910kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

Depois de fugirem das aldeias sob ataque, os habitantes encontraram as suas casas em cinzas
i

Depois de fugirem das aldeias sob ataque, os habitantes encontraram as suas casas em cinzas

Fotografia cedida por Edegard Silva

Depois de fugirem das aldeias sob ataque, os habitantes encontraram as suas casas em cinzas

Fotografia cedida por Edegard Silva

O toque do sino, a fuga para o mato e o regresso às aldeias ainda a arder. Um relato dos ataques em Cabo Delgado

O padre missionário Edegard Silva, que há um ano fugiu para Pemba, lamenta a falta de ação do Governo, diz que os militares pouco podem fazer e garante que o povo de Palma ainda precisa de ajuda.

Quando o padre brasileiro Edegard Silva, dos missionários saletinos, chegou a Cabo Delgado, em dezembro de 2017, o norte de Moçambique já vivia em guerra. O primeiro ataque de uma célula fundamentalista islâmica, em outubro daquele ano, assolara a vila costeira de Mocímboa da Praia, dando início a uma violenta guerra que se arrasta já há mais de três anos. Durante esse período, o grupo de insurgentes islâmicos, cuja identidade e motivações reais são ainda parcialmente incertas, tomou o controlo de uma parte significativa da província de Cabo Delgado, no norte do país, deixando mais de meio milhão de pessoas sem casa, perpetrando massacres cruéis e atacando, uma por uma, as aldeias da região — onde abundam recursos naturais como o gás, o petróleo e as pedras preciosas.

Durante dois anos e meio, Edegard Silva trabalhou na histórica missão de Nangololo, em Muambula, no planalto de Muidumbe, região onde vivem dezenas de milhares de moçambicanos da etnia maconde. Fundada em 1924, a missão foi durante quase um século responsável por promover a educação e o desenvolvimento do vasto planalto. Porém, a missão não chegou ao centenário: em abril de 2020, a aldeia de Muambula sucumbiu ao destino que coubera a muitas outras povoações do norte de Moçambique nos meses anteriores e foi tomada pelos insurgentes, o que obrigou os padres a fugir rumo a sul, à cidade de Pemba, onde hoje se acumulam centenas de milhares de deslocados internos.

Três mil membros e 500 mortos em três anos. Como uma célula do Estado Islâmico está a espalhar o terror em Moçambique

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Numa entrevista ao Observador a partir de Pemba, o missionário descreve o que viveu nos últimos três anos em Moçambique: os primeiros ataques ao planalto, os planos de fuga para o mato, o toque dos sinos que significa um ataque iminente, o desespero dos que não sabem do paradeiro de metade da família, a coragem dos que se aventuraram pela vila ocupada para fotografar o rasto de destruição deixado pelos terroristas, as dificuldades de comunicação com quem percorre as florestas e o papel da Igreja Católica numa região em que o Estado devia — diz o sacerdote — usar todos os recursos para socorrer o povo aflito.

Nos últimos dias, o mortífero ataque à vila de Palma, perto da fronteira com a Tanzânia, voltou a pôr a guerra com três anos na agenda mediática internacional. O Estado Islâmico reivindicou formalmente o controlo da povoação após dias de confrontos violentos que resultaram na morte de dezenas de pessoas e que deixaram um cidadão português ferido. As imagens da fuga de Palma correram o mundo: sem acesso pela floresta onde se escondem os insurgentes, milhares de pessoas escaparam da vila costeira pelo mar, chegando de barco a Pemba. Segundo Edegard Silva, o ataque a Palma era inevitável e já esperado na região em qualquer momento. No ano passado, duas freiras brasileiras estiveram sequestradas pelos terroristas durante mais de 20 dias. Quando foram libertadas, revelaram aquilo que ouviram no cativeiro, o que permitiu antecipar vários ataques na região, lembra o sacerdote. Resta saber, diz Edegard Silva, se os procedimentos de evacuação da vila — inicialmente destinados sobretudo aos trabalhadores da exploração de gás da Total e de outras organizações internacionais — abrangem todo o povo desesperado de Palma, que continua “dentro do mato”.

