Juro que tentei. Passei-o entre os meus dedos, andei com ele no pulso, estiquei-o entre as mãos. Fiz aquilo que os miúdos fazem naquela idade de chupar azedas, tocar em urtigas sem respirar ou fazer bolinhas de cola UHU: enrolei-o à volta de um dedo como um anel bem apertado, enquanto via a minha própria carne a ficar roxa. Não adiantou; continuei sem percebê-lo.
Um elástico é uma rodela fina de borracha, feito normalmente de borracha natural, também chamada látex. Às vezes é colorido, mas por regra tem aquela cor de areia indistinta que todos conhecemos. Mole, flexível, sem início nem fim. Podemos fazer-lhe o que quisermos, que ele volta à sua forma disforme inicial. Tem aquele cheiro característico que está entranhado nos sulcos mais fundos das nossas memórias, provavelmente por causa das chupetas que usámos em bebés ou dos brinquedos de borracha que amaciaram o aparecimento dos nossos primeiros dentes.
Há elásticos por todo o lado. Não há escritórios sem elásticos, por mais que se diga à senhora do economato que não servem para nada. Em cada secretária vive um organizador de plástico triplo, um recipiente mais alto para canetas e lápis, outro para clips, outro para elásticos. E não há canto nas nossas casas com papéis que não tenha elásticos. Aliás, até nas cozinhas há elásticos. Basta abrir uma gaveta e, no meio da sopa caótica que são chaves desconhecidas, canetas sem tampa, palitos espalhados, velas de aniversário usadas, peças partidas de eletrodomésticos que já não existem, molas estragadas, parafusos órfãos, rebuçados fora de prazo, pilhas gastas ou listas antigas de supermercado [respirar], há elásticos. Não estão a segurar nada, nem a organizar nada. Estão apenas ali, entre as outras tralhas todas, uma espécie de larvas gigantes contorcidas a alimentar-se do vórtice hipnotizante que é o interior de uma insuspeita gaveta de cozinha.
Já se deve ter notado. O elástico é dos objetos que mais me irrita. E nem sequer é por causa da cor desmaiada, ou das curvas moles de amiba deformada. É sobretudo pela forma como se comporta em grupo. Um elástico é um ser esquisito, mas vários elásticos formam uma tribo sinistra. Um conjunto de entes unicelulares sem estrutura, todos enrolados uns nos outros de forma aleatória. Tenho uma alergia ótica a essa teia de linhas misturadas, a esse prato de esparguete de borracha, a essa cesta de serpentes. Os meus olhos tremem com o caos visual, olham para ele como um mistério sem solução, tentam procurar o início da linha, sem sucesso. É um labirinto sem saída. Quando os dedos se juntam aos olhos, tudo piora. Tentar tirar um elástico de um molho de elásticos é coisa para me fazer suar das mãos, porque já sei que há uma força cósmica qualquer a entrelaçá-los todos. Às vezes os elásticos estão todos apertados em volta uns dos outros, a formar uma bola, que é outra coisa que me causa ansiedade. Todo aquele material em tensão, prestes a explodir. Não consigo ficar descansada ao pé de uma bola de elásticos, sinto sempre que a qualquer momento ela vai disparar um elástico na direção do meu olho. E pensar em tirar de lá um elástico é para mim como cortar o fio azul da bomba um segundo antes de o tempo acabar (é sempre o azul, certo?).
Mas enfim, quero dar ao elástico uma segunda oportunidade. Não é tarefa fácil se considerar a história que normalmente é contada sobre ele, e, sobretudo, a história do material de que é feito.
