas narrativas não passam de castelos de areia diante da realidade imprevisível.
Esta limitação epistemológica é intensificada pela moléstia do Efeito Rolodex, que, em seu amálgama perfeito, passa a ser carinhosamente apelidada em outras bandas de “Como Discutir o Sexo dos Anjos”. Infelizmente, a imprensa inteira – exceto as honrosas exceções já mencionadas – está amarrada nesta moléstia e, para disfarçar que estão doentes, lançam então de um paradoxo inigualável: para cada participante do Painel, para cada escriba que cospe a sua opinião na página 3 da Folha de São Paulo ou na coluna do editorial do Estadão e de O Globo, estes sujeitos martelam sem parar que a resolução do problema do país passa pela renovação do debate público. Contudo, como fazer isto se estes Conselheiros Acácios não só insistem em receitar um remédio que, justamente por estar fora da validade, pode matar definitivamente o corpo doente do país, como também fazem de tudo para bloquear as vias que poderiam renovar a elite intelectual, permitindo que os novos talentos que surgiram contra a onda social-democracia obscurantista consigam se estabelecer (e, mais, sobreviverem financeiramente) nas redações, nas universidades e nas editoras – e assim frutificarem as suas vocações?
Na verdade, o que acontece é justamente o contrário. Para cada Conselheiro Acácio que usa a imprensa como sua tribuna, a solução para manter a “estabilidade democrática” seria a da recusa da incerteza, este monstro de sete cabeças, como algo benéfico e que passa a ser visto como um elemento negativo, talvez potencialmente destruidor. Portanto, o que eles querem é que cada um permaneça na sua gaiola – e não perturbe o status quo arduamente conquistado. Mas isto é mais uma desculpa para enganar os incautos: os Acácios que nos rodeiam apegam-se à retórica do vai contra o “óbvio uluante”, simplesmente para fugir do risco de colocar a sua honra pessoal em jogo e manter, a qualquer custo, a “coroa vazia” da grande mídia que os abriga.
O Monte de Areia
E aqui chegou a hora de parafrasear o personagem Marco António na peça Júlio César, de Shakespeare: lamento informar-lhes de que o artifício não dará certo, nobres cidadãos romanos, mesmo que vocês nos emprestem os vossos ouvidos para nos atender.
Em A Era do Inconcebível, Joshua Cooper Ramo insiste em refletir sobre a instabilidade que nos governa ao falar do Efeito Monte de Areia (The Sandpile Effect). Para ele, as coisas estão tão interligadas no nosso mundo caótico e imprevisível que um determinado sistema fechado, por acreditar ser autossuficiente, jamais saberá quando começa o seu colapso, que pode ser igual a um pequeno grão de areia e fazer toda a estrutura construída desabar em um piscar de olhos.
O jornalismo brasileiro está no ponto exato de se tornar mais uma vítima do Efeito do Monte de Areia, de tanto acreditar na eficácia do Efeito Rolodex. Pouco a pouco, de maneira imperceptível para quem faz parte do esquema, mas não quem para quem está fora dele, o jornalismo mostra sua completa irrelevância sobre as informações que divulga e sobre as tendências que deveria iniciar. O único problema é que, para perceber que o monte de areia começou a se desfazer, isso demora vários anos – e, nesse meio tempo, o cidadão é obrigado a respirar este miasma infecto de ruído e de discussões estéreis.
Entretanto, os números não mentem: em menos de doze meses, a circulação dos jornais impressos nos grandes centros urbanos caiu de forma assustadora, conforme aponta o quadro abaixo do IVC (Instituto Verificador de Circulação):
Com os dados acima, fica nítido que os “luminares” da imprensa ainda não perceberam é que, seja na Folha de São Paulo, no jornal O Globo, ou em O Estado de São Paulo, antes eram eles que ditavam a moda; agora são as redes sociais que determinam o que deve ser seguido – e quando falamos em “redes sociais”, entenda-se o público, composto tanto por seres letrados como também pelo sujeito iletrado que não sabe coordenar sujeito com predicado, mas ainda tem a sabedoria prática para distinguir o que é verdade e o que é pura besteira.
É claro que essa vertente não significa necessariamente uma boa ideia. No livro The Net Delusion, o bielorusso Evgeny Morozov mostra que a dependência de um regime democrático para a troca de fatos e informações nas redes sociais não é prova de que a liberdade prevalecerá, mas sim que pode acontecer justamente o seu contrário – ou seja, a criação de uma nova tirania, talvez a “tirania da maioria” profetizada por Alexis de Tocqueville no seu A Democracia na América. Provavelmente, num futuro próximo, a “coroa vazia” da grande mídia seja substituída pela “babel” do Facebook para manter o corpo doente de um sistema de governo que não tem mais representação popular, exceto pelos militantes virtuais do Partido dos Trabalhadores ou qualquer outra facção que tenha o estômago para pagar suas contas.
