Olá

866kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Oito minutos de convulsões, 13 horas de agonia e um "olhar de súplica". Como Valentina terá sido morta pelo pai e pela madrasta

AVISO

Este artigo contém linguagem e descrições que podem ferir a sensibilidade dos leitores

Após seis meses presos, pai e madrasta de Valentina foram acusados. O MP descreve a "morte lenta" da criança, como terá sido agredida, queimada com água a ferver e deixada no sofá até morrer.

    Índice

    Índice

Os gritos da irmã atraíram Raúl até à casa de banho. Mas quando o rapaz de 12 anos abriu a porta, Valentina já não gritava mais. Dentro da banheira, encharcada em água, estava a ter convulsões e tinha os olhos muito abertos — um “olhar de súplica”. À volta dela, o pai e a madrasta, Sandro e Márcia, agarravam-na pelos braços e davam-lhe bofetadas na cara na tentativa de a reanimar. Estava praticamente nua, apenas com uma t-shirt preta vestida.

O que Raúl viu não era suposto ter visto e Sandro apressou-se a mandá-lo para o seu quarto e a ordenar-lhe que ficasse calado, ameaçando-o que, se abrisse a boca, ficaria sem as irmãs. O rapaz obedeceu, sem poder imaginar que, momentos antes de ter ido à casa de banho, Valentina teria levado uma pancada tão forte na cabeça que lhe provocou uma hemorragia interna e fez com que caísse inconsciente na banheira. E que, antes disso, teria sido violentamente agredida com um chinelo e sufocada pelo próprio pai. Não podia imaginar nada disto até porque, momentos depois, Sandro foi ao seu quarto descansá-lo, dizendo-lhe que a irmã já estava a dormir.

Mas não estava. A manhã passou e, pouco depois do almoço, numa altura em que Sandro e Márcia não estavam em casa, Raúl foi encontrar Valentina deitada no sofá, tapada com um cobertor, a espumar pela boca. Sem poder imaginar o porquê, o rapaz de 12 anos ligou à mãe e pediu-lhe que viesse rapidamente para casa. Poucos minutos depois, Sandro e Márcia chegaram e, nesse momento, aperceberam-se de que Valentina tinha acabado de morrer.

A casa na Atouguia da Baleia onde terá ocorrido o crime (JOÃO PORFÍIRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Durante os dias que se seguiram, o que se passou dentro daquela casa na Atouguia da Baleia permaneceu um mistério. Do seu interior, saía apenas a informação de que Valentina, de 9 anos, tinha desaparecido a meio da noite sem deixar rasto. Mas em poucos dias, a Polícia Judiciária (PJ) conseguiu completar os capítulos de uma história já de si muito mal contada. Valentina não tinha desaparecido: tinha sido violentamente agredida dentro de casa e levada já morta pelo pai e pela madrasta para uma floresta a cerca de nove quilómetros — crimes que Sandro e Márcia acabariam por confessar, negando no entanto a intenção de matar a criança.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Agora, ao fim de seis meses presos, foram acusados pelo Ministério Público (MP) de um crime de homicídio qualificado, um crime de profanação de cadáver e outro de abuso e simulação de sinais de perigo, embora Sandro tenha sido também acusado de um crime de violência doméstica em relação à filha. O processo já não está em segredo de justiça e a acusação agora divulgada revela o que se passou dentro da casa e relata a “morte lenta” de Valentinadesde as 9h00 da manhã, quando foi agredida até, às 22h00, quando o seu corpo foi levado para a floresta. Isto e o que se segue é o que a investigação descobriu e descreve na acusação.

Pai e madrasta de Valentina acusados do homicídio da criança: “Deixaram a menor entregue a si própria”

Os “papelinhos” com conteúdo sexual e os supostos (e não provados) abusos sexuais do padrinho. Agressões começaram cinco dias antes do homicídio

Valentina estava há um mês e meio na casa do pai quando foi agredida pela primeira vez. Embora vivesse com a mãe no Bombarral, tinha ido para lá a meio de março “passar uma temporada” na sequência da pandemia da Covid-19. No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns “papelinhos” que teria trocado com colegas de escola e que, segundo a acusação do MP, teriam um conteúdo de natureza sexual.

No dia 1 de maio, pela manhã, Sandro confrontou a filha com uns "papelinhos" que teria trocado com colegas de escola e que, segundo a acusação do MP, teriam um conteúdo de natureza sexual.

Segundo o relato dos arguidos, foi depois de Valentina ter admitido ao pai que tinha sido ela a escrever os tais “papelinhos” que Sandro a terá ameaçado com violência: “Colocou uma colher de pau em cima da mesa da cozinha disse à filha que batia com ela se a mesma não falasse”. Depois, deu-lhe “diversas palmadas, com muita força” nas pernas, segundo o MP. Sandro acabou por ir para o seu quarto, deixando Valentina a fazer os trabalhos da escola na cozinha, com a madrasta. Mas, logo depois, foi chamado de novo à cozinha pela companheira porque a filha “tinha algo mais para lhe dizer”.

