Uma das mais importantes coleções de arte relacionadas com a Terra Santa vai estar na exposição O Tesouro dos Reis: Obras-primas do Terra Sancta Museum, que abre portas no Museu Calouste Gulbenkian a partir desta sexta-feira, 10 de novembro. Trata-se de um conjunto de objetos artísticos de valor histórico e cultural, produto de várias doações régias dos monarcas da Europa àquela região do mundo ao longo dos séculos, uma coleção que explora a relação entre a religião, o poder político e a arte europeia dos séculos XV a XIX.
A grande maioria do acervo agora exposto integra a coleção do Terra Sancta Museum, aberto desde 2016 em Jerusalém e gerido pela Custódia da Terra Santa, cujo núcleo de exposição das suas coleções históricas e artísticas está em construção, com inauguração prevista para 2026. Outras contribuições provieram de proprietários privados, como George Al-Ama, um colecionador e preservador de arte palestiniano, bem como de várias coleções museológicas nacionais (incluindo a da própria Fundação).
“Alguns destes objetos já não têm equivalente nas coleções nacionais, tendo desaparecido por completo, pelo que as obras de arte hoje reunidas na Custódia da Terra Santa são como que um verdadeiro conservatório de obras de arte que já não existem”, explicou ao Observador Jacques Charles-Gaffiot, historiador de arte e membro do comité científico do Terra Sancta Museum, que serve como comissário científico da exposição.
O conjunto de obras – objetos da produção artística europeia como quadros, ourivesaria, ornamentos, mas também sedas e tecidos luxuosos da época, bem como alguns arquivos documentais – chegou a Portugal no verão, com uma parte significativa do espólio, cerca de 40 peças, a ser alvo de uma alargada intervenção de restauro atendendo ao seu mau estado de conservação.
“A necessidade de um projeto de conservação e restauro grande foi algo que constatámos logo nas primeiras vezes que fomos a Jerusalém ver as peças” disse André Afonso, conservador do Museu Gulbenkian. O processo envolveu, além da própria equipa de conservação do museu, a contratação de técnicos externos e a colaboração do laboratório José de Figueiredo.
A exposição divide-se em quatro núcleos, numa lógica cronológica que visa, de algum modo, espelhar a evolução da importância espiritual de Jerusalém ao longo da história. A primeira destas secções, intitulada Jerusalém, Cidade da Redenção, marca o “ponto zero” desta história, com um conjunto de obras que retratam o nascimento, morte e ressurreição de Jesus Cristo e o mito fundador da Terra Santa para os cristãos, centradas numa Estrela de Belém com a inscrição em latim “Hic Natus Est de Virigne Jesus Christus Factus Homos” (“aqui Jesus Cristo nasceu da Virgem e se fez homem), enquadrando o local no centro do mundo cristão. “É o local da encarnação, onde Jesus nasceu, viveu, morreu, foi sepultado e, para os cristãos, onde ressuscitou”, explicou o conservador.
A história de Jerusalém enquanto lugar de culto está intimamente ligada ao reconhecimento pelo Imperador Constantino, no século IV d.C., da liberdade dos cristãos do Império Romano, bem como à peregrinação da mãe deste, Helena de Constantinopla, que, segundo a tradição, terá identificado o lugar onde Jesus foi sepultado, mandando construir sobre o local a Basílica do Santo Sepulcro, lugar que, ao longo dos séculos seguintes, viria a tornar-se um importante centro para a projeção da devoção dos reis católicos.
“Porque é que os reis o faziam? Devoção, claro, mas também para substituírem a sua própria presença”, explicou Jacques Charles-Gaffiot. “Os soberanos não podiam embarcar numa peregrinação e assumir as suas responsabilidades ao mesmo tempo. Demorariam oito, nove meses, um ano a fazer a viagem. Por isso enviavam presentes, que se foram acumulando ao longo dos anos, e é desta forma que o património da Custódia da Terra Santa, entre pinturas, ourivesarias e vestes litúrgicas, foi crescendo”, acrescentou.
As diferentes alas da exposição concentram alguns exemplares destas doações, feitas por vários dos principais reinos cristãos da Europa. Entre elas destacam-se uma imponente lâmpada de igreja portuguesa em ouro, datada de meados do século XVIII e doada pelo rei D. João V, um báculo de prata dourada enviado para Jerusalém por Luís XIV de França ou, no final, uma impressionante coleção com proveniência de Carlos VII de Nápoles: um baldaquino eucarístico e crucifixo em ouro maciço, doado como parte de um esforço diplomático entre aquele reino europeu e o Império Otomano (que durante séculos controlou a região) no século XVIII.
Este último ponto revela, por outro lado, a forma como estas manifestações de devoção assumiam, eram também, em muitos casos, uma demonstração de poder político e militar – razão pela qual o núcleo onde se encontram se intitula Teatro do Mundo. “Daí também esta ideia de palco, de teatro e de representação que tentámos transmitir. Por algum motivo, são raras as peças que não têm os brasões. Dão uma ideia muito clara da benevolência e generosidade de quem doou. Por exemplo, as peças francesas estão carregadas de Flor-de-Lis; qualquer pessoa que as visse saberia que vieram dos reis de França”, disse André Afonso.
Além dessa história da Europa Cristã, um dado curioso é constatar que a exposição tem também uma dimensão marcadamente pessoal por virtude do espaço que a acolhe. Tal está espelhado no quarto e último núcleo desta proposta, que explora a relação de Calouste Gulbenkian com Jerusalém. É sobretudo através de documentação e arquivos históricos, como fotografias e diários, que é retratado o laço afetivo e espiritual do empresário e filantropo arménio com a Terra Santa.
O mecenas financiou a construção da biblioteca do Patriarcado Arménio de Jerusalém, batizada com o seu nome, fazendo ainda uma das contribuições mais significativas ao espólio desta. Um Livro de Evangelhos arménio do século XV, doado em 1948, já no período em que residia em Portugal e que quase não chegava a tempo da exposição. “A peça chegou na semana passada, tivemos algum receio”, admitiu o conservador.
Esse medo foi, sobretudo, motivado pelo clima que atualmente se vive no Médio Oriente com a guerra entre Israel e o Hamas. Facto que não é alheio aos organizadores da exposição. “Para nós foi importante a chegada das peças com tempo. No atual contexto, imagine o que seria trazê-las. Possivelmente não haveria exposição”, disse André Afonso.
Charles-Gaffiot também assumiu esta dimensão acrescida atendendo ao timing da exposição e à memória da importância histórica da Terra Santa para vários povos e religiões. “A situação atual acaba por reforçar esta ideia, da importância de Jerusalém enquanto cidade onde todos os povos do mundo convergiram. Por isso esta exposição, de certo modo, é também um ato de peregrinação, de viagem, de olharmos para o nosso património”, disse.