Julga-se que os primeiros elásticos foram criados pelo inglês Thomas Hancock, que na primeira metade do séc. XIX fabricava tiras elásticas finas para vestuário e calçado. Os seus fios elásticos tinham uma aplicação limitada, porque a borracha nessa altura era instável. Ou seja, ficava seca e quebradiça no tempo frio, e mole e pegajosa no tempo quente. Ao processar a borracha, Hancock ficava com muitas sobras, que não podiam ser usadas na produção de tiras por não serem suficientemente longas. Para aproveitar o material excedente, Hancock inventou uma máquina que triturava a borracha, fundindo-a numa pasta, o que aumentava as suas propriedades elásticas. Hancock chamou a esta máquina masticator (mastigadora) e usou a borracha que ela processava para fabricar vários produtos. A partir de 1822, começou a fazer tubos ocos de borracha, e cortou-os em anéis finos. A borracha continuava a mudar de consistência com a temperatura, e, não encontrando nenhuma utilização para esses anéis, Hancock nem sequer procurou proteger os direitos sobre a sua invenção.
Do outro lado do oceano atlântico, o americano Charles Goodyear, engenheiro e químico autodidata, vivia fascinado com as propriedades da borracha. Apesar de muitos já terem desistido de investigar as suas potencialidades e de descobrir uma forma de melhorar a sua consistência perante mudanças de temperatura, continuava a fazer testes com borracha natural. Goodyear estava à beira da ruína financeira, e a sua família passava muitas dificuldades. Diz-se que em 1833, preso por não conseguir pagar as suas dívidas, pedia à sua mulher para lhe levar à prisão borracha e materiais para as suas experiências. A sua persistência era inesgotável: mudava a sua família de cidade em cidade à procura de recursos para levar a cabo a sua investigação, trabalhava em sótãos sem condições, arriscou a vida várias vezes manipulando substâncias perigosas. Em 1839, na sequência de um acidente com um fogão, Goodyear descobriu que misturando borracha natural com enxofre e aquecendo esse material a determinada temperatura conseguia estabilizar a consistência da borracha, fazendo com que mantivesse as suas propriedades elásticas. Enviou várias amostras da sua descoberta a fábricas que utilizavam borracha (inclusivamente a fábricas inglesas), e acabou por receber uma patente por este processo nos Estados Unidos, em 1844.
O inglês Hancock terá sido um dos que recebeu a amostra. Conseguiu perceber o processo utilizado por Goodyear levando a cabo algumas experiências sobre a amostra e, em 1843, patenteou-o em Inglaterra. Um dos seus colaboradores chamou ao processo vulcanização, inspirado pelo deus romano do fogo, Vulcano.
Goodyear tentou patentear o seu processo de transformação da borracha em Inglaterra, mas deparou-se com a patente de Hancock. Seguiram-se litígios judiciais. O tribunal acabou por decidir a favor de Hancock, concluindo que mesmo que este tivesse tido acesso a uma amostra do produto de Goodyear, não teria forma de perceber o processo de vulcanização apenas pela mera observação do material final.
Goodyear acabou por ser reconhecido pela sua invenção, que mudou para sempre a utilização da borracha natural e levou à criação de milhares de novos produtos. Mas morreu repentinamente em 1860, cheio de dívidas, após saber da morte de uma das filhas. A empresa Goodyear Tire & Rubber Company, que veio a ser um dos maiores fabricantes mundiais de pneus e de borracha, foi fundada depois de Goodyear morrer, usando o seu nome em sua homenagem.
Hancock ficou com a patente da vulcanização em Inglaterra, mas não protegeu a sua máquina mastigadora de borracha nem os anéis que conseguia produzir com o material resultante. E, em 1845, o inglês Stephen Perry patenteou uma rodela de borracha, que agora mantinha a sua elasticidade graças ao processo de vulcanização. Na descrição da sua patente, Perry referia o processo de vulcanização atribuído a Hancock. Inteligentemente, esclarecia que não pretendia qualquer direito sobre esse processo, mas apenas sobre o produto final, umas bandas elásticas “peculiares”.
Assumindo como certos os contornos que lhe são dados, a história de Goodyear, Hancock e Perry mostra como o mundo da propriedade intelectual e das patentes pode ser tão feroz, e como decisões judiciais, como aquela proferida no caso entre Goodyear e Hancock, que até podem parecer certas do ponto de vista jurídico, podem ser tão injustas. Não houve suum cuique tribuere, mas, de certa maneira, o equilíbrio foi reposto. Hancock pode ter ficado com os direitos sobre a vulcanização em Inglaterra, mas foi Perry quem ficou com os direitos sobre o elástico.
