Coube-lhe a senha quarenta e seis. A última de uma comissão de inquérito que passou os últimos quase três meses a ouvir os protagonistas de um caso que se desdobrou em vários. Sempre com uma sigla no centro: TAP. Fernando Medina, ministro das Finanças, foi o alvo das derradeiras perguntas dos deputados, que ainda têm de receber as respostas por escrito de personalidades omnipresentes na comissão, como David Neeleman, Antonoaldo Neves e Fernando Pinto.
Para Medina, sobravam algumas pontas soltas, como o processo de despedimento de Christine Ourmières-Widener, ex-CEO da TAP, e de Manuel Beja, o ex-chairman. Sobre Alexandra Reis alongou-se pouco, até porque não era ministro quando se deu a saída por acordo que custou 500 mil euros à TAP, várias demissões no Governo e uma comissão de inquérito. Mas foi Medina que levou a gestora para o Ministério das Finanças. “Teria sido uma excelente secretária de Estado do Tesouro”, lamentou o ministro. Que não quis dizer quem lhe recomendou a gestora para o cargo, apesar de muita insistência.
O relatório da IGF, “base única” do despedimento de Christine, e a queda de um mito
Uma das certezas que o ministro das Finanças levava ao entrar na audição era que seria confrontado com a decisão de despedir sem justa causa a CEO da TAP, na sequência do caso da indemnização de Alexandra Reis. A legalidade da decisão foi questionada nos dias seguintes ao seu anúncio, com a confusa posição do Governo sobre a existência de um parecer jurídico (que afinal era um “mito” e não existia) a sustentá-la a adensar tudo. Agora Medina garante que nunca houve mais nada que não as conclusões do relatório da IGF, que o ministro coloca num pedestal. E diz que a confusão sobre o parecer não foi das ministras Mariana Vieira da Silva e Ana Catarina Mendes, mas sim de “um lapso na comunicação feita, que tem responsabilidade no Ministério das Finanças.”
Os elogios ao trabalho da Inspeção-Geral foram muitos — com Medina a classificar mesmo de “insultuosas” sugestões de que poderia não ser independente — e o relatório foi colocado como “a base única”, “mais sólida do que qualquer parecer jurídico”, para a decisão de demitir Christine Ourmières-Widener.
Uma das questões que mais mostrou incomodar Medina na audição foi a sugestão de que o Governo só procurou apoio jurídico depois de ter tomado a decisão. O ministro não só garantiu articulação com o ministro das Infraestruturas nessa decisão — o que João Galamba também já tinha dito, quando se sentou naquela mesma cadeira –, como também disse que a ideia de que a solução jurídica só foi construída posteriormente “é falsa e totalmente absurda e difundida pelos que só querem atacar o Governo, fragilizando a posição do Estado tentando que isso cause algum embaraço e problemas políticos”. E para proteger a comunicação que fez no dia 6 de março, Medina detalhou que o que disse era apenas uma “intenção de demissão” e não a decisão em si, que necessitaria de passar por um processo de formalização — mesmo que todos os deputados da oposição tenham recordado o uso da palavra “decisão” na tal conferência de imprensa.
Quanto ao despedimento em si, Medina desafiou os deputados a dizerem se havia outra saída perante uma decisão classificada de ilegalidade “grave” pela IGF. Não condena os gestores que a cometeram, garantindo a sua convicção sobre a boa intenção: “Não sabiam que era ilegal”. No entanto, isso não apaga o que foi feito: a atribuição errada de uma indemnização a um antigo gestor. “Estamos a falar de bons gestores. Mas isso não apaga, nem pode apagar a ilegalidade grave que foi cometida”, referiu sobre este ponto.
O domingo “difícil” e o “único caminho” para a CEO
O despedimento da CEO foi comunicado a Christine, numa reunião formal, no domingo antes da conferência de imprensa no Ministério das Finanças. Mas Medina contou na comissão que lhe deu como alternativa que Christine pudesse ela mesma pôr o lugar à disposição, que ele aceitaria, alegando isso teria menos “danos reputacionais”. Quando questionado se teria dito à CEO que renunciando manteria o direito a bónus, Medina contestou: “As renúncias não dão direito a bónus”.
Nessa reunião, Medina garante que foi transmitido à então CEO “de forma precisa e rigorosa” que seria demitida por justa causa. Quando veio à comissão de inquérito, Christine mostrou um entendimento diferente. “Entendeu da forma que é hoje conhecida”, lembra Medina. Disse que não se demitia porque achava que não tinha feito nada de errado e não percebeu que seria demitida em direto na televisão no dia seguinte, naquele que classificou como o pior momento da sua vida.
A conversa foi “difícil para ambos”, recordou: “Obviamente preferia não ter de tomar a decisão que estava a tomar, mas em consciência não podia tomar outra”. Na altura, Medina conta que leu “de forma profunda” o relatório da IGF e “tornou-se claro” que tornava “absolutamente inequívoca” a decisão que teria de tomar sobre o despedimento da CEO de TAP.
