“Valha-me Deus! Valha-me Deus! O que é que deu a esta gente para vir para aqui matar alguém? Ou deixar alguém aqui morto?” Maria Joana, passo lento pelo peso dos mais de 70 anos, vai andando pelos arbustos da berma de um caminho municipal, mãos na cintura, olhar confuso — ou de indignação. É a primeira vez que vai ao local onde, na sexta-feira, o dono do supermercado onde costuma fazer compras encontrou um corpo. Naquele dia, assim que ouviu uns rumores, foi a esse supermercado para perceber se eram verdadeiros. E eram. Luís, o dono, confirmou: “Disse-me que só não ficou assim ‘mais coiso’ porque o corpo tinha um saco na cabeça”.
A história depressa se espalhou por Alcórrego, uma freguesia com pouco mais de 400 habitantes no concelho de Avis. O supermercado passou a atrair não só clientes mas curiosos à procura de saber o que o dono tinha visto. No local onde foi encontrado, há agora apenas um monte de areia. Mas Maria Joana quase consegue ver naquela berma o cenário que Luís lhe descreveu: um corpo sem roupa, estendido e com um saco na cabeça. Ao lado, um tapete preto caído num dos arbustos. O corpo, sabe-se agora, é o de Luís Grilo, o triatleta que desapareceu em Vila Franca de Xira, há mais de um mês. O saco e o tapete estão a ser analisados pelas autoridades e podem ditar o rumo da investigação.
“Não sei o que me deu. Calhou lá passar”
24 de agosto, não passava muito das 8h30 da manhã. Luís Martins, habitante de Alcórrego, não sabe bem o que lhe deu “para ir para aquele lado” e entrar naquela estrada de terra batida, saída do caminho municipal 1070, ao fundo da qual estava, sem saber, um cadáver. É sócio de uma associação de caçadores e agricultores da zona e, por isso, costuma andar por ali a vigiar os terrenos. “Todos os dias lá passo, mas pela estrada principal” e nunca pela de terra batida. Da estrada de alcatrão, consegue vigiar “aquilo tudo mais ou menos” e por isso basta-lhe passar com a carrinha por ali, contou ao Observador, repetindo: “Não sei o que me deu. Calhou lá passar”.
Antes de chegar ao cruzamento com a Estrada Nacional 372, Luís virou à esquerda: “Passo para lá, não vi ninguém”. Soube, minutos mais tarde, porque é que não viu: o corpo estava à sua direita, do lado do banco do pendura. “A carrinha é uma 4×4, um bocado alta. Não deu para ver. Depois a estrada acaba e eu voltei para trás. Aí, estava o corpo já do meu lado esquerdo [do lado da janela do condutor]”, explicou. Bastou-lhe olhar para baixo, através do vidro.
Luís Martins não se apercebeu logo que era um corpo. Seguiu em frente, mas não andou muitos metros. Aqueles que andou foi a pensar naquilo que tinha acabado de ver. “Parei, voltei para trás, fui verificar. Afinal, aquilo era uma pessoa”, descreveu ao Observador.
Telefonou “imediatamente” para o posto da GNR de Avis: “Não ia deixar a pessoa assim e ir-me embora. Tenho de ligar. Mais nada”. Até porque Luís desconfiou logo que não se tratava de um acidente. “Era impossível. Numa estrada de terra batida, com pouco movimento? Não se ia matar lá sozinho!”. Quando falou com o Observador, em Alcórrego, este domingo, ainda não tinha visto as notícias. Não sabia que o corpo que encontrou era do triatleta Luís Grilo, desaparecido em Vila Franca de Xira, há mais de um mês.