O padre Edegard Silva (ao centro) era até abril de 2020 um dos três padres missionários na histórica missão de Nangololo

Fotografia cedida por Edegard Silva

Quando lhe enviei a primeira mensagem a perguntar se podíamos fazer esta entrevista, disse-me que estava em viagem, que tinha ido visitar os deslocados. Quem são as pessoas que foi visitar?
Vou começar por apresentar-me. Sou brasileiro, da congregação religiosa dos missionários saletinos, os Missionários de Nossa Senhora de La Salette. Chegámos aqui a convite do bispo anterior, D. Luiz Fernando Lisboa, em dezembro de 2017. Quando chegámos, colocámo-nos à disposição da diocese e D. Luiz pediu que atendêssemos a uma paróquia da região norte, a paróquia do Sagrado Coração de Jesus, no distrito de Muidumbe. É um distrito com 79 mil habitantes onde prevalece o povo Maconde, um povo predominantemente católico, de pequenos agricultores, que vivem da agricultura familiar, sobretudo do plantio do milho, o alimento principal não só de Muidumbe, mas de toda a população aqui de Cabo Delgado e, creio, de Moçambique. Esta região norte praticamente não era atendida, tinha um grupo muito pequeno de missionários, e D. Luiz conseguiu que um grupo expressivo de missionários viessem trabalhar aqui na região. Nós fomos para esta paróquia. Somos três missionários: dois brasileiros e um angolano. Quando nós chegámos, a guerra já tinha iniciado. Chegámos em dezembro de 2017, e esta guerra teve início no dia 5 de outubro de 2017, na cidade vizinha de Mocímboa da Praia.

Portanto, quando chegaram já havia uma guerra a acontecer, mas ainda de dimensões mais pequenas, certo? O que é que se vivia nessa região, na altura?
Era uma guerra ainda de uma proporção menor, até com um armamento bem mais leve, e nós já iniciámos a missão nesse contexto de guerra. Além da guerra, nós começámos a enfrentar também o ciclone Kenneth, em abril de 2019. Esse ciclone entrou precisamente na cidade vizinha nossa, a cidade de Macomia. Os ventos e todas as consequências deste ciclone foram fortes para nós em Muidumbe, porque pela ordem seria Macomia, depois Muidumbe, depois Mocímboa da Praia, Mueda, Nangade e Palma. A ordem dos distritos é assim. Além do ciclone, nós enfrentámos, no final do ano, cheias que nunca tinham acontecido tão fortes na região e que fizeram duas pontes desabar. Nós ficámos cinco meses ilhados nesta região. Ilhados mesmo, sem comunicação com a capital e desprovidos de alimentos, porque não havia como manter os depósitos e os mercados.

Nessa altura, os terroristas ainda não tinham chegado aí.
À nossa aldeia, não. Mas nos outros locais os ataques continuavam. Em Muidumbe são 26 comunidades e nós temos, mais ou menos, oito comunidades na planície e as demais comunidades todas no planalto. Inclusivamente, é chamado o planalto Maconde. Achava-se que eles nunca subiriam o planalto e eu lembro muito bem: o primeiro ataque sofrido nas nossas comunidades de Muidumbe foi no dia 7 de novembro de 2019. Uma pequena comunidade que vivia de plantar o arroz. O nome dessa comunidade era Criação.

Durante dois anos, vocês tinham noção da guerra que se desenrolava nas comunidades vizinhas, mas estiveram a salvo dos terroristas.
Tínhamos noção, até porque entre nós, missionários, nós comunicávamos. Até hoje, comunicamo-nos muito. Qualquer coisa que acontecesse numa dessas áreas, imediatamente nos comunicávamos. Estávamos acompanhando o que acontecia em Mocímboa da Praia, em Macomia, em Quissanga, nesses outros distritos que foram atacados bem antes de nós. Sobretudo Mocímboa da Praia, em que a presença da Igreja se dava através das Irmãs de São José de Chambéry e de um ramo dos Beneditinos, que atendia também esta região. Não é que achássemos que estávamos livres dos ataques. Nessas alturas, muita coisa já tinha mudado no quotidiano das comunidades. Mudou o horário das missas, o horário das escolas. A escola da parte da noite foi suspensa porque todo o mundo já vivia com um certo medo, porque já via ali nas comunidades ao redor o que estava a acontecer.

Quantas pessoas vivem nas comunidades da vossa missão?
Em Muidumbe, 79 mil habitantes.

Nas 26 comunidades.
Nas 26 comunidades. Então, no dia 7 de novembro de 2019, de madrugada, o telefone tocou e era o animador da comunidade, comunicando que eles tinham acabado de invadir a comunidade. Eles, nesta altura, já estavam a falar comigo do mato, porque todos eles, na verdade, na família já conversavam sobre esse assunto. Combinavam, até, caso houvesse um ataque, por onde deviam fugir e para onde deviam ir. Todo o mundo falava isso em suas casas.

Primeiros militares do contingente português partem na primeira quinzena de abril para Moçambique

As pessoas já estavam preparadas para que isso acontecesse.
Preparadas. Preparadas entre aspas, porque para um ataque destes nunca se está preparado, mas ao menos conversava-se, caso viesse a haver o ataque, para onde se esconderiam, como deviam fugir e, creio até, o mínimo que podiam pegar, tipo água, uma capulana, algo desse tipo.