Falou “prolongadamente sobre isso” com Galamba já nesse domingo e tiveram “exatamente a mesma leitura”, “convergindo em absoluto”, dado o “rigor” do relatório, que tinha tido “contraditório extenso” e que trazia “conclusões claras”: que o despedimento de Alexandra Reis foi ilegal, que devia pedir a devolução das verbas, que devia enviar ao Tribunal de Contas o processo para apuramento de responsabilidades financeiras e que o Ministério devia avaliar a relação e o procedimento dos administradores. Era, disse aos deputados, o “único caminho possível”. Mas atirou aos que agora contestam a decisão, mas que a tinham pedido mesmo antes de existir o relatório da IGF, atacando: “Vergonha. Aqui, alguns não têm muita”.
VdA esteve numa reunião, mas saiu cedo e não voltou
Uma das ideias que o ministro tentou rejeitar de forma mais veemente foi a de que o Governo teria procurado a justificação para a justa causa só depois do despedimento da CEO e do chairman. E que teria recorrido a um escritório de advogados, a Vieira de Almeida, para apoiar o Governo a dar “sequência às conclusões do parecer da IGF relativamente à CEO”. Isso mesmo foi dito ao Jornal Económico a 17 de março pelo sócio da Vieira de Almeida, Jorge Bleck.
Fernando Medina desmentiu. “O ministro das Finanças não recorreu a consulta de advogados externos”, garantiu. Explicou que houve uma reunião sobre a demissão, que juntou o Ministério das Finanças e a Parpública, e que esta se fez acompanhar pelos advogados que trabalharam no dossier de privatização da TAP”, a VdA. Mas, revelou, a certa altura os advogados acabaram por sair dessa reunião, até “relativamente cedo”, porque se entendeu que “não seria adequado” que a VdA participasse no processo. Este acabaria por decorrer sempre com o apoio de consultores internos e da JurisApp.
Fernando Medina promete remeter à comissão de inquérito a carta que Jorge Bleck remeteu à Parpública “a esclarecer tudo o que aconteceu para não se fazer uma apreciação relativamente ao processo feito com base em declarações laterais”.
A notícia do Jornal Económico acabaria por dar origem a um processo do ministro na Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) contra o jornal. “É a primeira vez que o faço ao longo de toda a minha vida pública. Não vejo que tenha de haver particular acrimónia quando se utilizam as entidades de regulação que são próprias para o efeito”, afirmou.
A queixa, explicou, “resulta de um facto, perante um pedido de correção de uma informação que era falsa e que não estava bem fundamentada”.
Demissão de Alexandra Reis inevitável dada a “incompreensão do país”
O ministro garantiu que só soube da indemnização a Alexandra Reis quando chegaram perguntas do Correio da Manhã, dias antes de o jornal publicar a notícia. E garante que a então secretária de Estado do Tesouro se colocou imediatamente à disposição para abandonar o cargo — não responde diretamente à pergunta que lhe foi colocada, sobre se em algum momento colocou a questão de devolução da indemnização. Concentrou-se antes no “comportamento de pôr o lugar à disposição”, só lhe pediria para sair depois disso.
Quanto à demissão, Medina também a coloca como inevitável, perante a perceção pública que o caso tinha levantado. “A autoridade do Ministério não estaria protegida com um secretário de Estado envolvido num debate e polémica relativa ao pagamento de uma indemnização”, justificou. E isto porque, para lá da questão de legalidade, havia uma “dimensão de natureza política, tendo-se “tornado clara a incompreensão do país relativamente ao pagamento de uma indemnização daquele montante.”
Quem recomendou Alexandra Reis? O ponto a que Medina não quis responder
Foi o ponto em que Fernando Medina mostrou mais resistências a responder. Fosse qual fosse a formulação usada pelos deputados para saber, afinal, quem recomendou que fosse buscar Alexandra Reis para lhe entregar a secretaria de Estado do Tesouro, o ministro das Finanças foi sempre contornando a questão. Preferiu focar-se em garantir que a escolha da ex-administradora da TAP, cujos “méritos” profissionais acredita que serão hoje mais conhecidos pelos portugueses depois de terem sido amplamente elogiados durante esta comissão, foi sua e só sua.
Ouviu várias pessoas, sim. Conhecia pouco Alexandra Reis: mas isso, para Medina, só prova que não se limita a escolher pessoas do seu círculo de amigos ou do seu partido. Mais do que isso recusou-se sempre a dizer: a escolha é sua e não vê a “relevância” de explicar o caso ao detalhe.
Muitas tentativas depois, a Iniciativa Liberal lá mudou de estratégia e Bernardo Blanco pôs a pergunta ao contrário, começando a questionar Medina sobre os conselhos de pessoas específicas: foi Pedro Nuno Santos que recomendou a gestora? Não, disse Medina, confirmando o que já tinha afirmado publicamente. E o secretário de Estado João Nuno Mendes? Também não. Ficou de fora uma confirmação: na ronda final foi ainda questionado sobre se um dos autores da sugestão teria sido o ex-secretário de Estado Miguel Cruz – e deixou essa pergunta por responder.