Um tapete preto e um saco de plástico
É uma estrada com pouco movimento, até porque não tem saída. Caso contrário, o corpo teria sido encontrado há mais tempo, já que os arbustos não eram suficientemente altos para o esconder. Quando foi descoberto, estava com os braços abertos e os pés praticamente a chegar ao limite da estrada de terra batida. Tinha marcas de agressões que implicaram, obrigatoriamente, o uso de grande violência. Essa evidência foi imediata quando os primeiros elementos que lá chegaram retiraram o saco de plástico preto que cobria a cabeça da vítima.
O saco é um dos elementos que os peritos do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária estão a investigar. As autoridades admitem que possa ter sido utilizado como forma de “asfixiar a vítima”. Mas há outras hipóteses, como a de ter sido uma forma de “evitar o reconhecimento do percurso, se a pessoa estava viva”. Ainda assim, fonte da PJ explicou ao Observador que é “precoce” estar a determinar, de forma definitiva, a função que o saco de plástico teve na morte de Luís Grilo.
Além desse elemento, os inspetores prestarão também atenção a um tapete preto, de grandes dimensões, que estava apoiado, ao alto e semidobrado, num dos arbustos ao lado do corpo. O tapete é visível nas fotografias da cena do crime, mas já lá não está. “Qualquer tapete ou elemento associado ao cadáver é transportado e recolhido. O trabalho foi feito de acordo com os procedimentos”, garantiu fonte da PJ ao Observador, adiantando que os trabalhos no local já estão concluídos. “Foi feita uma inspeção minuciosa antes, durante e depois do levantamento do cadáver. O que se tinha a concluir no local, já se concluiu”, acrescentou a mesma fonte.
Também neste caso será prematuro concluir qual a função do tapete, se é que teve alguma. Uma das hipóteses mais óbvias é a de que tenha servido para transportar o corpo de Luís Grilo, no caso de o homicídio ter acontecido noutro local e aquele terreno baldio ter servido apenas para depositar o corpo. Uma tese para a qual pode pesar o facto de o telemóvel do triatleta ter sido encontrado em Casais da Marmeleira, a 130 quilómetros dali.
Concluída também já está a autópsia, mas faltam ainda resultados finais que permitam determinar, com certeza, as causas da morte. As hipóteses mais prováveis são os traumatismos na cabeça ou asfixia, mas nenhuma outra foi excluída. A identificação do corpo foi rápida. Nestes casos, são procurados elementos distintivos, como sinais, marcas de nascença, tatuagens ou jóias (por exemplo, uma aliança de casamento), antes mesmo de se procurar uma confirmação através do ADN.
Um homem sem inimigos assassinado com violência
O caso é um enigma para a Polícia Judiciária. A 16 de julho, Luís Grilo, triatleta de 50 anos, saiu de casa, em Cachoeiras, para fazer um treino de bicicleta. Deveria ter voltado duas horas depois, como era habitual, até porque ainda tinha um outro treino, desta vez na piscina, que tinha combinado com o filho, de 12 anos. Sem notícias do marido, Rosa Grilo deu conta do desaparecimento à GNR. Logo nos primeiros dias, foram feitas buscas na região, também com a ajuda dos bombeiros e dos amigos de Luís Grilo, que se organizaram para bater os terrenos onde o ciclista poderia ter passado.
Na mesma altura, a Polícia Judiciária juntou-se à investigação, mas as pistas que foram aparecendo revelaram-se sempre um beco sem saída. Entre uma mulher que garantia ter visto Luís Grilo a discutir com um homem, em Arruda dos Vinhos, mas que, na verdade, só podia garantir que tinha visto um ciclista (sem saber ao certo se estava vestido da mesma forma que Luís Grilo e em que dia tinha sido), ou as imagens de videovigilância de uma empresa, que só mostravam um vulto a passar, sem pormenores que permitissem uma identificação exata.