As ditas bandas elásticas começaram a ser usadas correntemente, mas, até ao início do séc. XX, eram utilizadas sobretudo na indústria, em fábricas e armazéns. Em 1923, o americano William Spencer começou a cortar tiras finas de tubos ocos de borracha descartados, para segurar os jornais que eram atirados para os relvados das casas e que voavam com o vento. Spencer trabalhava numa companhia ferroviária e tinha acesso a material de borracha excedente da Goodyear Tire & Rubber Company. Claro, como qualquer história de empreendedorismo americano, que começa sempre com pessoas a fazer coisas estranhas numa garagem ou sítio similar, Spencer cortava as rodelas elásticas na sua cave nos tempos livres. A certa altura, conseguiu convencer a própria empresa do jornal que enrolava nos elásticos a comprar-lhe as rodelas e passou também a fornecê-las a lojas, papelarias e mercearias, até abrir a sua própria fábrica. Em 1957, patenteou o Alliance rubber band, que é o antecessor direto dos elásticos que usamos nos dias de hoje.
A história do elástico é uma história de iniciativa e criatividade, persistência, concorrência e sucesso. É parecida com tantas outras histórias de invenções do séc. XIX que transformaram a forma como vivemos e os objetos que usamos. Mas esconde uma outra história, difícil de ler, sobre a borracha natural.
A borracha é conhecida pelo menos desde o tempo dos Maias, que usavam a seiva de algumas árvores que cresciam nas florestas tropicais para fazer objetos muito diversos, desde bolas para jogar, utensílios ou figuras humanas. Os vários países que colonizaram a América Central e do Sul trouxeram borracha para a Europa, onde cativou vários inventores. O próprio nome borracha foi dado por um químico inglês, Joseph Priestley, a quem também é creditada a descoberta do oxigénio. Em 1770, Priestley descobriu que peças duras de borracha apagavam marcas de lápis de folhas de papel, chamando-lhes rubber (de rub out, apagar). Aliás, foi assim que também começaram a surgir as borrachas de apagar que hoje usamos. Em França, contudo, o nome que se dava à borracha, e que ainda se dá, é outro. Charles de la Condamine chamou-lhe, também em meados do séc. XVIII, caoutchouc, uma adaptação da palavra antiga cahuchu, dada pelos povos da América Central e do Sul às árvores da borracha. Cahuchu quer dizer madeira que chora. Para tirar a seiva das árvores elas tinham de ser golpeadas, e dessas feridas abertas escorria o seu sangue e as suas lágrimas, o látex.
No séc. XIX, a maior parte da borracha que chegava à Europa era extraída da seringueira, ou Hevea brasiliensis, uma árvore que crescia na floresta da Amazónia e noutras partes da América Central e do Sul. O processo de vulcanização levou a um crescimento enorme da sua exploração no Brasil e no Peru, mas os ingleses, que consumiam muita borracha, tinham dificuldade em ter controlo sobre estes territórios. Em 1876, o inglês Henry Wickham levou 70.000 sementes de Hevea Brasiliensis do Brasil até aos Kew Gardens, em Londres. Menos de 3.000 sementes germinaram, mas ainda assim foram enviadas para a Indonésia e para os territórios do então império inglês que também tinham um clima quente e húmido como a Amazónia, e que hoje formam a Índia, o Sri Lanka, Singapura e a Malásia. Em poucas décadas, estas zonas tornaram-se nas maiores explorações de borracha natural do mundo, e as suas populações a mão-de-obra barata que a extraía, ao comando dos ingleses.