O ministro também foi vago a explicar como soube das divergências entre Alexandra Reis e a ex-presidente executiva da TAP, afirmando ter “informação difusa” sobre a mudança de sede e a renovação da frota automóvel mas que, no seu entender, não envolviam temas de dimensão estratégica para o futuro da TAP.
O ataque ao PSD, que queria “atingir” Medina
A irritação com o PSD já se arrastava há horas. Aliás, um dos momentos mais tensos de toda a audição terá sido mesmo aquele em que Fernando Medina ouviu o social-democrata Hugo Carneiro a referir a atribuir ao Governo “a utilização do SIS para intimidar Frederico Pinheiro” e disparou de imediato: “Rejeito em absoluto. O que disse é falso. É falso, é falso. Foi desmentido pelo primeiro-ministro pelos serviços de informação e todos os que tiveram participação nisso”. Perante o pedido de contenção do presidente da comissão, António Lacerda Sales, Medina continuaria: precisava de reagir “de forma veemente” ao que diz ser uma falsidade, e que toca no ponto que mais tem incomodado o Governo e motivado críticas da oposição (e até do Presidente da República) nas últimas semanas.
Já mesmo no remate da audição, o ministro decidiu fazer aquele que foi provavelmente o seu remoque mais político. O PSD serviu-lhe o pretexto, sobretudo depois de uma intervenção do deputado Paulo Rios de Oliveira que, como constataram outros deputados, parecia uma intervenção de balanço sobre toda a comissão, e em que disparou sobre a “pancadaria” nas Infraestruturas, a “ligeireza” das comunicações e decisões no seio do Governo ou o “choque” com a forma como a ex-CEO da TAP foi despedida.
Medina já se tinha irritado durante a audição com as críticas à demissão com base num relatório da Inspeção-Geral das Finanças, das mesmas pessoas e partidos, ia insinuando, que antes tinham reclamado punições rápidas para a administração da TAP. Na sua última intervenção, foi mais longe e passou definitivamente ao ataque, considerando que a declaração do PSD tornara “muito claro” o objetivo do partido: atingi-lo politicamente e, assim, atingir o Governo.
As Finanças são uma pasta nevrálgica para o Governo e a oposição, sobretudo à direita, tem colocado um alvo em Medina, principalmente desde que Pedro Nuno Santos saiu do Governo e que as dúvidas sobre o caso – as Finanças não sabiam da indemnização que Alexandra Reis tinha recebido? E não deviam ter sabido? – começaram a sobrar para os lados do Terreiro do Paço.
Ora desta vez Medina considerou que tudo isso está esclarecido – não sabia mas não tinha por que saber, uma vez que à data do processo de Alexandra Reis ainda não era ministro, e está confiante na base jurídica para a demissão da ex-CEO da TAP – e disparou de volta: o PSD tinha ““ideia peregrina de que atingindo o ministro das Finanças atingiriam o Governo” e focou-se em provocar a sua demissão. Agora, diz o ministro, a ideia dos sociais democratas será pedir consequências políticas caso o Estado perca em tribunal contra Christine Ourmières-Widener, desfecho que até acusou o PSD de “desejar”. Esse “serviço” do PSD acaba “hoje”, sentenciou Medina. Dificilmente a oposição concordará.
A relação super-adjetivada com Pedro Nuno
Foi questionado várias vezes e a cada nova pergunta que aparecia, Fernando Medina fazia questão de acrescentar adjetivos para descrever a sua relação com Pedro Nuno Santos. No dia anterior, sentado no mesmo lugar, o ex-ministro das Infraestruturas com quem a relação pareceu ficar tremida depois do caso Alexandra Reis – as Finanças puseram-se rapidamente fora da equação e das responsabilidades do caso – já tinha feito questão, sem ninguém lhe perguntar, que a relação com Medina está em bom estado, apesar das “leituras” que vai lendo.
Na vez de Medina, foram muitas as formas diferentes de descrever essa relação: primeiro, questionado sobre a articulação, no seu tempo – que fez questão de diferenciar do que acontecia no tempo do antecessor, João Leão – tanto com Pedro Nuno como com João Galamba era “absolutamente normal, eficaz e sem qualquer ponto de dificuldade entre os dois ministérios”. Mais à frente foi mais longe e não se coibiu de adjetivar longamente a relação com aquele que tantas vezes é classificado como uma espécie de possível-futuro rival na corrida a uma liderança do PS: a relação foi “normal”, de “cooperação”, “profundamente comprometida e convergente na defesa do interesse pública”. “Pessoalmente, uma relação bastante agradável e profícua”.
O ministro chegou a dizer que a comunicação social pode dizer e escrever “tudo o que entenda” sobre a sua relação com o ministério das Infraestruturas, mas ela era “estreita”: “Não tenho nenhuma palavra diferente de dizer que foi uma boa relação de trabalho franca, quotidiana, nunca isenta de tensões naturalmente — é impossível num Governo não haver tensões com o ministro das Finanças — e com total convergência com a defesa do interesse público”. Se houve divergências, Medina fez questão de as normalizar e não deixar qualquer ponta solta sobre o estado do relacionamento com Pedro Nuno.