Nessa mesma localização apareceria, também, o telemóvel do triatleta, largado na berma da estrada, em Casais da Marmeleira, a apenas seis quilómetros da casa de Luís Grilo. O facto de estar ali, desligado e fora da bolsa plástica que o ciclista costumava usar, poderia indicar que algo de anormal tinha acontecido, mas sem qualquer outro indício que sustentasse as teses de desaparecimento voluntário ou de crime. Os investigadores continuaram a admitir como muito provável que fosse um caso de acidente — que Luís Grilo tivesse, por exemplo, caído em algum local, ficando ferido com muita gravidade ou até morrendo de imediato, e, por qualquer razão, o corpo tivesse ficado escondido, num declive, por exemplo.
(clique nos pontos assinalados no mapa para conhecer os pontos-chave do percurso de Luís Grilo)
A sustentar esta teoria tinham a experiência: não são raros os casos em que desaparecimentos sem explicação podem levar a crer que só pode ter-se tratado de um crime e acabam por revelar-se acidentes infelizes, com as vítimas a serem encontradas algum tempo depois — ou, em alguns casos, nunca.
Foi isso que aconteceu, por exemplo, em junho de 2010. Uma jovem de Lamego estava desaparecida há mais de um mês, depois de ter saído de casa, no seu carro, no feriado do Dia do Trabalhador. Afastada a hipótese de desaparecimento voluntário, a PJ admitia a possibilidade de crime, sobretudo porque nas estradas percorridas pela jovem não havia qualquer indício de acidente. O corpo, contudo, acabaria por ser encontrado, dentro da viatura, no fundo de uma ravina de 30 metros, junto à autoestrada A24, a apenas 3 quilómetros de casa.
Carina Ferreira terá sido vítima de um despiste acidental, que não deixou marcas na estrada porque “o Peugeot 106 voou sobre um talude de 7,5 metros, protegido com rede, que nem tocada foi, e precipitou-se depois na ravina”, explicou, na altura, Manuel Coutinho, vereador da Proteção Civil da Câmara de Lamego, que acrescentou que “um eventual excesso de velocidade e/ou distração fizeram o carro de Carina tocar na valeta a seguir ao viaduto da A24, no sentido Lamego/Régua, o que provocou um efeito alavanca”.
Durante as semanas que passaram desde o desaparecimento de Luís Grilo, a possibilidade de ter acontecido algo semelhante ganhava força. Sobretudo, tendo em conta o perfil da vítima, traçado pela PJ, com os dados recolhidos entre familiares e amigos. Era um homem com uma vida absolutamente normal, pai de uma criança com quem tinha uma relação muito próxima, sem problemas familiares, com a mulher ou outros parentes, nem dificuldades financeiras ou laborais que lhe trouxessem qualquer instabilidade. Por outras palavras, era “um homem sem inimigos” e sem características que sugerissem qualquer desavença mais grave.
A descoberta do corpo, na sexta-feira, veio baralhar todos os dados: o tal homem sem inimigos era encontrado largado num terreno baldio, na berma de um caminho municipal, num cenário pouco comum. A investigação não volta à estaca zero, mas terá de seguir agora um caminho completamente diferente, mesmo que obrigue os inspetores a voltar aos mesmos sítios e a ouvir as mesmas pessoas. A PJ tentará perceber, por exemplo, se há alguma razão concreta para o corpo ter sido deixado naquele lugar, daquela localidade. O Observador sabe que Luís Grilo conhecia bem a região. O triatleta tem família em Benavila, a 17 kms do sítio onde foi encontrado. Era frequente fazer percursos de bicicleta por ali e ficava também alguns dias seguidos em casa dos familiares. Por vezes, saía de Vila Franca de Xira e pedalava até lá. A mulher acompanhava-o, mas de carro.
O objetivo dos inspetores será encontrar qualquer elemento, por pequeno que seja, que possa lançar uma luz sobre o que aconteceu. Um elemento que tenha escapado, um segredo, um episódio inesperado. Isto, claro, se existir. Haverá sempre a possibilidade de Luís Grilo ter sido vítima de alguém que não conhecia ou com quem não tinha qualquer relação.