Está escuro em cima do palco. Um homem, com uma mala, atravessa o chão coberto de terra e pedras. De um lado, uma cadeira florida, gasta. Do outro, o vazio da cena que parece não ter fim. A meio, agarra-se à mala que traz, como se guardasse toda a sua vida. E depois, sai. Entram dois homens, escondidos sob uma gabardina bege. Saem. Um homem, despido, com uma outra mala, deita-se no meio da cena, coberto por ela. Deixa-se estar assim, quieto, enquanto a Sinfonia n.º 4 de Arvo Pärt continua a tocar.
É assim que começa a nova peça da coreógrafa Olga Roriz, Síndrome — sem grandes adereços, espaço ou tempo –, numa época que pode ser a de agora, a de ontem, a de amanhã. A escolha cabe ao espectador: “O que o criador faz é dar o local para as pessoas imaginarem“, diz Olga antes do início do ensaio, na sexta-feira passada, o segundo feito já no Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa, onde a peça ficará em cena de 30 de junho a 2 de julho. “Podem começar!”, grita de seguida, do lado da plateia, com a mão apoiada numa das centenas de cadeiras forradas a veludo vermelho.
Além dos quatro homens, há outras três personagens — três mulheres, que começam também por surgir sozinhas. Perdidas, as sete personagens (interpretadas por sete bailarinos da Companhia Olga Roriz) vão tentando encontrar-se num espaço destruído que tanto pode ser a esquina de uma rua como uma casa em ruínas. Aproximam-se, afastam-se e partilham memórias antigas — por vezes impercetíveis, como um sussurro, por vezes audíveis como um grito. “Aqui era um quarto, aqui o roupeiro, tudo meticulosamente arrumado, a cama de casal, o canto da secretária, o candeeiro de renda à cabeceira“, recorda um dos bailarinos, enquanto atravessa o palco. “As roupas em cima da cadeira e os sapatos todos misturados…” Era assim a sua casa antes da guerra a destruir e a transformar numa ruína. Do tempo anterior a isso, sobrou-lhe apenas uma mala onde trás as memórias de quando era feliz.
Apesar do tom pesado de Síndrome, a guerra — que não tem obrigatoriamente de ser o conflito na Síria de Antes Que Matem os Elefantes, peça anterior de onde o novo espetáculo de Olga Roriz surgiu — já terminou. Mas o que é que sobrou? Haverá futuro? Essas são duas das perguntas que a peça deixa no ar. Síndrome não dá respostas, nem tem pretensões de as dar, como explicou a coreógrafa no final do ensaio da passada sexta-feira, feito ainda sem a luz de palco, em conversa com o Observador. O objetivo é mostrar, acima de tudo, que o fim de uma grande calamidade não significa o fim de todo o mal. Há coisas que ficam connosco para sempre.
Ouvia-a dizer, no início do ensaio, que o que um criador faz é dar o local para as pessoas imaginarem.
Sim [risos]. É o que eu acho mesmo. Acho que um dos papéis dos criadores, encenadores, pintores também, não tem só a ver com a arte do espetáculo, é espicaçar a imaginação do público. Pô-lo a imaginar. Na dança cada um faz a sua leitura. Não é preto no branco. Não é como a palavra, os textos, em que o que se está a ouvir é o que se está a ouvir e temos quase todos a mesma perceção. Sim, acho que essa é uma das missões da arte — é quase fazer de cada pessoa um artista, no sentido de pô-la a imaginar. Os artistas também imaginam, não interpretamos ou criamos apenas. A primeira parte é a que tem a ver com a imaginação.
É aí que tudo começa?
É aí que tudo começa, claro. [A imaginação] gera emoções no público, às vezes sentidos. Aqui vai cheirar a terra [risos]. Mas sim, é engraçado, porque podemos estar a olhar para uma coisa que até pode não existir. A minha produtora estava a dizer: “Ah, estava a ver uma árvore por trás dela”. “Ótimo! Vê a árvore que quiseres, mas não faz falta nenhuma.” Eventualmente outra pessoal qualquer vê um prédio, uma cadeira, uma cama — vê o que quiser. Portanto é bom essa abertura, para que as pessoas possam fazer as suas viagens.
Este espetáculo parte de Antes Que Matem os Elefantes. Podemos dizer que é uma continuação?