Enfim, junto com a transformação política que acontece com o processo de impeachment de Dilma Rousseff, o que também testemunhamos é um Efeito Monte de Areia sobreposto a outro, somada à artificialidade do “Como Discutir o Sexo dos Anjos”, cuja intenção primeira é querer impedir que percebam a novidade de um mundo que já atinge a todos nós, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, passando pela crise financeira de 2008 – e sem prazo para acabar, com a expansão islâmica na consciência ocidental, especificamente a europeia, acentuada pelo surgimento aterrorizante do Estado Islâmico.
O “circulo dos sábios” da imprensa e da política brasileira ainda não percebeu que as pessoas deste “novo mundo” pensam de maneira assimétrica, assistemática e pouco se importam se querem preservar aquilo que a tal “estabilidade democrática” sempre garantiu.
Joshua Cooper Ramo acentua bem esta transformação de paradigma mental ao afirmar que “infelizmente, seja liderando grandes corporações, ministérios em países estrangeiros ou bancos centrais, algumas das melhores mentes do nosso tempo ainda insistem em ver e pensar o mundo de um modo antiquado. Eles fazem repetidos erros de julgamento sobre o planeta. É difícil não culpá-los. Em sua maioria, eles cresceram numa época em que a ordem global podia ser entendida em termos simples, no qual apenas as nações realmente eram importantes, quando podia-se pensar que havia uma relação previsível entre o que você queria e o que tinha. Eles vieram de uma época como parte de um tradição que acreditava que todas as crises internacionais tinham inícios e, se fossem bem administradas, fins. Partilhavam uma visão de fundo no qual a expansão do capitalismo era algo bom e inevitável, em que a democracia e a tecnologia produziam um crescimento na estabilidade em geral. Tal visão representa um consenso das elites, a melhor sabedoria convencional dos nossos dias, e é encontrada em qualquer lugar, desde dos cômodos de Genebra aos corredores de Whitehall, passando pelas salas de guerra de Washington. Estas ideias falharam nos dois testes da boa ciência: elas sequer previram, nem explicaram o que acontecia no mundo. Mas muitos dos nossos líderes são incapazes de confrontar esse descolamento. Faltam-lhes a linguagem, a criatividade e o espírito revolucionário que o nosso momento exige. Em muitos casos, eles deixaram-se corromper pelo poder, pela posição social e pelo prestígio. Por outras palavras, deixamos o nosso futuro nas mãos de pessoas cuja única característica é que eles estão a ser surpreendidos pelo presente”.
As pessoas que se encontram atualmente no comando da política brasileira padecem do mesmo mal, seja sob as legendas do PT, do PMDB ou do PSDB. Eles não conseguem entender que, além da realidade ser impossível de ser administrada, surgiu um grupo de pessoas que, independentemente de serem petistas ou anti-petistas, da direita ou da esquerda, católicos ou muçulmanos, republicanos ou democratas, russos ou americanos, o que mais desejam é o mesmo que o grande pensador Alfred Pennyworth disse a seu mestre Bruce Wayne no filme “Batman – O Cavaleiro das Trevas” (2008), de Christopher Nolan: “Alguns homens só querem ver o mundo pegar fogo”.
A administração da catástrofe
O problema é que, nesse meio tempo, o Brasil já está em pleno incêndio – e a cada instante que passa, aumenta-se a sensação de que estamos a viver naquilo que os economistas chamam de “a década perdida”.
O patrimonialismo revolucionário do PT não viu nenhum limite ou sequer pensou em ter alguma prudência a respeito das contas públicas e do modo como gerenciar o Estado. A maior prova dessa atitude foi a hubris que o partido provocou em relação ao colapso económico que se avizinha. As previsões a respeito do futuro, em termos de números, não são muito animadoras para os especuladores e os investidores. É sempre bom repetir o diagnóstico preciso feito por Bruno Garschagen, no seu artigo publicado pelo Observador, no qual mostra que o projeto de igualdade social concebido pelo PT transformou-se na mais nova distopia do século XXI: “A crise política brasileira é o resultado daquele que talvez seja o mais desastroso governo da história do país. O país regista sete trimestres consecutivos de redução do PIB, a pior marca desde que o índice começou a ser calculado em 1947. De 2014 até o fim de 2016, a projeção é de queda acumulada de 8,7%. E a taxa de desemprego está em 8,5%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”. [Acessado no dia 20 de março de 2016. Quase dois meses depois deste artigo de Garschagen, o índice de desemprego já está em torno de 10%]
São projeções alarmantes. Todavia, o PT apenas se aproveitou de uma característica fundamental da estrutura do Estado brasileiro e a levou adiante, sempre com a desculpa de que queria acabar com a miséria, quando, na verdade, continuava sem pestanejar com a sua intenção de aparelhar a burocracia a seu favor. E esta característica é nada mais nada menos que a fragilidade inerente ao nosso mecanismo estatal – que foi sedimentado por anos e anos graças a uma mentalidade intervencionista.