E qual foi a primeira comunidade que foi atacada?
A primeira comunidade que foi atacada foi a comunidade de Criação, onde o povo vivia de plantar o arroz. Eu pedi-lhes que esperassem que o dia amanhecesse para que eu pudesse ir lá. Logo que o dia amanheceu, consegui uma motorizada que me levasse até lá. Foi difícil, porque as pessoas até com essas motorizadas tinham medo de ir ao local. Com muita dificuldade, consegui convencer um jovem que me levasse até esta aldeia, em torno de 50 quilómetros de onde eu morava.

E as pessoas passaram a noite no mato, fora da aldeia?
Passaram no mato, sim, como sempre fazem. Eu liguei para o animador, segui de motorizada e eles vieram esperar-me lá na aldeia. Entrei casa por casa. Em todas elas ainda apanhei o fogo, ainda estavam a queimar. Foi uma cena muito forte para mim, tocou-me muito.

As casas foram queimadas.
Casas queimadas, as poucas coisas que as pessoas tinham. Eu visitei casa por casa, com alguns animadores, porque o povo ainda estava no mato. Foi o único ataque que eu consegui fotografar e filmar. Tenho muitas dessas fotos, que até hoje servem no mundo inteiro para mostrar um pouco a questão da guerra. Eu filmei o que pude e fotografei o que pude, e voltei para casa. Já era quase meio-dia. Tudo isto, comunicando com o bispo, falando com ele da situação e do que eu estava a ver nesta comunidade da Criação.

Depois de fugirem para o mato, os residentes das aldeias atacadas regressaram às suas casas incendiadas pelos terroristas

Fotografia cedida por Edegard Silva

Pelo que as pessoas de Criação lhe contaram, como foi o ataque? Foi só numa noite? Os terroristas chegaram e depois foram embora?
Nesse dia foi só uma noite, mas eles foram atacados depois mais duas vezes. Em todas estas aldeias, eles já têm alguns códigos e algumas orientações para a população. Por exemplo, têm uma espécie de um sino que, quando eles batem, a população já sabe que se trata de um ataque. Quando eles entraram na Criação, deu tempo para esse animador, esse líder da aldeia, bater no sino e para as pessoas correrem e fugirem para o mato. Até porque todas essas aldeias são aldeias rurais, não são aldeias com características urbanas.

E como é que souberam dos ataques?
Não é que soubessem, os terroristas chegaram atirando. É uma aldeia em que passa uma estrada no meio; metade da população fica de um lado da estrada, metade do outro. Quando se ouviu os tiros, deu tempo de esse animador bater o sino e todo o mundo fugir para o mato. Então, nesse ataque da Criação, não houve mortes. Houve apenas a destruição das casas, dos alimentos que eles tinham guardado, sobretudo milho e arroz. Aí, sim, eu fui e voltei para casa. Era 7 de novembro de 2019. Depois desse ataque, nunca mais tivemos paz. Todas as aldeias da planície, ou como a gente aqui chama, as comunidades da Baixa. É o termo que eles usam aqui. Baixa é a planície. Todas as comunidades foram atacadas. Chitunda, Xitaxi, Miangalewa, Primeiro de Maio… Todas essas comunidades foram atacadas e já começou a ser mais violento — e já estamos em 2020. Essas aldeias começaram a ficar despovoadas, porque, claro, o povo começou a sentir medo. Já eram ataques muito violentos e com armas pesadas. Provavelmente, o esconderijo deles era ali na própria região.

Chegaram a perceber, a identificar algum sítio onde eles estivessem escondidos?
Não saberia dizer-lhe se alguém tinha noção, até porque ninguém tinha coragem para ir para o mato para ter um enfrentamento com eles. A população não tinha armas e não é o papel da população civil pegar em armas para enfrentar os terroristas. Isso é o papel do Estado, não da população civil.