Na América Central e do Sul, as árvores da borracha começaram também a ser utilizadas em plantações intensivas no fim do séc. XIX. Mas, ao contrário da sua ocorrência natural na floresta, onde estão mais espaçadas, nas explorações intensivas as árvores da borracha foram plantadas muito próximas umas das outras. A falta de experiência em agricultura equatorial do pessoal destas plantações e a proximidade entre as árvores fizeram com que rapidamente as plantas fossem atacadas por fungos que destruíram negócios inteiros. Ainda hoje o fungo da seringueira é um dos maiores obstáculos à exploração de borracha nestas áreas. A Fordlândia, um projeto megalómano de Henry Ford no Brasil, foi um desses negócios. Nos anos 20 do séc. XX, Ford criou de raiz uma cidade no meio da Amazónia ao abrigo de uma concessão que lhe havia sido concedida pelo Estado do Pará. A cidade viveria do projeto agroindustrial da exploração de borracha natural, e iria ser o principal fornecedor de látex para os pneus dos seus automóveis. O projeto foi cancelado em 1945, mas o fungo que dizimou a plantação não era o único problema. Os trabalhadores eram forçados a viver ao estilo americano, em casas americanas e, inclusivamente, a comer comida americana. A colisão com os seus hábitos e tradições prejudicou a produtividade da exploração e foi causa de várias revoltas.
A aculturação forçada dos trabalhadores da Amazónia por Henry Ford parece chocante, mas não é o pior da história da exploração da borracha. O Estado Livre do Congo, um pedaço de território apropriado por Leopoldo II da Bélgica entre 1877 e 1908 como sua propriedade pessoal, foi palco de atrocidades terríveis cometidas contra a população local, obrigada a trabalhar na extração da borracha e do marfim. Nestas áreas a borracha era extraída de uma trepadeira chamada Landolphia owariensis, encontrada nas zonas tropicais africanas, mas a planta não era abundante e a extração por vezes não era fácil. Além disto, os trabalhadores que não entregassem determinada quantidade de borracha sofriam consequências horríveis, que no limite levavam à sua morte ou à morte da sua família. Mas o terror prolongava-se depois disso. O corpo militar do Estado Livre do Congo e os soldados das empresas concessionárias, que fiscalizavam o cumprimento das quotas de borracha, eram recrutados sobretudo nas tribos vizinhas, habituadas a atos cruéis e desumanos a que os oficiais belgas, no mínimo, fechavam os olhos. Esses soldados eram eles próprios controlados pela força e, quando matavam a tiro, decepavam uma das mãos das pessoas que assassinavam, para demonstrar que não tinham usado as munições, escassas e caras, para caçar, e que não as guardavam em preparação de um eventual motim. Por vezes, poupavam a vida mas cortavam a mão das pessoas torturadas, trazendo-as em substituição da borracha em falta. Quando as quotas de extração de borracha não eram atingidas, o valor em falta era assim compensado por cestas cheias de mãos decepadas, que se tornaram numa moeda de troca comum.
Milhões de homens, mulheres e crianças terão sido torturados e mortos no Estado Livre do Congo por causa da borracha. É impossível esquecer, para quem conhece, a fotografia tirada em 1904 naquele país por Alice Seeley Harris, uma missionária e fotógrafa inglesa. Na fotografia aparece Nsala, um trabalhador da exploração da borracha, sentado num degrau na entrada de uma casa, de olhar vazio. Atrás dele, dois homens fitam-no, consternados. Nsala olha para o pé e para a mão decepados da sua filha de 5 anos, morta com a sua mulher pelos soldados da empresa concessionária de exploração de borracha. A fotografia não parece ter sido espontânea, e a delicadeza com que os dois pequenos membros decepados foram pousados no degrau é arrepiante. O resultado de um ato de selvajaria foi ali disposto com ordem e sentido estético, se é que se pode dizer que aquela composição macabra tem ordem e sentido estético, no mesmo degrau onde também estava uma planta dentro de um vaso, um símbolo civilizacional. As fotografias de Harris, em conjunto com outras denúncias em campanhas de direitos humanos, contribuíram para o fim do Estado Livre do Congo e para a sua conversão em colónia belga. A borracha natural acabou por ser substituída em muitas coisas pela borracha sintética, mas a sua história está manchada de sangue. De sangue branco da cahuchu, da árvore que chora. E de sangue vermelho dos homens, mulheres e crianças que sofreram e morreram às mãos do negócio da borracha.
