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Os gritos da irmã atraíram Raúl até à casa de banho. Mas quando o rapaz de 12 anos abriu a porta, Valentina já não gritava mais. Dentro da banheira, encharcada em água, estava a ter convulsões e tinha os olhos muito abertos — um “olhar de súplica”. À volta dela, o pai e a madrasta, Sandro e Márcia, agarravam-na pelos braços e davam-lhe bofetadas na cara na tentativa de a reanimar. Estava praticamente nua, apenas com uma t-shirt preta vestida.
O que Raúl viu não era suposto ter visto e Sandro apressou-se a mandá-lo para o seu quarto e a ordenar-lhe que ficasse calado, ameaçando-o que, se abrisse a boca, ficaria sem as irmãs. O rapaz obedeceu, sem poder imaginar que, momentos antes de ter ido à casa de banho, Valentina teria levado uma pancada tão forte na cabeça que lhe provocou uma hemorragia interna e fez com que caísse inconsciente na banheira. E que, antes disso, teria sido violentamente agredida com um chinelo e sufocada pelo próprio pai. Não podia imaginar nada disto até porque, momentos depois, Sandro foi ao seu quarto descansá-lo, dizendo-lhe que a irmã já estava a dormir.
Mas não estava. A manhã passou e, pouco depois do almoço, numa altura em que Sandro e Márcia não estavam em casa, Raúl foi encontrar Valentina deitada no sofá, tapada com um cobertor, a espumar pela boca. Sem poder imaginar o porquê, o rapaz de 12 anos ligou à mãe e pediu-lhe que viesse rapidamente para casa. Poucos minutos depois, Sandro e Márcia chegaram e, nesse momento, aperceberam-se de que Valentina tinha acabado de morrer.
Durante os dias que se seguiram, o que se passou dentro daquela casa na Atouguia da Baleia permaneceu um mistério. Do seu interior, saía apenas a informação de que Valentina, de 9 anos, tinha desaparecido a meio da noite sem deixar rasto. Mas em poucos dias, a Polícia Judiciária (PJ) conseguiu completar os capítulos de uma história já de si muito mal contada. Valentina não tinha desaparecido: tinha sido violentamente agredida dentro de casa e levada já morta pelo pai e pela madrasta para uma floresta a cerca de nove quilómetros — crimes que Sandro e Márcia acabariam por confessar, negando no entanto a intenção de matar a criança.
Agora, ao fim de seis meses presos, foram acusados pelo Ministério Público (MP) de um crime de homicídio qualificado, um crime de profanação de cadáver e outro de abuso e simulação de sinais de perigo, embora Sandro tenha sido também acusado de um crime de violência doméstica em relação à filha. O processo já não está em segredo de justiça e a acusação agora divulgada revela o que se passou dentro da casa e relata a “morte lenta” de Valentina — desde as 9h00 da manhã, quando foi agredida até, às 22h00, quando o seu corpo foi levado para a floresta. Isto e o que se segue é o que a investigação descobriu e descreve na acusação.
Os “papelinhos” com conteúdo sexual e os supostos (e não provados) abusos sexuais do padrinho. Agressões começaram cinco dias antes do homicídio
Valentina estava há um mês e meio na casa do pai quando foi agredida pela primeira vez. Embora vivesse com a mãe no Bombarral, tinha ido para lá a meio de março “passar uma temporada” na sequência da pandemia da Covid-19. No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns “papelinhos” que teria trocado com colegas de escola e que, segundo a acusação do MP, teriam um conteúdo de natureza sexual.
Segundo o relato dos arguidos, foi depois de Valentina ter admitido ao pai que tinha sido ela a escrever os tais “papelinhos” que Sandro a terá ameaçado com violência: “Colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha disse à filha que batia com ela se a mesma não falasse”. Depois, deu-lhe “diversas palmadas, com muita força” nas pernas, segundo o MP. Sandro acabou por ir para o seu quarto, deixando Valentina a fazer os trabalhos da escola na cozinha, com a madrasta. Mas, logo depois, foi chamado de novo à cozinha pela companheira porque a filha “tinha algo mais para lhe dizer”.
Valentina terá contado, então, aos dois que o tal padrinho “lhe dava presentes” e que tinha práticas sexuais com ela, segundo é descrito na acusação. Seguiram-se novas agressões: Sandro deu várias palmadas à filha, nas pernas, “com muita força” e “bateu-lhe nas mãos com a colher de pau”, deixando-lhe marcas no corpo que acabariam por ser detetadas na autópsia, realizada semanas depois, detalha o MP.