Os ataques têm obrigado milhares de moçambicanos a permanecer escondidos no mato para evitar os ataques

Fotografia cedida por Edegard Silva

Nesses ataques, os terroristas chegavam com armas, disparavam. Mas conseguiram perceber qual era o objetivo desses primeiros ataques? Violência apenas, roubar alimentos? Disse-me que nos primeiros ataques não houve mortes.
Vou dar o meu exemplo. O meu, o dos missionários de Nangade, o dos missionários de Meluco, dos missionários de Macomia… Todos nós estávamos a chegar. Não somos moçambicanos, estávamos a chegar. Claro, havia missionários mais antigos aqui, como é o caso das Irmãs de São José de Chambéry, que tinham uma missionária que estava há muito tempo aqui. Agora, não há ninguém na região, porque não há condições para estar lá. Mas essa também era a pergunta que sempre fazíamos. Estamos a chegar a um lugar e encontramos uma guerra. A primeira coisa que queríamos saber era isso. Qual o motivo dessa guerra? Porque está a acontecer essa guerra? Isso nunca nos foi explicado, sobretudo por parte do governo. Quem tinha de nos dar uma explicação era o governo. A nós, não digo a nós, missionários. À população. E, dentro do povo, nós também. Nunca foi dito claramente. Aí, começam uma série de pessoas a fazer algumas análises do motivo. Chegou até a falar-se, numa época, do rosto oculto desta guerra. Começa a levantar-se hipóteses desses ataques. Essas hipóteses passam pela questão económica, passa por uma questão geracional, digamos assim. Fala-se de uma revolta da juventude sem oportunidades. Mas ela passa também por uma vertente, que é a que eu acredito muito, que é a questão económica dos mega-projetos que estavam já chegando a esta região norte.

Do gás?
Do gás, do petróleo e também da madeira. É uma região muito rica, esta região aqui. Esta região norte tem os rubis, tem a grafite. Não na região norte onde eu estava, mas em toda esta região de Cabo Delgado. Nessa região onde nós estávamos, era mais o gás. A famosa chamada cidade do gás. Tem essa vertente económica, mas essas motivações foram crescendo e pode dizer-se também que aproveitou dessa situação o fundamentalismo religioso.

A partir do norte, da Tanzânia?
Não poderia dar assim uma afirmação de países. E também lhe digo: nesta nossa região, a convivência no dia-a-dia nas comunidades não é de conflito religioso. A gente convive. O católico com o muçulmano, de um lado a igreja católica, perto está o templo dos muçulmanos… Não é uma região em que se registe nenhum conflito religioso. Nós fomos encontrar uma guerra com todos esses fatores e que, oficialmente — posso dizer-lhe isto assim —, até hoje não houve uma explicação por parte do país para nós. Muitas vezes, fazemos uso de análises, de estudos que são feitos fora do país.

"Estamos a chegar a um lugar e encontramos uma guerra. A primeira coisa que queríamos saber era isso. Qual o motivo dessa guerra? Porque está a acontecer essa guerra? Isso nunca nos foi explicado, sobretudo por parte do governo"

E qual é a presença da polícia e das forças armadas na região? Agora já será diferente, mas na altura dos primeiros ataques não havia polícia nessas aldeias?
Existia um policiamento, que já havia em cada aldeia, mas um policiamento muito fraquinho, que não era capaz de enfrentar mesmo esse conflito. Não estavam preparados para esse tipo de conflito. Como eles foram demonstrando muita habilidade militar, como é que eu analiso? E digo-lhe isto a partir do ataque da nossa aldeia: percebíamos que o próprio exército e os próprios polícias tinham medo de enfrentar os terroristas. Os terroristas apresentavam-se com muito mais violência, com muito mais preparação, muitas vezes, do que o próprio exército, do que os próprios militares. Só queria voltar um pouco aos ataques da nossa aldeia para lhe dizer que as nossas aldeias começaram a ser atacadas de forma violenta, começou a haver mortes violentas, sequestros, de tal forma que eu não podia mais ir fotografar, ir lá. O nosso bispo já não queria que ficássemos expostos nesses conflitos por uma questão de segurança nossa. Mas, numa das comunidades, uma comunidade chamada Xitaxi, houve um massacre de 52 jovens em abril de 2020. Esse massacre já está comprovado, já encontrámos diversas pessoas que testemunharam, que estiveram lá no momento, que afirmam. A situação foi-se complicando muito. Mas estou, agora, em março de 2020. Pensava-se que os terroristas nunca entrariam lá na aldeia onde eu morava, onde estávamos em missão, que é a aldeia de Muambula. É a segunda missão mais antiga aqui de Cabo Delgado, da diocese de Pemba. Foi fundada em 1924 pelos padres monfortinos. Tem uma história muito forte na região. Esses primeiros missionários investiram muito em escolas, em ensinar às pessoas uma profissão. Era uma referência muito grande, essa missão, onde nós estávamos.

Era uma espécie de capital para a região?
Não. A referência da região é a cidade de Mueda, que é por sinal a cidade do Presidente. Mueda seria a cidade de referência para nós. É onde fica o grande quartel do exército, é a cidade do Presidente e é o lugar que, até hoje, nunca foi atacado. De nove, é a única que não foi atacada. Esta nossa missão é uma referência histórica pela evangelização, porque foi de lá que se foi evangelizando toda esta região.