Esta fragilidade afeta todos os setores da vida social, a princípio de maneira imperceptível, e depois prejudica o quotidiano da população de tal forma que é necessário um ato extremo disfarçado de “instituto jurídico” (como o impeachment ou a renúncia da pessoa que ocupa o cargo mais alto da nação) para que o quadro não piore e transforme-se enfim numa crise social de proporções extremas.
Usamos aqui o termo fragilidade no sentido proposto por Nassim Nicholas Taleb, em que temos uma situação sempre adversa a um estado de desordem. Ou seja, quando qualquer instituição frágil é incapaz de tirar vantagem de um ambiente de incerteza e confusão – e, por incerteza, queremos dizer que se trata de uma situação de extrema volatilidade, no qual qualquer previsão sobre os próximos acontecimentos se torna opaca e incapaz de ser classificada em uma categoria teórica. Dessa forma, a instituição fica exposta a eventos imprevisíveis e mostra-se incapaz de reinventar-se, dominada pelos caprichos do acaso, sobretudo em situações de alta volatilidade.
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Ver: Taleb, Nassim Nicholas. “Antifrágil: coisas que se beneficiam com o caos”. Rio de Janeiro: Best Business, 2014; ver também, do mesmo autor, “The calm before the storm”, publicado na revista Foreign Affairs em janeiro de 2015, disponível no seguinte link. Acessado no dia 4 de fevereiro de 2016. Desenvolvo este tema com mais cuidado, em relação ao Brasil atual, no paper “O Colapso Inevitável”, escrito em conjunto com o Prof. Dr. em Direito Constitucional André Luiz Costa Corrêa e publicado em sua primeira versão pública no dia 18 de março de 2016:
Os cinco critérios utilizados para caracterizar um país como “frágil” são os seguintes: (1) Um sistema de governo extremamente centralizado (decisões arbitrárias que surgem de cima para baixo, ou seja, do centro do poder instituído para a sociedade civil, sem autêntica representação); (2) Uma economia incapaz de sustentar a diversidade de opções no mercado (intervencionismo exagerado); (3) Dívida pública excessiva (alto custo com políticas públicas e programas sociais, sem evidente retorno para o cidadão); (4) Ausência de alternância política (a visão de que qualquer crítico contra o governo é visto como um “inimigo”, não como um “adversário”); e (5) Um registo histórico de não suportar (ou absorver apenas precariamente) choques súbitos em suas estruturas políticas (acentuado pela incapacidade de promover reformas estruturais profundas e não apenas reformas superficiais).
O Brasil atende exatamente a todos esses cinco pontos de fragilidade, por mais que a nossa elite intelectual, política e financeira o negue – especialmente a comitiva petista. Todos os itens acima resumem-se numa única atitude perigosa – encontrada com facilidade na maioria dos brasileiros que tentam comandar os labirintos do poder: o Estado não suporta nenhuma espécie de variação súbita, nenhuma amostra e stresse, nenhum prenúncio de caos. Poucos conseguiriam tirar vantagem de um evento aleatório, caindo na perigosa ilusão de que um país constrói-se com paz e estabilidade quando, na verdade, isso o torna cada vez mais propenso a traumas. Por isso, a resposta fundamental de qualquer político nesses momentos é saber como aceitar a incerteza.
Neste aspecto, são igualmente falhados e incompletos tanto os projetos de governo do PT no comando do Estado quanto os projetos da oposição que tem a pretensão de ocupá-lo, em especial o plano “Uma ponte para o futuro”, promovido pelo partido do presidente em exercício Michel Temer, o PMDB. Ambos rumam – de mãos dadas com a nossa economia – ao colapso inevitável justamente porque não querem perceber a fragilidade em que estão envolvidos.
Esta cegueira voluntária tem um nome: “arrogância epistêmica” – e é um filhote da estupidez criminosa sobre a qual falamos no ensaio “O Gigante Invertebrado” [Ver a parte intitulada “Anatomia da estupidez”]. Tanto os membros do patrimonialismo tecnocrático como do revolucionário não querem perceber que, ao analisar a situação atual do Estado brasileiro somente em termos técnicos ou ideológicos, não conseguem ter imaginação suficiente para vê-lo como um “sistema complexo”, repleto de conexões surpreendentes e que se mostra ao dia a dia da população como algo interdependente – a provar que não estamos mais naquele domínio da realidade que acreditamos ser “normal” e sim numa área cinzenta e perigosa que não hesitaríamos em chamar de “extraordinária”.