Para mim é uma continuação do outro, no sentido em que queria fazer um espetáculo que continuasse aquele. O tema não é exatamente o mesmo. O outro partiu da guerra da Síria e era uma coisa muito realista. Passava-se num apartamento em Alepo — sabia-se que era em Alepo, que eles eram sobreviventes. Uma das coisas que fiz antes de começar esta peça, Síndrome, foi um questionário sobre variadíssimas coisas onde pedi aos bailarinos para me fazerem um resumo dos Elefantes. Isso foi muito engraçado porque descobri a dramaturgia que cada um fazia — porque cada intérprete tem a sua dramaturgia além da que a própria coreógrafa ou encenador possa fazer. E esse apartamento, na realidade, é unicamente do Francisco [Rolo]. O Francisco está nos Elefantes numa situação em que aquele apartamento era o apartamento onde ele vivia e que foi destruído. As outras pessoas não, estão ali abrigadas, mas ele sim — aquele apartamento era como se fosse o apartamento dele.
Nessa conversa, nesse resumo, comecei a perceber o que é que poderia ir buscar como memórias de cada um para trazer aqui para o Síndrome, e essas foram as memórias que ficaram. Houve textos que fui tirando. Foram bons enquanto lá estiveram, enquanto nos deram pistas, mas depois fui tirando porque achei que não faziam falta, que nos levavam para outros sítios. Esse do Francisco [dito pelo próprio durante a peça] achei pertinente — sobre este espaço que já não é nada, um espaço de nenhures, um tempo que não se sabe. Um tempo antes, um tempo depois — não se sabe que tempo é este. É um sítio de construção interior, não tem nada a ver com a reconstrução das nossas casinhas. Vai além da situação da guerra. [Tem a ver com os] Momentos depois de grandes acidentes, sejam eles quais forem — situações de perdas de pessoas, de acidentes naturais, como aconteceu agora [em Pedrógão Grande]. É um momento em que tens de te refazer a ti própria, tens de refazer a tua vida, os teus afetos, as tuas relações com os outros. É quase um recomeçar de um sítio qualquer. Para mim era um bocadinho isso, o momento depois de uma guerra daquelas, que não se percebeu se acabou ou não acabou, em que as pessoas começam a recuperar. Depois de perder tudo, por onde é que se começa? Deve-se começar de um sítio quase zero. Perdeu-se tudo, não há relação. Perder a nossa casa, o nosso cantinho, deve ser uma coisa horrível. Isto por um lado, e depois acho que há muita gente que, com esta crise toda, perdeu a vontade de viver.
E que já não tem nada a que se agarrar.
Nada. Como dizia no outro dia uma amiga minha que veio ver [a peça]: “Pois, até aquele sinal de pôr a terra dentro dos bolsos… A única coisa que temos nos bolsos é terra”. Nós começámos a criar e a fazer improvisações — que é o meu método habitual de trabalho — nessa zona e, por isso, acaba por se construir um espetáculo como este. Não é que ele seja down, mas é um bocadinho sem glória. Não é inglório, mas é sem glória. Não tem grandes picos, não tem grandes paixões, também não é de grandes lamentos…
E também não é de grandes esperanças.
Não. Quando me perguntam: “Mas há aqui alguma esperança”? Não, propositadamente. Não foi feito para isso. Inclusive nesta última parte, em que há muita cumplicidade masculina e estas mulheres [com baldes de água]. Ao contrário dos Elefantes, onde a água era para purificar, para limpar, aqui é para sujar, para se misturar com a terra, para ficarem feias. Aqueles vestidos, que talvez já tenham sido importantes, a memória de qualquer coisa, já não interessam. Enfim, podem ser muitas imagens, também não queria dar muitas leituras porque cada um pode ter as suas. Mas até ali podia haver um momento: “OK, elas estão-se a vestir, vestidos bonitinhos, o que é que vai acontecer agora aqui”? E, de repente, aquilo fica pior do que estava antes. É sensual, é belo, de uma certa forma, é um grotesco, mas não avança muito. Acho que era mesmo isto que queria para um ponto final de um espetáculo sobre a guerra — um espetáculo coreografado, mais do que muitos que já fiz. Geralmente são muito teatrais, têm pequenas histórias, e aqui achei que não queria história nenhuma.
Mas cada personagem tem a sua história.