Estava a contar o dia em que foi atacada.
Os missionários de Nangade, com receio de serem atacados, por orientação do bispo, vieram morar connosco. Quatro irmãos e dois padres. E nós estávamos em casa, rezando, porque era o início da Semana Santa. Corresponde a esta terça-feira, era terça-feira da Semana Santa. Nós estávamos a fazer um retiro. Alguém batia muito forte no portão. E nós falámos “não vamos atender, porque senão não fazemos a nossa oração”. Terminámos a oração, abrimos o portão e estava lá o animador a dizer que tinha acabado de acontecer o ataque. Os terroristas tinham acabado de entrar na nossa aldeia. Só deu tempo de sairmos a correr, pegar uma mochila. Toda a população já tinha fugido para o mato. Pouquíssimas pessoas dispõem de carro. Nós enchemos o nosso carro, que foi só o suficiente para nós mesmos, fomos por um atalho e viajámos um dia inteiro. Eram 10h da manhã. Viajámos um dia inteiro até chegar, às 22h, à cidade de Montepuez, o bispo nos acompanhando por telefone. Nessas alturas, toda a aldeia já tinha sido atacada. O hospital queimado, todos os prédios da administração queimados, a única agência bancária queimada. Eles destruíram, nesse primeiro momento, todos os prédios públicos. Não atacaram a área da missão. A nossa casa, a igreja, não foi mexido nesse ataque.

Foi contra o Estado.
Sim, porque eles já haviam dito que o próximo ataque deles era para atacar mesmo os prédios públicos do governo. Eles já tinham avisado. Nesse período, o bispo pediu que todos nós, missionários, saíssemos da região norte e viéssemos para Pemba. Aí, claro, obedecemos ao bispo. Entendíamos que ele tinha razão. Todos nós viemos embora para Pemba. Era o dia 7 de abril de 2020. Já estamos a caminhar para um ano.

O que viu mais nesse dia do ataque, quando fugiram no carro pelas ruas da aldeia?
O povo foge com uma rapidez muito grande. Quando nós passámos, praticamente todas as aldeias já estavam vazias e muita gente caminhava em direção ao mato. Num instante, eles esvaziam tudo. É como lhe disse, provavelmente eles já têm os lugares, cada família combina, conhecem o mato e já combinam para onde se devem dirigir. Desde essa época, nós estamos aqui em Pemba. Aqui, nós fomos atendendo o povo que ia chegando à região. O povo fugia para o mato e, quando podia, quando via que a situação estava mais calma, seguia para a cidade mais perto, de Mueda, e de Mueda pegava o transporte, não só para Pemba, mas para diversos outros locais, onde está espalhada toda a população da região norte.

"A dinâmica, se lhe podemos chamar dinâmica, da fuga é assim: tem o ataque; a família, junta ou separada, foge para o mato; no mato, eles ficam até quando tiverem condições, vendo se a coisa está mais ou menos calma, e vão caminhando pelo mato até chegarem a alguma pequena cidade onde encontrem um meio de transporte para ir para alguma cidade"

Durante este tempo, não voltaram lá?
Nem voltámos nem temos condições de voltar. Acabou de ver o ataque que aconteceu em Palma. Podemos voltar, mas só para depois o pessoal ir lá buscar a gente mortos, já. Se queremos preservar a nossa vida para depois ajudar no processo de reconstrução, temos de fazer isto que o bispo está mandando. Não existe segurança para ninguém nesta região.

A região está sob controlo dos terroristas neste momento?
Está. Desde a época da guerra, eles controlam a região norte. Então, nós ficámos aqui atendendo a população dos deslocados. No dia 30 de outubro de 2020, eles entraram de novo na nossa aldeia, lá nessa região de novo. O segundo ataque. Esse ataque já foi bem mais violento do que o de abril. Foram 20 dias de ataques. Atacaram mesmo de arma pesada e o exército também, com helicópteros. Era tiros dos dois lados, da parte do exército e dos terroristas, e lá ficaram até o dia 19 de novembro de 2020. Passado uns dias, nós tivemos duas pessoas que, por decisão deles, tiveram a coragem de ir, escondidos, ver o que tinha acontecido lá na região. Foram lá precisamente a esta aldeia onde nós morávamos, Muambula, e conseguiram fotografar tudo o que tinha acontecido. Foi aí que tivemos acesso, através das fotos, ao que tinha mesmo acontecido. Ninguém, durante os ataques, fica lá para presenciar, senão morre. Esse levantamento que esse senhor fez, ele e o irmão — eles eram dois colaboradores da missão — mandaram as fotografias para nós. A nossa casa foi toda queimada, com tudo o que nós tínhamos lá dentro. Todo o material da missão, inclusivamente 100 anos de história. Todos os livros, todos os arquivos da paróquia, que estava a preparar a festa do centenário. Foi tudo queimado. A nossa casa ficou em cinzas. A igreja foi queimada. A rádio comunitária foi queimada. A casa dos missionários leigos queimada. O ambulatório dentário, com equipamento excelente vindo da Itália, todo queimado. A casa das irmãs, queimada. Destruíram toda a infraestrutura da missão. Toda. Centro catequético, sala de catequese, tudo se transformou em cinzas. Essa é a realidade atual da nossa missão.