Estamos aqui nos domínios contrastantes (e paradoxalmente complementares) do Mediocristão e do Extremistão (termos que também tomamos emprestados da obra de Taleb). O primeiro é onde todos nós vivemos e onde podemos fazer nossas previsões, e pouco importa se errarmos, porque o erro terá consequências mínimas na sociedade (Por exemplo: um acidente de trânsito na rua da sua casa decerto não iniciará um colapso no tráfego de uma metrópole). Já o Extremistão é o domínio dos grandes sistemas complexos e interdependentes (como é o caso do Estado brasileiro), onde é impossível ter uma previsão exata, pois qualquer fato improvável terá um enorme impacto no tecido da sociedade (é só ver o que acontece com o uso excessivo de energia elétrica num dia de calor intenso no verão, que causará uma pane no sistema energético e certamente iniciará um blecaute numa cidade).
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Taleb, Nassim Nicholas. “The Black Swan: The impact of the highly improbable”. London: Penguin, 2007/2010, p. 213-27. Ver também o meu artigo, “A importância de ser um flaneur: uma introdução ao pensamento de Nassim Nicholas Taleb”. In: Mises: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia. São Paulo: IMB, 2016 (no prelo).
A falta de uma percepção aguçada sobre esses dois tipos de domínios, camuflada por disfarces retóricos de que o Brasil não é um país com uma administração extremamente centralizada, é nada mais nada menos que um novo fingimento. Juristas, economistas, cientistas políticos e jornalistas tentam convencer-se (e, por sua vez, convencer o restante da sociedade) que o Brasil é uma nação “levemente” centralizada em seu sistema de governo (ao comparar, por exemplo, a outros países dos BRICs, como a China e a Rússia, ou até mesmo da América Latina, como a Venezuela), mas, ainda assim é evidente que, no quotidiano da sociedade civil, as coisas não se passam dessa maneira.
Basta o leitor português perguntar a qualquer brasileiro: este se sente completamente encurralado quando tem de pagar uma única conta, principalmente a que envolva necessidades fundamentais para si mesmo e para sua família – como saúde, alimentação, habitação e educação. Além disso, existem os custos adicionais de lazer, transporte e segurança, que parecem existir, sobretudo, para acrescentar algum imposto na carga tributária (que chega a absurdos 38%). Tal “extorsão branca” impossibilita que o cidadão faça um investimento estável no aprimoramento de sua personalidade, em especial naquilo que uma sociedade saudável chama de “ócio”, mas que, na verdade, é o momento que o sujeito tem (ou se permite ter) para pensar sobre a própria existência.
Além disso, a prática política demonstra que as relações governamentais locais e regionais não conseguem afastar-se da dinâmica e da imposição de leis que são sempre decididas “de cima para baixo”. Seja porque o imbricado sistema de competências normativas na Constituição promulgada em 1988 faz com que se verifique uma constante interrelação entre os polos de poder, seja porque a dependência económica dos Estados e Municípios faz com que as ações políticas destes sejam direcionadas pelo Governo Federal, tal relação fica em evidência pela concentração das receitas tributárias na União brasileira, a reforçar assim a decisão centrífuga da política nacional.
Portanto, o argumento da “estabilidade” das instituições democráticas não convence quem vive no Brasil atual porque elas também estão contaminadas pela fragilidade do Estado, justamente por encontrarem-se no domínio do Extremistão, no qual a dependência de um setor está relacionada à outra.
Consequentemente, a incapacidade de manter uma segurança mínima quanto à sobrevivência da vida de um cidadão prova também que estamos em uma “crise de hierarquia” (crisis of Degree) — [Tomo emprestado este termo, com muita liberdade conceitual, de René Girard, em seu livro Shakespeare: Teatro da Inveja. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo: É Realizações, 2011, p. 309-20.], na qual a sociedade não consegue mais se espelhar na elite que deveria liderá-la.
O brasileiro sente que a sua honra pessoal está em jogo quando o Estado falido não admite para si mesmo o seu colapso e, por meio dos seus funcionários e acólitos, transfere o risco para a população com impostos, taxas e outros “tarifaços”; a economia desagrega-se a olhos vistos no bolso de qualquer trabalhador, independente de classe social (exceto, é claro, aqueles que estão perto do epicentro do poder); o governo está perdido e não sabe o que fazer para manter o mínimo de ordem institucional; e há um clima de insatisfação crescente que, se não for devidamente canalizada, pode descambar em violência, uma vez que sempre se buscam experiências catárticas, como foram as passeatas ou as manifestações de massa que ocorreram entre julho de 2013 a março de 2016.