Estas duas histórias, a do elástico e a da borracha, foram aqui contadas intencionalmente em partes separadas, porque há uma cisão importante entre as duas. Uma cisão entre o mundo do humano índio, negro ou asiático, trabalhador forçado anónimo, vítima da sua própria riqueza natural e do seu clima, e o mundo autodenominado civilizado do humano branco inventor, com direito a biografia na internet, o mundo de Hancock, Goodyear, Perry e Spencer. Uma cisão entre o mundo colonizado e o mundo colonizador, o mundo que brota recursos e o mundo que os apropria, o mundo das florestas e o mundo das patentes. Entre o humano que sofre e o humano que fotografa esse sofrimento. São duas linhas que não se tocam, a não ser na matéria-prima que partilham.
Há com certeza muitas nuances nestas histórias, e chamar a atenção para esta cisão binária não é de modo nenhum retirar o mérito e o engenho de todos aqueles que contribuíram para a descoberta de novos materiais e invenção de novos produtos, que mudaram radicalmente a nossa forma de estar no mundo. A borracha pode ter histórias terríveis no seu passado, mas também tem histórias de salvação. A sua utilização em luvas cirúrgicas, por exemplo, veio da preocupação de William Stewart Halsted, cirurgião americano, com as mãos sofridas de Caroline Hampton, enfermeira que sofria de dermatite e eczema causados pelos antissépticos usados nas salas de operações, e com quem casou mais tarde. Em 1889, Halsted fez moldes das mãos de Hampton e enviou-os para a Goodyear Rubber Company, que produziu luvas de látex à medida. Outros médicos e enfermeiras seguiram o seu exemplo, e a taxa de infeção dos doentes no período pós-operatório baixou drasticamente. Nem tudo na borracha é sangue e lágrimas.
Continuo sem perceber o elástico, e o seu passado não contribui muito para resolver os desentendimentos que tenho com ele. Mas faço um esforço para vê-lo como o objeto de design que ele é. E, olhando para ele, o que vejo é um objeto que não verga, que não parte, que se adapta. Pode não durar para sempre, mas, graças a Goodyear, um elástico volta ao seu estado inicial. Mantém a sua integridade. E não tem ornamentos. Excluindo a cor com que alguns são tingidos, um elástico é função total. Não há nada desnecessário, nada a mais, nada que se possa subtrair. Tem na sua forma mínima uma pureza e uma honestidade que fazem lembrar o que Soetsu Yanagi dizia sobre a beleza das coisas quotidianas. Yanagi referia-se, obviamente, a objetos artesanais, feitos com as mãos, ao mingei japonês. Não digo que um elástico seja propriamente o paradigma mais lírico da beleza material. Mas como não encontrar no mais industrial dos elásticos o mesmo despojamento da mais humilde taça de cerâmica, o respeito silencioso de um objeto sincero, feito para servir e não para ofuscar?
Um elástico é sossegado à vista, mas atomicamente o seu tecido é pulsante. Como se pressente, aliás, nas tais bolas de elásticos que tanto me enervam. Richard Feynman, nobel da física em 1965, descreveu entusiasticamente um elástico como sendo um conjunto de átomos em permanente movimento, como qualquer outra matéria, mas que quando é esticado se transforma num feixe de partículas ainda mais frenéticas, gerando energia. Curiosamente, Feynman foi quem atribuiu a tragédia da nave espacial americana Challenger, que se despenhou em 1986, ao mau funcionamento de umas anilhas de borracha sintética chamadas o-rings, uma espécie de elásticos grossos e mais rígidos, que perderam a sua capacidade vedante quando foram expostas a uma temperatura demasiado baixa.