Uma missão que, de certo modo, agora está transferida para Pemba.
Não dessa forma. Veja bem: nós estamos aqui, agora, a esperar a decisão do bispo sobre o que vai ser uma nova missão para nós, porque para lá, tão cedo, nós não podemos voltar. Aqui, os deslocados não são apenas de Muidumbe. Os deslocados não são apenas cristãos. Até lhe diria que uma grande parte é muçulmana. Começa o trabalho da Igreja nessa linha humanitária. E no trabalho humanitário a primeira pergunta não é se é católico ou muçulmano. A pergunta é se é humano, não qual a religião da pessoa. Todos nós, padres, leigos, religiosos, religiosas, temo-nos colocado à disposição deste povo deslocado, onde quer que ele se encontra.

A missão de Nangololo ficou destruída

Fotografia cedida por Edegard Silva

O que é que o facto de haver muitos muçulmanos entre os deslocados que precisam de ajuda nos diz sobre esta guerra enquanto conflito religioso? Os fundamentalistas islâmicos estão a atacar muçulmanos também.
Veja bem, este nosso povo é um povo muito simples. Simples, simples, simples! Essa é uma dor muito grande que a gente sente. Quem, na verdade, tem sentido as consequências desta guerra são os pobres. Este é um pessoal tão simples, de escolaridade muito baixa. Para lhe ser sincero, nem essa terminologia é usada. Não pode perguntar “olhe, você acha que isto é uma ação do Estado Islâmico?”, porque eles nem sabem o que é o Estado Islâmico.

Pois. Pergunto-lhe a si, que tem esse olhar sobre tudo isto. Quando vê vários muçulmanos a precisarem de ajuda, a terem fugido das suas casas, como é que olha para o conflito?
O que eles dizem é “a guerra”. Eles resumem esta realidade na palavra “guerra”. São pessoas que estão tão quebradas, que perderam tudo. A preocupação deles, naquele momento, é assim: a esposa veio, o esposo ninguém sabe onde ficou; de cinco filhos, conseguiram pegar dois, três não sabem onde estão; a família que viu os filhos serem raptados. Isso é a preocupação daquele dia. Ninguém está com preocupação de fazer análise da guerra. A preocupação deles é tão concreta que ninguém faz análises de quem está por trás, porque na verdade eles estão sofrendo é as consequências. O filho que está desaparecido, viu o esposo ser degolado… Tudo isto existe neste grupo de guerra. Há fome.

Há gente que tem relatos diretos, na primeira pessoa, de confronto com os terroristas.
É isso. E são pessoas que chegam doentes. Praticamente todos chegam doentes, porque têm passado fome dentro do mato e, além disso, a beber todo o tipo de água — se lhe podemos chamar água. Qualquer coisa que possa, ao menos, saciar um pouco a sede, eles tomam aquilo e chegam todos doentes. Magros e deformados, com a fome e com a água que bebem no mato.

Em dezembro, fiz uma entrevista ao bispo D. Luiz Fernando Lisboa e ele fez um balanço de 500 mil deslocados. Este número tem continuado a aumentar…
Tem aumentado. Se eram 500 e você tem agora toda a população de Palma, que foi atacada… Agora já começa a chegar a população de Palma. A dinâmica, se lhe podemos chamar dinâmica, da fuga é assim: tem o ataque; a família, junta ou separada, foge para o mato; no mato, eles ficam até quando tiverem condições, vendo se a coisa está mais ou menos calma, e vão caminhando pelo mato até chegarem a alguma pequena cidade onde encontrem um meio de transporte para ir para alguma cidade. Essa cidade, geralmente, tem sido Pemba, Nampula, Nacala e algumas cidades aqui da diocese, sobretudo Montepuez e Chiúre. São cidades que estão repletas de deslocados. Esse número, agora, tem a tendência a crescer, porque houve agora o ataque de Palma.