O risco do bordado
A maior prova de que a cegueira da “arrogância epistémica” na elite política, junto com a incapacidade da imprensa de se livrar dos vícios do Efeito Rolodex, pode contribuir para o fim do Brasil tal como conhecemos está no modo como o “círculo dos sábios” decidiu analisar um político que, naquela mesma longa noite adentro em que Fernando Collor discursava no Senado Federal, era batizado às margens do rio Jordão, na cidade de Jerusalém – e que tem o nome deveras apropriado de Jair Messias Bolsonaro.
Ele parece ter saído das páginas dos romances do escritor carioca Lima Barreto, uma variação atualizada e mais bem sucedida do personagem-título do livro Triste Fim de Policarpo Quaresma (1915) — [Se o leitor quiser saber o que penso sobre o personagem de Policarpo Quaresma – e que vai contra todos os clichês de que ele seria uma espécie de “Dom Quixote” da literatura brasileira – sugiro que vá às páginas do meu livro A Poeira da Glória, em especial p. 131-133]. Assim como Quaresma, foi um militar com uma formação extremamente sofisticada para uma casta que é considerada como “primitiva” pelos jornalistas de plantão: estudou na Escola Preparatória de Cadetes do Exército e, em seguida, a Academia Militar das Agulhas Negras, em Resende (RJ). Tinha ímpetos de rebeldia e insubordinação; foi um dos soldados que defendia o aumento do soldo militar, chegando ao ponto de, supostamente, planejar um atentado a bomba nos banheiros da Vila Militar das Agulhas Negras. O caso foi ao Supremo Tribunal Militar, mas Bolsonaro foi absolvido e jamais foi provado o seu envolvimento no caso.
Sua orientação ideológica sempre foi uma retórica patriótica, com tintas sentimentais (chegando ao kitsch) de um nacionalismo que colocava o amor ao Brasil diante de tudo o que poderia acontecer de ruim ao governo. É assim que podemos explicar, por exemplo, o facto de que, já deputado federal pelo PPR (Partido Progressista Renovador, atual PP – Partido Progressista) com 112.000 votos no Rio de Janeiro, ele aliou-se às centrais sindicais que atuavam como linhas auxiliares do PT na época das privatizações feitas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, pedindo a reforma do Estado e até mesmo, em um caso extremo, o fuzilamento do próprio presidente.
Esses arroubos de fala são típicos da persona histriónica que Bolsonaro construiu meticulosamente com seu eleitorado – e foi o que possibilitou uma ascensão lenta e madura nos labirintos do poder em Brasília. Ele conquista seus eleitores justamente pelo fato de que não tem qualquer fingimento ou dissimulação. Diz o que pensa, custe o que custar. Seus filhos, Eduardo (deputado federal em São Paulo), Carlos (vereador no Rio de Janeiro) e Flávio (deputado estadual no Rio e provável candidato à prefeitura da capital fluminense) foram pelo mesmo caminho e construíram com o pai uma espécie de dinastia política que atormenta as cabeças dos parlamentares que se aliam às causas consideradas “politicamente corretas”. Bolsonaro não só adora uma polêmica, como também faz questão de criá-las: afirmou sem pudor que é contra a politização dos relacionamentos homossexuais, feita pelos grupos LBGT [Lésbicas, Gays e Transgêneros] (ao mesmo tempo em que era admirado por vários ativistas da causa, como o falecido estilista e deputado Clodovil); defendeu a tortura como algo válido na época da Ditadura Militar; e disse que a pena de morte ainda tinha suas vantagens.
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O ruído de informações sobre Jair Bolsonaro chega ao ponto da alucinação, de tal forma que ninguém mais sabe separar, na grande imprensa, o que é verdade e o que é mentira. Para filtrar tudo isso, sugiro a visita ao site.
Por tudo isso – e muito mais – Bolsonaro acentua sua semelhança com Policarpo Quaresma pelo modo sincero de exprimir suas crenças, às vezes nos momentos mais inapropriados. Foi o que aconteceu na sessão da Câmara dos Deputados no último dia 17 de maio, quando o plenário decidia voto a voto pela admissão do processo de impeachment de Dilma Rousseff, e então Jair Messias resolveu dizer o seguinte:
“Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo Exército de [Duque de] Caxias, pelas Forças Armadas, o meu voto é sim.”