A propósito dos elásticos, Feynman dizia ainda que os humanos tinham a sorte de só conseguir ver à escala das coisas, e não dos átomos. A sorte de não conseguir ver a realidade tal como ela é no seu nível mais minúsculo, de não conseguir ver o frenesim constante de que é feita a nossa existência molecular. Mas ele próprio se espantava com a beleza caleidoscópica escondida entre os átomos, com as estruturas em padrão invisíveis a olho nu, com a regularidade perfeita daquilo que só os cientistas conseguem ver ao microscópio ou traduzir numa equação matemática. Para Feynman, a beleza trazida pelos olhos da ciência acrescenta à beleza que os olhos comuns já conseguem ver.
Se Feynman se deixava maravilhar pelos átomos, Pablo Neruda, o famoso poeta chileno, deixava maravilhar-se pelas coisas (por acaso também escreveu uma ode ao átomo, mas saiu-lhe mais um canto de revolta contra a bomba atómica de Hiroshima). Neruda escreveu poemas sobre tudo e mais alguma coisa. Abrir o livro das odes de Neruda é abrir aquela insuspeita, mas prodigiosa, gaveta de cozinha. Lá encontramos objetos comuns, tão banais como uma mesa, um sabonete, um par de meias, um dicionário ou uma colher, misturados com nuvens, castanhas caídas no chão, álbuns de selos, solidão, azeite, dois outonos, barcos dentro de garrafas, tesouras, manhãs em Estocolmo, batatas fritas, chuva, técnicos de laboratório, ameixas, ondas, violinos, vinho, amores secretos, murmúrios, meses de agosto, asas de setembro, tempestades em Córdoba, magnólias. As odes de Neruda são poemas de espanto e gratidão, revelam um estado de permanente assombro com o que existe connosco, ao nosso lado, seja o que for. Neruda escreveu com uma curiosidade desassossegada, alimentada pelo deslumbramento com as coisas, pela contemplação que dispensa a procura de explicações. Nas odes, admirava objetos sem olhar para a sua história, vendo neles as histórias de quem os usou, acumuladas como uma patine invisível de memórias. Dizia, numa dessas odes, que todas as coisas traziam o vestígio dos dedos de alguém nas suas pegas ou superfícies, o traço de uma mão distante perdida na profundidade do esquecimento. Todo tiene / en el mango, en el contorno, / la huella / de unos dedos, / de una remota mano / perdida / en lo más olvidado del olvido.
Em alguns objetos, essa patine deixa marcas físicas. Para alguém que se dedica à história material, essas marcas são esmeraldas a luzir, encrustadas nos objetos. É fascinante ver o brilho de uma colher nos sítios onde quem a usou mais pressionou os seus dedos, ou a sugestão da forma parcial de uma mão num sabonete gasto, ou o tom amarelado das páginas do dicionário, no sítio onde os dedos mais as folhearam. As folhas da letra A, sempre as mais escurecidas, talvez porque quando começamos a usar um dicionário, na escola, começamos sempre a folheá-lo desde o início, a sussurrar o abecedário entredentes, na esperança de encontrar a palavra desconhecida logo ali.
Nos elásticos, as mãos de quem os usa não deixam marcas. Mas até um elástico de borracha guarda um rasto invisível de mãos e de pessoas esquecidas. Também o elástico merece a reverência que Neruda mostra pelos objetos comuns nas suas odes. No caso do elástico, as memórias acumuladas não são as das mãos que lhes tocaram. Para mim, são as memórias das mãos decepadas daqueles que morreram, que nunca chegaram, que nem chegariam, a tocar nesses objetos, que morreram precisamente porque não conseguiram extrair o material de que são feitos. São as memórias das filhas mortas de Goodyear e de Nsala, e da filha de Pablo Neruda, que morreu aos nove anos e que, diz-se, este ignorou. E são também, para mim, as mãos em ferida de Caroline Halsted, salvas por luvas de borracha. Para mim, um elástico guarda todas estas mãos sofridas, mãos que voam sobre o tempo, sobre o mar, sobre o fumo e sobre a primavera, asas de pomba dourada, como disse Neruda num outro poema.
Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.