Da serenidade durante a buscas à postura derrotista na reconstituição do homicídio da filha. O comportamento do pai de Valentina

Valentina terá contado, então, aos dois que o tal padrinho “lhe dava presentes” e que tinha práticas sexuais com ela, segundo é descrito na acusação. Seguiram-se novas agressões: Sandro deu várias palmadas à filha, nas pernas, “com muita força” e “bateu-lhe nas mãos com a colher de pau”, deixando-lhe marcas no corpo que acabariam por ser detetadas na autópsia, realizada semanas depois, detalha o MP.

Esta tese apresentada pelos arguidos levou o MP a investigar também os eventuais crimes de abuso sexual que Valentina estaria, alegadamente, a ser alvo. Identificou quem era o tal padrinho, inquiriu várias testemunhas, mas não encontrou qualquer prova. Mais: o relatório da autópsia “não evidencia a existência de qualquer sinal de contacto/abuso sexual sobre a vítima”. Assim, o MP acabou por arquivar estas suspeitas — as suspeitas suscitadas pelo pai e que terão levado à morte de Valentina.

Valentina “implorou” para que o pai parasse, mas Sandro não parou: molhou-a com água a ferver e sufocou-a

Eram cerca das 9h00 da manhã de 6 de maio quando Sandro quis voltar a confrontar a filha sobre o mesmo assunto. Só que desta vez estava determinado a arrancar dela respostas mais concretas: queria saber qual a “natureza sexual” dos supostos abusos e “saber se tinha havido penetração”. Chamou-a, levou-a para a casa de banho, despiu-a e colocou-a na banheira, descreve o MP, ressaltando que Sandro fez “tudo isto” na presença de Márcia, sua companheira e madrasta da criança. E Valentina ali ficou, apenas com uma t-shirt preta vestida.

O pai de Valentina, Sandro Bernardo, no dia que foi presente a tribunal para primeiro interrogatório (ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR)

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Sandro sabia que a filha “detestava água quente” e por isso usou isso como ameaça: se Valentina não lhe contasse tudo sobre o tal “padrinho” de que falava, deitava-lhe água quente para cima. Mas Valentina não contou ao pai o que ele queria saber e o pai pegou no chuveiro, ligou novamente a água quente até começar a ferver.”Colocou-lhe água a ferver na região genital e inguinal, para assim a queimar e lhe infligir maior dor, usando o chuveiro para o efeito”, lê-se na acusação. Só desligou o chuveiro quando a criança “implorou para ele parar”.

Maria João, Daniel, Joana, Vanessa. Eram crianças quando a família com quem viviam lhes roubou a vida

Valentina continuava sem abrir a boca e Sandro começou a dar-lhe “vários murros” na cara, tórax, costas e pernas. Estava “enfurecido”, diz o MP. As agressões depressa escalaram de intensidade e Sandro acabou mesmo por “apertar o pescoço” de Valentina “com as mãos, “apertando-o e sufocando-a”. Apesar dos “gritos e súplicas” da filha, o arguido ainda a agrediu com os chinelos que menina tinha calçados, “marcando-lhe a pele com o formato desse chinelo”, lê-se.

As agressões depressa escalaram de intensidade e Sandro acabou mesmo por "apertar o pescoço" de Valentina "com as mãos, "apertando-o e sufocando-a".

Ao fim de cinco minutos de agressões — cinco minutos em que a madrasta de Valentina esteve sempre presente —,  a menina de nove anos começou a gritar, despoletando no pai uma reação pior do que todas aquelas que tivera até então, segundo o MP. Foi nesta altura que Sandro lhe deu uma pancada na cabeça com tanta força que lhe “provocou uma hemorragia interna” e fez com que Valentina “caísse na banheira” — “tudo na presença da arguida”, volta a lembrar o Ministério Público na acusação.

“Entregue a si própria” durante 12 horas, Valentina teve uma “morte lenta”. Alerta foi dado pelo irmão

Sandro levantou a filha da banheira, mas Valentina começou a “abrir muito os olhos”, a fletir “um pouco as pernas, começando a desfalecer”. O pai agarrou novamente na filha pelos braços, mas a menor começou a ter convulsões. Sandro ainda lhe deu bofetadas na cara, para tentar que ela reagisse, mas não teve sucesso. Márcia percebeu que a enteada “tinha os olhos abertos e que estava a olhar fixamente para ela, com um olhar de súplica”, descreve o MP na acusação.

Ainda assim, Márcia não lhe deu a ajuda que precisava, segundo o MP. Em vez de chamarem uma ambulância ou de a levarem a um hospital, o casal optou por pegar em Valentina e levá-la para a cozinha. Ali, a madrasta pôs uma cadeira no centro daquela divisão da casa, por baixo de uma claraboia, que abriu. Depois, Sandro sentou-se na cadeira com a filha ao colo. Após cerca de sete a oito minutos em que Valentina esteve a ter convulsões, ao colo do pai, a criança acabou por ficar inanimada. Foi neste momento que, na tese da investigação, Sandro e Márcia perceberam que Valentina podia morrer.