Para os eleitores de Bolsonaro, aquilo foi um exemplo de coragem; já para a turma do “politicamente correto”, aquilo foi um insulto gravíssimo, o que fez o deputado Jean Willys (do PSOL – Partido Socialista Brasileiro), reconhecido ativista homossexual, cuspir na sua cara sem nenhuma cerimónia e sem nenhum pudor de estar em pleno Parlamento logo após proferir o seu voto. Uma atitude perfeitamente compreensível, em especial para quem se orgulha fazer parte da esquerda; afinal, a ideologia socialista inculcou na população de que a criação de guerrilhas terroristas era mais uma amostra de heroísmo e que, desde 1964, quando ocorreu o chamado Golpe Militar, todos viveram sob uma Idade das Trevas que somente a Nova República conseguiu dissipar, principalmente graças à égide do PT, composto por sujeitos íntegros, todos marcados pelas cicatrizes da tortura (e não foi à toa que Dilma Rousseff usou e abusou desse recurso retórico para chegar ao Palácio do Planalto). Ao homenagear o coronel Brilhante Ustra, como se não estivesse dando a mínima para quem fosse ficar irritado com aquilo, Bolsonaro desmontava a narrativa da esquerda brasileira em um piscar de olhos.
Sua fala naquele instante pode ser vista de duas maneiras: ou como uma oportunidade perdida; ou como a prova cabal de que ele é um Mestre da Persuasão, como diria Scott Adams. Se atentarmos para o fato de que, ao citar Ustra (um coronel reconhecido pela imprensa progressista por ser um “notório torturador” na época da Ditadura Militar), Bolsonaro conseguiu o que queria – nada mais nada menos que irritar Dilma Rousseff –, então temos de prestar atenção no que aconteceu e perceber que estamos diante de um fenômeno que está muito além dos nossos habituais conceitos de análise.
A verdade é que, por mais que Jair Bolsonaro agrida o suposto bom gosto e a hipocrisia travestida de bom mocismo dos intelectuais, dos políticos e dos jornalistas brasileiros, ele começa a representar um fato que ninguém quer ver: a sua autenticidade pode ser uma amostra da sua loucura, mas trata-se de uma loucura com método – e um método que está a dar resultados significativos, colocando-o no páreo para a corrida presidencial de 2018, com incríveis 8% de intenção de voto, segundo a última pesquisa DataFolha, atrás apenas dos eternos favoritos Lula, Aécio Neves e Marina Silva – o que significa que ele talvez tenha condições de ampliar essa vantagem.
Por isso o seu batismo às margens do rio Jordão, em Jerusalém, enquanto o país decidia no Senado a suspensão do mandato de Dilma Rousseff, tem um aspecto simbólico que não pode ser menosprezado. Segundo o advogado Renan Barbosa, este gesto representa não só o aumento considerável da religião evangélica no Poder Legislativo (o que, segundo a elite progressista, seria o mesmo que aceitar uma teocracia no comando do país), mas também a gradual entrada dos evangélicos (com quem Bolsonaro é também erroneamente identificado, apesar de se declarar como “católico”), em que “o batismo de Bolsonaro em Israel talvez não seja senão o ensaio da tomada do poder Executivo. Não é segredo que Bolsonaro aparece com alguma força em pesquisas. Apesar de ainda não ser viável como presidenciável em 2018, as mesmas pesquisas indicam que o recém-converso tem mais apoio nas camadas mais educadas e ricas da sociedade, que são, justamente, aquelas com mais meios de espalhar ideias e criar imaginário social. A depender do sucesso ou fracasso do governo Temer, dos rumos do processo de impeachment, e de quanto as elites tradicionais saberão repactuar o país, o ciclo de emergência do poder evangélico no Brasil pode completar-se bem cedo”.
Dessa maneira, a tese de que o surgimento de Bolsonaro se deve a um “vácuo político” de uma oposição que não conseguiu se contrapor ao projeto de poder do PT não passa de uma grande falácia. Bolsonaro não precisa de nenhum vácuo para se afirmar a um eleitorado cada vez mais crescente. Ele se tornou a única oposição que resta. O sucesso de suas declarações polémicas apenas mostra a sua representatividade num Brasil que, como o resto do mundo, decidiu pela demissão sumária do estabilishment político, cultural e intelectual, principalmente após a grande manifestação que ocorreu no dia 13 de março de 2016. [Vejam a cara de cada um dos jornalistas presentes neste programa de TV e saberão o que é o pavor provocado por Bolsonaro na cara de cada um.]
Eis então que surge o risco que nos orienta no confuso bordado da sociedade brasileira: um personagem político como Bolsonaro é o indício de que o cidadão não suporta mais quem não coloca a sua honra pessoal em jogo e quem se apresenta também como um burocrata do pensamento, bancado pelos políticos profissionais de Brasília. Pode se falar o que quiser dele, mas tudo leva a crer que Bolsonaro é alguém que tem a intrepidez de assumir o que diz, sem se importar com as consequências para o seu próprio mandato parlamentar. É isto o que cativa as pessoas que estão interessadas em sua eleição para um cargo no Executivo: não queremos mais estabilidade, isto o PT e o PSDB já nos deram e não adiantou nada, é o que parecem dizer. Queremos alguma mudança – mesmo que seja às custas de uma modernidade fajuta que nunca teve muita eficácia neste país.
