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O espetáculo "Depois do Silêncio" mostra-se este sábado e domingo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa
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O espetáculo "Depois do Silêncio" mostra-se este sábado e domingo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa

Nurith Wagner-Strauss

O espetáculo "Depois do Silêncio" mostra-se este sábado e domingo, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa

Nurith Wagner-Strauss

O "teatro de denúncia" de Christiane Jatahy: “para que as vozes caladas no Brasil ganhem fala”

Este sábado e domingo, a artista brasileira traz a Lisboa um espetáculo a partir o romance “Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior. A Bahia rural é o terreno para denunciar um ponto cego da História.

“A gente a cada época vai dizer que isso é urgente, isso é urgente. Mas eu, de facto, acredito que a gente está num momento em que isso está muito urgente”. As palavras são de Christiane Jatahy, reconhecida como uma das mais relevantes artistas do teatro contemporâneo, que está de volta a Portugal para mostrar este sábado e domingo, no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, Depois do Silêncio.

Em hora e meia, a denúncia da estrutura racista e violenta de uma sociedade brasileira fundada sobre o colonialismo português, o horror da escravatura, a angústia do silêncio, é nos atirada à cara. É realidade ou ficção? É teatro ou cinema? A linha é sempre ténue quando falamos da criadora brasileira, premiada em janeiro de 2022 pela Bienal de Veneza com o Leão de Ouro pela sua trajetória artística. “Fazer esse teatro não representa necessariamente um distanciamento do ficcional. Essas coisas podem caminhar juntas. A poesia e a literatura, a magia e o sonho podem estar caminhando junto com a realidade. Essa interseção cada vez me interessa mais”.

Christiane Jatahy tem expostos a tensão entre o cinema e o teatro, a cada espetáculo esbatendo as fronteiras entre a ficção e realidade, desafiando os espectadores e ampliando as possibilidades de uma experiência teatral. “Depois do Silêncio é uma peça que vai muito para esse lugar. É um teatro que começa como um teatro documental, porque está se falando ali de uma maneira muito direta com o espectador, vem nesse documental como um teatro de denúncia, assim, mas tem uma coisa que é muito importante, que é que aquelas pessoas não são elas mesmas, elas são personagens de uma ficção”.

Reconhecida como uma das mais relevantes artistas do teatro contemporâneo, Christiane Jatahy recebeu, em 2022, o Leão de Ouro na Bienal de Veneza

LEO AVERSA

O ponto de partida foi o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, galardoado com os prémios Leya, Jabuti e Oceanos, ao qual Jatahy juntou o documentário Cabra Marcado para Morrer, do cineasta Eduardo Coutinho, na qual se conta a história do sindicalista João Pedro Teixeira, assassinado em 1962. Foi sobre esta base que a encenadora trabalhou, com a “colaboração das atrizes, mulheres negras, que são parte integrantes da criação da dramaturgia e que trazem sua voz e pesquisas para a cena”: Caju e Juliana, atrizes e pesquisadoras, e Gal, atriz da comunidade quilombola do Remanso.

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É uma peça de denúncia “para falar, na verdade, de uma estrutura que a gente não transformou, de um processo que é colonial, mas que também é como o Brasil foi se estruturando até hoje, em que os povos afro-brasileiros foram sequestrados da África para o Brasil e que hoje em dia são a grande base social do Brasil”, diz a artista. “Os indígenas continuam, em sua grande maioria, sem lugar. Sem lugar para morar, sem lugar para existir, sem direitos. E muitas vezes sendo exterminados pela sua luta”. A peça fala disso, mas não se esgota nisso. “É sobre a dor, é sobre a violência, é sobre o horror, mas também é sobre a continuidade. Como é que essas comunidades vão se fortalecendo, como é que também a sua cultura, suas histórias, sua magia vai fortalecendo, que é parte constituinte dessa história também”.

"A peça fala de uma estrutura que a gente não transformou, de um processo que é colonial, mas que também é como o Brasil foi se estruturando até hoje, em que os povos afro-brasileiros foram sequestrados da África para o Brasil e que hoje em dia são a grande base social do Brasil. Os indígenas continuam, em sua grande maioria, sem lugar. Sem lugar para morar, sem lugar para existir, sem direitos. E muitas vezes sendo exterminados pela sua luta.”

No palco, pela voz de três jovens mulheres revela-se “a prisão que pode ser o silêncio”, invocando uma ideia de futuro. “A peça é também sobre isso, esse momento em que essas pessoas invisibilizadas, essas vozes caladas, ganham lugar de fala, tomam o seu lugar de fala. Qual é o impacto que isso tem? Qual é o impacto que isso tem e de que maneira que isso transforma?”, questiona.