O terror nas aldeias destruídas, a indiferença dos outros países e o telefonema do Papa para ajudar. Retrato da guerra em Moçambique

Sobre este ataque de Palma, temos visto as imagens dos residentes da vila de Palma que chegaram a Pemba de barco. O que é que caracterizou este ataque? O que é que aconteceu nos últimos dias para ter precipitado este ataque tão dramático nestes últimos dias?
Vou fazer uso de outra realidade que nós vivemos na guerra, que foi o sequestro das duas irmãs de São José de Chambéry. Com os sequestros das irmãs, quando elas foram libertadas, chegaram a partilhar connosco, já que elas conviveram aqueles mais de 20 dias com eles lá no acampamento, o que elas os ouviam dizer. Elas ouviam claramente eles falar sobre como seria o esquema dos ataques: “Vamos atacar esta comunidade, esta e esta, até chegar a Muidumbe”. Quando o D. Luiz falou forte para a gente, que não podíamos voltar para Muidumbe, é porque as irmãs tinham ouvido já eles dizerem que iam atacar de novo Muidumbe. É bom recordar que tudo aquilo que elas ouviram veio a acontecer, do mesmo jeito que elas ouviram. Quando termina um ataque, há uma trégua. Já sabemos que não é uma trégua de que a guerra acabou. Ficamos a pensar: “Qual é o próximo lugar que eles vão atacar?” Há mais ou menos três semanas, eles começaram a atacar Nangade. Nangade era uma comunidade atendida por dois padres e quatro irmãs, todos brasileiros. Todos estão aqui em Pemba. Essas comunidades que foram atacadas eram comunidades já do caminho para Palma. Então, nós já sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, ia acontecer o ataque a Palma. Esses ataques não são anunciados, eles não vão anunciar porque não faz parte da estratégia deles. Houve esse ataque e imediatamente ficámos a saber porque, entre essas aldeias, toda a população tem familiares nas aldeias diversas. Temos um animador nosso que tem os parentes lá em Palma. Logo que houve o ataque, eram 15h, imediatamente aqui em Pemba ficámos a saber, porque o familiar ligou para o pessoal da família e a família ligou para a gente. Só que isso, geralmente, é para dizer “estamos fugindo”, e a gente perde o contacto, porque no mato não há sinal e esses aparelhos são muito simples, os mais simples possível. E em terceiro lugar eles ficam com medo de falar no mato e serem ouvidos. Aí, a gente perde o contacto. Por isso, se me pergunta se tenho dados reais, concretos, de como foi tudo em Palma, ainda não temos. Têm de passar uns dias, para a população começar a chegar aqui e, aí sim, começarmos a conversar com eles.

Já chegaram pessoas a Pemba, vindas de barco, tem noção do que já foi organizado?
Eu recebi essas fotos ontem. Não gosto de falar quando não tenho fontes seguras. Era a orientação do nosso antigo bispo D. Luiz, que não falemos de coisas sem termos conhecimento. Então, vou dizer-lhe um pouco daquilo que tenho percebido. Eu moro aqui em Pemba num local que, em linha reta, é por onde sobrevoam os pequenos aviões. Há três dias que não param de passar, por cima de nossa casa, os pequenos aviões. Esses pequenos aviões, já se sabe que não são para a população pobre. Esses pequenos aviões são para os funcionários da Total ou das organizações que estão lá. Da mesma forma, ouvi dizer que esses barcos que chegaram aqui estavam mais ao serviço desses quadros, desses profissionais destas empresas. O nosso povo simples, com certeza, vou dizer-lhe, está dentro do mato. E vou dizer-lhe mais: esse povo simples nunca foi contactado no apoio para os órgãos de governo. Quem dá apoio para esse povo em primeiro lugar é a Igreja e essas organizações internacionais. Nós mesmos tivemos de fazer muita campanha para pagar a passagem de muitas lideranças nossas, para sair de Mueda e fugir com a família toda para outros locais. Havia um padre que estava em Mueda e a gente conseguia mandar o dinheiro para casa do padre, a família vinha a casa do padre, pegava o dinheiro e conseguia fugir. A ajuda governamental vem com muito atraso. Quem ainda socorre o povo somos nós.

O bispo D. Luiz chegou a ter alguns momentos de tensão pública com o governo moçambicano por dizer que era preciso intervenção e a intervenção não corresponder ao que era pedido. D. Luiz entretanto foi embora. Faz alguma leitura política desta saída?
Quando eu digo que no primeiro momento quem dá esse socorro aos pobres somos nós e algumas organizações, não estou a dizer que o governo não faz nada. O que eu quero dizer é que entre a infraestrutura de que nós dispomos e a infraestrutura do Estado, o Estado tem muito, muito mais recursos do que nós. São reações tímidas para o poder de um Estado. O Estado tem os recursos na mão. Quem não tem somos nós, que temos de correr atrás da solidariedade internacional.