Jair Bolsonaro é o símbolo de um momento histórico em que o brasileiro começa a aceitar o fato de que a natureza humana despreza tranquilidade e quer, antes de tudo, alguma espécie de risco para confrontar-se com a incerteza que se aproxima e que foi solidamente ocultada pela fragilidade do nosso “Estado Democrático de Direito”. Ele vai radicalmente contra tudo aquilo que Nassim Nicholas Taleb descreve como “uma dependência das narrativas, uma intelectualização das ações e dos empreendimentos. As empresas e os funcionários públicos – até mesmo os funcionários das grandes corporações [e aqui incluímos nessa categoria a política brasileira em sua maioria] – só podem fazer aquilo que parece encaixar-se em alguma narrativa, ao contrário de empresas que podem apenas perseguir os lucros, com ou sem uma bela história”.
Será que o fim da era petista também marcou o fim da política que dependia dessas narrativas para cristalizar um jornalismo pretensamente intelectualizado, mas que, na verdade, servia apenas a propósitos ideológicos, incapaz de ver o brasileiro como um ser autêntico em busca de uma solução para um problema moral? Responder positivamente a esta pergunta seria também incorrer ao erro de se apoiar a uma outra narrativa. E o ponto todo é justamente isto: depois da queda de Dilma Rousseff, nenhum ator político conseguirá mais controlar ou criar qualquer narrativa que se encaixe à sua frágil sensibilidade, simplesmente porque todos nós entramos, sem nenhum aviso, na era do Extremistão. E talvez o que mais perturba o “círculo dos sábios” nacional seja a evidência traumática de que Jair Bolsonaro é justamente o político que antecipa essa escalada imprevisível.
A escalada dos extremos
Obviamente, não é este o caso de Michel Temer, o presidente interino da República e também o líder do partido que se confunde com o próprio estabilishment brasileiro: o PMDB. Conhecido pela sua sobriedade, pela sua elegância e, sobretudo, pela sua habilidade de negociação que o assemelha a uma raposa, Temer é filho de libaneses que vieram ao Brasil e conseguiram vencer na vida (e consta que é primo de ninguém menos que Nassim Nicholas Taleb). É um homem que estudou o Direito a fundo, sendo reconhecido por alguns como um grande constitucionalista, mas é capaz de escrever poemas sofríveis, como os que foram coletados no volume “Anónima Intimidade” – e que tem os seguintes versos, talvez proféticos: “Ando à procura de mim./ Só encontro outros que, em mim,/ Ocuparam o meu lugar”.
Contudo, se parafrasearmos Auden, escrever mal não perdoa ninguém, principalmente se decides levar uma vida medíocre. Não parece ser este o caso de Temer. Apesar da sua discrição no modo como conduz a política, ainda assim ele sabe reconhecer quando o destino o chama para exercer uma missão – como aconteceu no início da sua trajetória, em 1984, em que o então governador de São Paulo, Franco Montoro, o nomeou para ser Secretário de Segurança do Estado. Ele conta que, na época da indicação, estava muito inseguro, e não sabia se isso seria bom para a sua carreira. “’Eu não conhecia nada, não tinha contatos’, contou. ‘O clima estava pesado, com crise entre as polícias civil e militar.’ Pensava em desistir quando, num fim de semana, viu na televisão uma entrevista de Gianfrancesco Guarnieri, secretário municipal de Cultura. O ator explicava como se adaptara ao terno e à gravata. ‘Guarnieri falou: ‘A vida é uma representação e você tem que representar o papel que a vida te entrega’’, contou Temer. ‘Aí eu pensei: a vida me deu o papel de secretário de Segurança. Se renunciar agora, o governo Montoro pode cair e eu me destruo.’”.
Talvez esta percepção de que a vida é uma performance que não está sob o seu controle seja o que pode tirar Michel Temer da enrascada em que se envolveu. Não só a situação econômica do país está um caos, como também a situação jurídica do seu ministério não está nada boa, uma vez que ele tem dois ministros – Henrique Alves (Turismo) e Romero Jucá (Desenvolvimento) – sob investigação na Operação Lava Jato. Para completar, é garantido que Temer sofrerá a pior das oposições que qualquer governante pode ter – a oposição petista que, mesmo enfraquecida porque foi alijada do poder oficial, ainda tem grande influência nas universidades, nos sindicatos, no mercado editorial e, em especial, na grande imprensa. A sua vida pessoal e pública já começou a ser escrutinada sem piedade: desde o seu casamento com a jovem e esplendorosa Marcela (com quem tem 42 anos de diferença), passando pela sua deficiência infantil com a matemática, até o factóide ridículo que tentaram armar ao rebaixar o seu ministério porque não admitia a “pluralidade” e evitou a nomeação de mulheres e negros. Se depender dos jornalistas míopes e ideológicos que abundam no Brasil, eles transformarão o seu governo num verdadeiro inferno.