Esta tese apresentada pelos arguidos levou o MP a investigar também os eventuais crimes de abuso sexual que Valentina estaria, alegadamente, a ser alvo. Identificou quem era o tal padrinho, inquiriu várias testemunhas, mas não encontrou qualquer prova. Mais: o relatório da autópsia “não evidencia a existência de qualquer sinal de contacto/abuso sexual sobre a vítima”. Assim, o MP acabou por arquivar estas suspeitas — as suspeitas suscitadas pelo pai e que terão levado à morte de Valentina.
Valentina “implorou” para que o pai parasse, mas Sandro não parou: molhou-a com água a ferver e sufocou-a
Eram cerca das 9h00 da manhã de 6 de maio quando Sandro quis voltar a confrontar a filha sobre o mesmo assunto. Só que desta vez estava determinado a arrancar dela respostas mais concretas: queria saber qual a “natureza sexual” dos supostos abusos e “saber se tinha havido penetração”. Chamou-a, levou-a para a casa de banho, despiu-a e colocou-a na banheira, descreve o MP, ressaltando que Sandro fez “tudo isto” na presença de Márcia, sua companheira e madrasta da criança. E Valentina ali ficou, apenas com uma t-shirt preta vestida.
Sandro sabia que a filha “detestava água quente” e por isso usou isso como ameaça: se Valentina não lhe contasse tudo sobre o tal “padrinho” de que falava, deitava-lhe água quente para cima. Mas Valentina não contou ao pai o que ele queria saber e o pai pegou no chuveiro, ligou novamente a água quente até começar a ferver.”Colocou-lhe água a ferver na região genital e inguinal, para assim a queimar e lhe infligir maior dor, usando o chuveiro para o efeito”, lê-se na acusação. Só desligou o chuveiro quando a criança “implorou para ele parar”.
Valentina continuava sem abrir a boca e Sandro começou a dar-lhe “vários murros” na cara, tórax, costas e pernas. Estava “enfurecido”, diz o MP. As agressões depressa escalaram de intensidade e Sandro acabou mesmo por “apertar o pescoço” de Valentina “com as mãos, “apertando-o e sufocando-a”. Apesar dos “gritos e súplicas” da filha, o arguido ainda a agrediu com os chinelos que menina tinha calçados, “marcando-lhe a pele com o formato desse chinelo”, lê-se.
Ao fim de cinco minutos de agressões — cinco minutos em que a madrasta de Valentina esteve sempre presente —, a menina de nove anos começou a gritar, despoletando no pai uma reação pior do que todas aquelas que tivera até então, segundo o MP. Foi nesta altura que Sandro lhe deu uma pancada na cabeça com tanta força que lhe “provocou uma hemorragia interna” e fez com que Valentina “caísse na banheira” — “tudo na presença da arguida”, volta a lembrar o Ministério Público na acusação.
“Entregue a si própria” durante 12 horas, Valentina teve uma “morte lenta”. Alerta foi dado pelo irmão
Sandro levantou a filha da banheira, mas Valentina começou a “abrir muito os olhos”, a fletir “um pouco as pernas, começando a desfalecer”. O pai agarrou novamente na filha pelos braços, mas a menor começou a ter convulsões. Sandro ainda lhe deu bofetadas na cara, para tentar que ela reagisse, mas não teve sucesso. Márcia percebeu que a enteada “tinha os olhos abertos e que estava a olhar fixamente para ela, com um olhar de súplica”, descreve o MP na acusação.
Ainda assim, Márcia não lhe deu a ajuda que precisava, segundo o MP. Em vez de chamarem uma ambulância ou de a levarem a um hospital, o casal optou por pegar em Valentina e levá-la para a cozinha. Ali, a madrasta pôs uma cadeira no centro daquela divisão da casa, por baixo de uma claraboia, que abriu. Depois, Sandro sentou-se na cadeira com a filha ao colo. Após cerca de sete a oito minutos em que Valentina esteve a ter convulsões, ao colo do pai, a criança acabou por ficar inanimada. Foi neste momento que, na tese da investigação, Sandro e Márcia perceberam que Valentina podia morrer.