A madrasta de Valentina, Márcia Monteiro, no dia que foi presente a tribunal para primeiro interrogatório (ANDRÉ DIAS NOBRE/OBSERVADOR)

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Podiam ter ligado para o 112 ou até procurar algum vizinho ou alguém que fosse a passar na rua e que os pudesse ajudar. São algumas hipóteses que os procuradores que escreveram a acusação apontam como possíveis. Mas nenhuma destas decisões foi tomada. Em vez disso, Sandro e Márcia optaram por não socorrer Valentina e deixá-la deitada no sofá da sala, desde manhã até às 22h00. “Deixaram a menor entregue a si própria no sofá da residência, durante várias horas”, lê-se na acusação. Mais precisamente, cerca de 13 horas.

Durante o dia, Márcia foi várias vezes junto da enteada ver se ela ainda respirava. Numa delas, tapou-a com um cobertor. “Apesar disso, nada fez para chamar ajuda e socorrer a menor” e optou por deixá-la “ao abandono” numa “morte lenta” sem que fizesse o que seria possível para dar à menor Valentina o socorro necessário”, diz a acusação.

“Indiferentes ao sofrimento intenso” da criança, Sandro e Márcia saíram de casa depois do almoço para ir à lavandaria e, depois ao final da tarde, à farmácia comprar leite para a filha mais nova de ambos, Carolina, uma bebé de sete meses. Foi durante a sua ausência que Raúl — filho apenas de Márcia e, por isso, só ‘irmão de criação’ de Valentina — passou pela sala e encontrou a menina de nove anos “a espumar pela boca”. Deu o alerta: ligou à mãe a pedir-lhe que viesse para casa o mais rápido possível. Passados poucos minutos, os arguidos chegaram a casa e aperceberam-se que Valentina tinha acabado de morrer. Mas a opção tomada foi a de esconder o cadáver da criança e encobrir os seus atos.

Casal trocou de roupa à criança e percorreu nove quilómetros até uma floresta para deixar o corpo. Madrasta não saiu do carro

Além de Raúl, de 12 anos, estavam também em casa as outras duas filhas do casal — Mariana, de 4 anos, e Carolina, de apenas sete meses — na altura em que o crime foi cometido.  Por isso é que só depois das 22h00, quando todos eles já tinham ido dormir, é que Sandro e Márcia voltaram as suas atenções para Valentina, morta no sofá da sala.

Foi durante a sua ausência que Raúl passou pela sala e encontrou a menina de nove anos "a espumar pela boca". Deu o alerta: ligou à mãe a pedir-lhe que viesse para casa o mais rápido possível.

Destaparam-na e despiram-lhe a t-shirt preta. Márcia foi buscar um pijama — umas calças pretas e uma camisola vermelha — e vestiu-lho com a ajuda de Sandro. Vestiram-lhe também um casaco azul, que fecharam até ao pescoço, detalha o MP. Colocaram o capuz do casaco na cabeça de Valentina e ataram-no com um lenço. Depois, Sandro pegou no corpo da filha ao colo, saiu de casa e desceu as escadas, descreve o MP.

Márcia, que seguia à sua frente, abriu a porta de trás do carro estacionado em frente à casa para que Sandro pudesse ali colocar o corpo da filha. Sandro entrou no veículo, sentando-se no banco ao lado do condutor, e Márcia foi a conduzir. A acusação descreve o caminho de nove quilómetros e quatrocentos metros, desde a casa no número 18 da Rua Gerónimo Ataíde, na Atouguia da Baleia, até uma floresta em Ferrel, onde viriam a deixar o cadáver.

A madrasta de Valentina permaneceu no carro. Foi Sandro quem saiu, pegou no corpo de Valentina ao colo e levou-o para o interior da floresta. Enquanto isso, Márcia arrancou com o carro “para que não suspeitassem que estavam a deixar Valentina ali”. Para que não suspeitassem que naquele momento, Sandro estava a depositar o corpo da filha no meio do mato. Que estava a “partir com as suas mãos um pequeno pinheiro que ali se encontrava” para cobrir o corpo da filha. E que depois, saiu da floresta em direção à estrada, onde ficou à espera que Márcia voltasse. Ela regressou “alguns minutos depois” e regressaram ambos a casa.

Sandro a fazer a reconstituição do crime, já depois da detenção (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que fizeram até ali foi mantido em segredo. No dia seguinte participaram o desaparecimento da Valentina à polícia. As “exaustivas buscas” envolveram mais de 400 pessoas e duraram quatro dias, escreve a acusação. Por isso, o Ministério Público pede também uma indemnização de cerca de 1.785 euros , que Sandro Bernardo e Márcia Monteiro devem pagar ao Estado Português, nomeadamente à GNR, uma vez que foram empenhados “vários recursos humanos e materiais”.

As 72 horas de buscas por Valentina: o crime e a investigação, passo a passo

Mas a menor só foi encontrada quando o próprio pai, já depois de a Polícia Judiciária ter suspeitas sobre a existência de um crime e da sua autoria, deu a indicação de onde estava o seu corpo. A criança viria a ser encontrada três dias depois, a 10 de maio, quando o caso abria telejornais e era notícia em todo o país.

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.