Em "Depois do Silêncio", a encenadora sublinha a importância da "colaboração das atrizes, mulheres negras, que são parte integrantes da criação da dramaturgia e trazem sua voz e pesquisas para a cena"

Christiane Jatahy destaca as “mulheres que falam por outras mulheres que foram caladas”. “Numa linha de ancestralidade em que muitas vozes que ficaram desaparecidas agora tomam força nos seus descendentes que falam por elas também. E tem uma questão também: agora que está tudo aqui, o que é que a gente vai fazer com isso? Agora que a gente não pode mais esconder, não tem mais como cobrir.”

Levantar o véu, expor, é isso que Jatahy tem feito na Trilogia do Horror, que se encerra com este espetáculo, e que a artista criou como resposta aos quatro anos de Jair Bolsonaro à frente da presidência do Brasil (2019-2022), abordando diferentes tipos de violência. “A trilogia nasceu desse choque, desse terror mesmo, desse horror de se ver diante de um governo como o que nós tivemos e me perguntando como é que estruturas e como é que isso pôde acontecer”, explica ao Observador.

No primeiro espetáculo, Entre chien e loup, Jatahy centrou-se no fascismo, a partir do filme Dogville, de Lars von Trier, no segundo, Before the sky falls, repensou o patriarcado e a agressão de género com recurso a Macbeth, de Shakespeare. No terceiro, que chega agora a Lisboa, largou o ponto de vista do poder, do colonizador e da elite, para regressar ao seu país e chamar a palco as questões da escravatura, dando voz ao povo quem constrói a história desse país, afrodescendentes, povos originários, sobre esse passado (e presente) que muitos continuam sem ver.

Christiane Jatahy tem expostos as linhas de tensão entre o teatro e o cinema, indo além da investigação de como o cinema pode ampliar a nossa experiência teatral

A criadora brasileira com um percurso predominantemente europeu, fala com entusiasmo no regresso a Portugal, em particular a Lisboa onde “apresentar os trabalhos tem uma explosão de sentidos”. “Há questão da língua, e da proximidade, essa sensação de estar de fora e ao mesmo tempo se sentir tão dentro, sabe? Numa comunicação tão direta com o espectador. Com exceção do Brasil, de facto é o único lugar em que encontro isso”.

A ligação da encenadora à capital portuguesa consolidou-se em 2018, quando foi Artista da Cidade, um projeto da Câmara Municipal de Lisboa no qual várias estruturas e entidades culturais apresentavam, em conjunto, uma diversidade de propostas de um único artista estrangeiro — a bienal, que trouxe à cidade nomes como Anne Teresa de Keersmaeker (2012), Tim Etchells (2014), ou Faustin Linyekula (2016), foi interrompida na pandemia e nunca foi retomada.

"Sou um pouco otimista [de que o teatro] pode ter reverberações no concreto e na realidade. Me sinto como artista com essa responsabilidade de levar à pauta determinadas questões que podem criar algum tipo de movimento para que a gente possa frear essa nossa caminhada para o abismo."

Desde então, a artista tem voltado. A última vez foi em 2022, no Teatro São Luiz, com o espetáculo Agora Que Demora, segunda parte de um díptico em torno de Odisseia, de Homero. O regresso a Portugal acontece agora ao CCB e nada tem de coincidência ser a instituição onde as artes performativas são dirigidas pela anterior responsável pelo teatro municipal lisboeta. É Jatahy que faz questão de mencionar, já após a conversa telefónica com o Observador, numa mensagem por escrito, como Aida Tavares é “parte determinante dessa [sua] trajetória em Portugal”, uma “parceira fiel dos artistas que apoia”.

Assim acabou Jatahy com honras de abertura nesta temporada do CCB, levando ao Pequeno Auditório um espetáculo que desafia e no qual, depois da primeira récita, dia 14, vai encontrar-se com o público para uma conversa. “Sou um pouco otimista, [de que o teatro] pode ter reverberações no concreto e na realidade”, diz a encenadora brasileira. “Me sinto como artista com essa responsabilidade de levar à pauta determinadas questões que podem, a partir da multiplicação de outras pessoas que também fazem isso, e de outras fontes que também fazem isso, tanto artísticas quanto jornalísticas, criar algum tipo de movimento para que a gente possa frear essa nossa caminhada para o abismo”.

“Talvez isso venha da minha formação jornalística”, diz por fim, questionada pela escolha de temas em que se debruça. “As temáticas que atravessam o contemporâneo, que atravessam o que está acontecendo no mundo, são as temáticas que mais me mobilizam. É colado com o meu olhar do mundo, sobre o mundo e como me sinto como artista, sabe?”

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