Podiam ter ligado para o 112 ou até procurar algum vizinho ou alguém que fosse a passar na rua e que os pudesse ajudar. São algumas hipóteses que os procuradores que escreveram a acusação apontam como possíveis. Mas nenhuma destas decisões foi tomada. Em vez disso, Sandro e Márcia optaram por não socorrer Valentina e deixá-la deitada no sofá da sala, desde manhã até às 22h00. “Deixaram a menor entregue a si própria no sofá da residência, durante várias horas”, lê-se na acusação. Mais precisamente, cerca de 13 horas.
Durante o dia, Márcia foi várias vezes junto da enteada ver se ela ainda respirava. Numa delas, tapou-a com um cobertor. “Apesar disso, nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor” e optou por deixá-la “ao abandono” numa “morte lenta” sem que fizesse o que seria possível para dar à menor Valentina o socorro necessário”, diz a acusação.
“Indiferentes ao sofrimento intenso” da criança, Sandro e Márcia saíram de casa depois do almoço para ir à lavandaria e, depois ao final da tarde, à farmácia comprar leite para a filha mais nova de ambos, Carolina, uma bebé de sete meses. Foi durante a sua ausência que Raúl — filho apenas de Márcia e, por isso, só ‘irmão de criação’ de Valentina — passou pela sala e encontrou a menina de nove anos “a espumar pela boca”. Deu o alerta: ligou à mãe a pedir-lhe que viesse para casa o mais rápido possível. Passados poucos minutos, os arguidos chegaram a casa e aperceberam-se que Valentina tinha acabado de morrer. Mas a opção tomada foi a de esconder o cadáver da criança e encobrir os seus atos.
Casal trocou de roupa à criança e percorreu nove quilómetros até uma floresta para deixar o corpo. Madrasta não saiu do carro
Além de Raúl, de 12 anos, estavam também em casa as outras duas filhas do casal — Mariana, de 4 anos, e Carolina, de apenas sete meses — na altura em que o crime foi cometido. Por isso é que só depois das 22h00, quando todos eles já tinham ido dormir, é que Sandro e Márcia voltaram as suas atenções para Valentina, morta no sofá da sala.
Destaparam-na e despiram-lhe a t-shirt preta. Márcia foi buscar um pijama — umas calças pretas e uma camisola vermelha — e vestiu-lho com a ajuda de Sandro. Vestiram-lhe também um casaco azul, que fecharam até ao pescoço, detalha o MP. Colocaram o capuz do casaco na cabeça de Valentina e ataram-no com um lenço. Depois, Sandro pegou no corpo da filha ao colo, saiu de casa e desceu as escadas, descreve o MP.
Márcia, que seguia à sua frente, abriu a porta de trás do carro estacionado em frente à casa para que Sandro pudesse ali colocar o corpo da filha. Sandro entrou no veículo, sentando-se no banco ao lado do condutor, e Márcia foi a conduzir. A acusação descreve o caminho de nove quilómetros e quatrocentos metros, desde a casa no número 18 da Rua Gerónimo Ataíde, na Atouguia da Baleia, até uma floresta em Ferrel, onde viriam a deixar o cadáver.
A madrasta de Valentina permaneceu no carro. Foi Sandro quem saiu, pegou no corpo de Valentina ao colo e levou-o para o interior da floresta. Enquanto isso, Márcia arrancou com o carro “para que não suspeitassem que estavam a deixar Valentina ali”. Para que não suspeitassem que naquele momento, Sandro estava a depositar o corpo da filha no meio do mato. Que estava a “partir com as suas mãos um pequeno pinheiro que ali se encontrava” para cobrir o corpo da filha. E que depois, saiu da floresta em direção à estrada, onde ficou à espera que Márcia voltasse. Ela regressou “alguns minutos depois” e regressaram ambos a casa.
O que fizeram até ali foi mantido em segredo. No dia seguinte participaram o desaparecimento da Valentina à polícia. As “exaustivas buscas” envolveram mais de 400 pessoas e duraram quatro dias, escreve a acusação. Por isso, o Ministério Público pede também uma indemnização de cerca de 1.785 euros , que Sandro Bernardo e Márcia Monteiro devem pagar ao Estado Português, nomeadamente à GNR, uma vez que foram empenhados “vários recursos humanos e materiais”.
As 72 horas de buscas por Valentina: o crime e a investigação, passo a passo
Mas a menor só foi encontrada quando o próprio pai, já depois de a Polícia Judiciária ter suspeitas sobre a existência de um crime e da sua autoria, deu a indicação de onde estava o seu corpo. A criança viria a ser encontrada três dias depois, a 10 de maio, quando o caso abria telejornais e era notícia em todo o país.