Neste ponto, a astúcia política não basta. É muito provável que, infelizmente, Temer faça parte daquela mesma elite denunciada por Joshua Cooper Ramo, incapaz de sentir a mudança de mentalidade ocorrida nos últimos anos. Isso significa que, para a nossa infelicidade, ele é também incapaz de decidir no domínio do Extremistão – o que ficou comprovado ao nomear ninguém menos que Henrique Meirelles para o Ministério da Fazenda, o mesmo homem que, em 2008, sob o comando de Lula enquanto era presidente do Banco Central, ajudou a implementar a mesma diretriz desenvolvimentista económica que agora colocou o país de joelhos.
Este é o problema principal do governo Temer: o presidente interino tem de perceber que, se não agir rapidamente, como se estivesse em um mundo onde a escalada dos extremos é a única constante, em breve será mais uma vítima do ruído do tempo. Sem dúvida, trata-se de um alento quando ouvimos, como foi em seu primeiro pronunciamento, um discurso que articule a língua portuguesa corretamente (inclusive com o uso perfeito da mesóclise no meio de uma simples frase) e que promova a união do país como orientação a ser seguida – justamente o contrário do que fazia Dilma Rousseff, que estuprava a lógica e o português, além de incitar o ódio ideológico sem pestanejar. Mas seria isso o suficiente? Ter um ministério de políticos profissionais não significa mais ter a certeza da competência, mesmo em tempos difíceis; significa, antes de tudo, que Temer não consegue mais compreender que a sociedade brasileira se importa, a partir de agora, somente com aqueles que colocam a sua honra pessoal em jogo – e aí estão os exemplos de Sergio Moro ou Jair Bolsonaro, mesmo que sejam aparentemente díspares, para garantir essa afirmação.
Pois este é o truque para quem quer superar o ruído do tempo: não ter medo de dizer a verdade. Se o governo Temer fizer metade disso em relação ao governo Dilma, será excelente – e é muito provável que o presidente interino seja um governante mais do que razoável, se estivéssemos em circunstâncias normais. Ocorre que elas já atravessaram o limite da normalidade e tornaram-se extraordinárias – e estamos impotentes diante delas porque somos incapazes de perceber a transformação que a era petista fez na nossa vida interior. Como o historiador Elton Flaubert corretamente diagnosticou, “mais do que corromper a República e assaltar o Estado, o pior do PT foi a deformação das almas. A figura da presidência da República condensou a deformidade moral e cultural do país, deseducando a população, levando o nacionalismo ressentido, o arrivismo e o carreirismo à sua expressão máxima”.
E, de certa maneira, o mesmo historiador não deixa de dar o seguinte aviso ao próprio Michel Temer – que deveria entender, mais do que qualquer político, que o recado das ruas também foi dirigido a ele: “Nesse sentido, Sérgio Moro e a rebelião nas ruas não significa só o desmonte de uma quadrilha que assaltou a República, mas um sentimento de transgressão contra o regime da alma degradada. Cansados de tanta iniquidade e desonra, a maioria dos brasileiros (daquele Brasil profundo que escapa de nossas elites) não suportam mais o despeito moral, a consagração do jeitinho, a violência diária, a desordem, a crise de autoridade, a droga na porta da escola dos seus filhos e netos. Não suportam mais a mentira e a covardia do governo e de quem lhe dá suporte. […] O país que se reúne em torno de Moro, para celebrar suas ações, está dando um recado aos canalhas que nos governam: o país é nosso e não de vocês, não aguentamos mais tanta indignidade. Ainda é cedo para saber o que vai surgir, se algo pior ou melhor. Essa configuração de confronto está cada vez mais presente em todo o mundo com suas particularidades. No Brasil, adquiriu cores fortes. O resultado pode ser tanto nosso reconhecimento do passado, aproximação de nossas origens e conversão, quanto um breve respiro para ascensão de uma nova ordem ainda mais iníqua e cega à transcendência, ou ainda, o aprofundamento do autoritarismo petista”.
Infelizmente, Michel Temer também faz parte das ruínas deste governo – assim como todos nós. Por isso, no meio dessa demissão histórica do estabilishment brasileiro feita pela sociedade civil, ficaremos vigilantes para que a História deixe de nos reservar qualquer momento no futuro para dizermos enfim, aos nossos filhos e netos, que somos somente os sobreviventes deste trágico naufrágio.
Martim Vasques da Cunha é escritor, jornalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade de São Paulo, autor de “Crise e Utopia: O Dilema de Thomas More” (Vide Editorial, 2012) e “A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira” (Record, 2015).