"O nosso povo simples, com certeza, vou dizer-lhe, está dentro do mato"

E o Estado devia aceitar mais ajuda internacional?
Eu acho que sim, claro. Essa é uma pergunta para a qual ficamos sem resposta também até hoje. Moro há três anos naquela região e digo-lhe: não é uma região de difícil acesso, não é uma região de uma floresta fechada, tipo Amazónia no Brasil. É uma floresta de pequeno porte. Qualquer país, hoje, tem recursos tecnológicos, por exemplo, de intercepção de telemóvel, de drone para poder sobrevoar. Até hoje tenho essa dúvida: porque é que o Estado nunca teve um enfrentamento sério desses esconderijos e desses terroristas na região, uma vez que não é uma região de difícil acesso? Não é. Acho que deveria haver esse apoio de países que pudessem até dar uma contribuição para o enfrentamento desta guerra. Agora, respondendo a outra questão sua: que houve um pedido da parte do governo para que retirassem D. Luiz, eu não acredito. D. Luiz é bispo indicado pelo Papa, D. Luiz caminha com muita proximidade com a linha do Papa. O Papa conhece muito bem os conflitos daqui, de tal maneira que já falou publicamente. Houve aquela atitude que foi belíssima, de ligar para D. Luiz, no dia 19 de agosto. Não será uma forma de castigo ou um pedido de pessoas que estavam descontentes com D. Luiz. O que eu acredito é que quanto mais um bispo, um padre, um religioso, um cristão, um leigo, fazer o que D. Luiz fazia, a ter uma dimensão profética, está a fazer o que pede a Igreja e o que é característico do pontificado do Papa Francisco. Agora, posso dizer-lhe assim: o Papa Francisco, que apoia a linha do trabalho da diocese de Pemba, pede a D. Luiz para mudar de diocese, há aí duas coisas. Faz parte da missão de qualquer bispo e de qualquer padre, a mudança de missão. Mas também se pode analisar como uma maneira de preservar a vida dele. Assim como ele. Veja bem, quando nós viemos para Pemba, nós batemos o pé, houve gente que chorou, houve gente que não queria sair da missão. Mas D. Luiz dizia “obedeçam-me, porque eu estou a fazer isto para preservar a vossa vida”. E só com o tempo é que fomos percebendo isso. Se nós tivéssemos ficado lá, você não estaria a falar com o padre Edegard. Estaria a mencionar um padre que foi também morto pela guerra. Se houve essa transferência no ministério de D. Luiz, pode também ser analisado nesse sentido. Agora, dar essa transferência como uma vitória de um grupo ou de outro, não. O Papa Francisco não teria essa postura. Todos nós missionários, os saletinos, do qual faço parte e os missionários do Sagrado Coração, nós estamos em Pemba. As irmãs de Macomia estão numa comunidade chamada Metoro. Os padres de Macomia estão em Montepuez. Os padres e as irmãs de Nangade estão numa comunidade chamada Mecúfi. As irmãs de São José de Chambéry, que foram sequestradas, estão no Brasil, esperando que tudo acalme. E os padres beneditinos, como são tanzanianos, estão na Tanzânia. A nossa missão agora é visitar os acampamentos. Mesmo com os procedimentos do protocolo Covid, rezar com o pessoal em pequenos grupos, promover ações mais educativas com o pessoal, uma vez que ele não vão voltar tão cedo — e a gente também não vai ter condições de ficar anos e anos dando comida. Não damos conta disso. Hoje, fui visitar um pequeno grupo lá de Muidumbe, que está num projeto de micro-crédito. Fazemos uma ajuda financeira para a pessoa revender algum produto em sua própria casa. Fazemos uma série de reuniões, cada um diz o que sabe fazer, vender arroz, vender tecido, e damos esse empréstimo, para ver se as pessoas começam a caminhar com os próprios pés. Hoje atendi dois grupos de dez. Amanhã mais um grupo de dez. Na volta, entrei num reassentamento — há os acampamentos e os reassentamentos — e fui fazer uma filmagem do posto de saúde que está sendo construído com o dinheiro que o Papa enviou. O Papa enviou um dinheiro para D. Luiz, que, com a Cáritas, tomou a decisão de construir dois postos de saúde. Um nessa região de Montepuez, e outro em Chiúre. Atualmente, o nosso trabalho tem sido este. Ir visitar os nossos paroquianos ou até quem a gente encontra. Se vamos lá e se aproxima alguém que não é paroquiano, não vamos dizer que não.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça até artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.