Sim, cada um tem a sua história, o seu percurso, o seu passado. É óbvio, eu é que não queria voltar a contar a história ou ser percetível. É quem assiste à peça que faz a história. Aqui voa-se mais, como diz o [realizador húngaro] Béla Tarr num texto que também vou pôr no programa. Ele diz que as histórias já estão fora de moda e que o que lhe interessa é voar de uma situação para a outra, e ele é realmente um dos realizadores que mais fala na falta de esperança do ser humano, na miséria — a miséria física, mental, emocional. Foi por isso que eu fui buscar as coisas dele e esse texto. E gosto muito dele como realizador. Mas pronto, a zona é um bocadinho essa. Eu não tenho a distância do espetáculo, mas tenho a sensação de que isto podia acontecer numa hora e 20 minutos, na realidade. Muitas vezes digo: “Ah, este espetáculo dura três dias, este espetáculo dura 24 horas”, apesar de só durar hora e meia. Este podia passar-se naquele cruzamento de uma rua, de um largo, onde aquelas pessoas se encontram, desencontram, estão sozinhas, não estão sozinhas… Sinto que é um bocadinho noturno e invernal [os bailarinos surgem, em alguns momentos, com casacos de inverno]. Aquelas malas não querem dizer grandes viagens nem grandes deslocações, mas as pequeninas coisas que se têm, as memórias. A pequenina vai ser perceber que são os vestidos daquelas três mulheres, mas a outra não se sabe.
E a terra? Não aparecia na outra peça.
A terra não vem dos Elefantes, porque nos Elefantes era só as pedras, estas pedrinhas pequeninas. A terra começou a aparecer com os detritos, e eu achei que queria pó, uma coisa mais de cidade destruída onde, eventualmente, essa terra pode aparecer. A terra que está debaixo dos prédios que ruíram. E aqueles livros apareceram mesmo no início, quando pedi aos bailarinos para trazerem os objetos que quisessem e eu trouxe a minha coleção da [editora] Europa-América [risos]. E é um bocadinho o reduto ali da cultura — os livros, a palavra que anda para ali ainda. Será que aquele homem tem a mala cheia de livros? Não se sabe, não sabemos.
A palavra é, aliás, uma presença constante ao longo da peça. Mais do que em outros dos seus trabalhos.
Sim, seja percebendo ou não percebendo [o que se diz]. Mas sim, há uma espécie de moaning [“lamento”] interior que está sempre ali, às vezes enquanto falam uns com os outros. No outro dia, alguém me disse uma coisa muito bonita também: todos os duetos são falsos porque é como se um deles fosse um fantasma. Achei tão engraçado… Talvez tenha a ver com o primeiro [bailarino], que está morto, e ela vai tentar reanimá-lo, mas também não consegue. E os Elefantes tinham muitos fantasmas. Pelo menos para três bailarinos aquilo não existia — só existia na cabeça deles. E um deles achava que era um fantasma, que tinha morrido naquele sítio, que estava ali com aquela gente e que ia ficar com aquela gente. Por isso é engraçado voltar a falar nos fantasmas.
Esta peça é um ponto final na Síria?
Na Síria, Síria, talvez. Agora, nunca é um ponto final na problemática da guerra. Este espetáculo é um sítio que não queremos muito ver, mas que está lá. Portanto, não é alegre — há aqui uma tristeza, também.
Acha que é importante dar esse sítio a conhecer? Mostrar que ele existe?
Acho que é, sobretudo por causa do sítio de onde veio, por causa daquilo que se propõe querer dizer. Acho que é importante. Não é só dar a parte das bombas — e depois? Acabou a guerra, como é que é? É um trauma! São gerações e gerações que primeiro que se levantem…! Deixei-me ir um bocado por isso. Deixei-me ir completamente, não foi um bocadinho, e nem quis espetacularizar isto. Podia ter aqui umas pessoas, e deitavam-se no chão e faziam espetáculo — no sentido de fazer espetáculo mesmo! Até a própria música do Arvo Pärt [Sinfonia nº4], que é um lamento contra o Putin, também foi uma coisa que quis mesmo ter. A Sara Carinhas, que está a ajudar com a parte dramatúrgica, disse a certa altura que achava que o espetáculo, por ser tão fragmentado, no sentido em que há um solo, há um dueto, há um solo, há um dueto, eventualmente devia ter uma banda sonora bastante unida. “Pois, tens razão, mas que compositor é que eu vou agora pedir para me fazer uma música?” Tinha começado os ensaios com Arvo Pärt há seis meses, e depois pensei: “Porque não? Porque não usar assim, uma sinfonia?” Só tem 35 minutos, mas depois com o João [Rapozo] e com outras músicas que eu tinha, consegui ir cosendo. Ela vai aparecendo — está por baixo e depois está no fim também. Se não se estivermos muito atentos, temos a noção de que estivemos uma hora e 20 a ouvir aquela sinfonia, mas não estivemos. Mas uniu.
É o fio condutor?
Sim, é aquela cama ali por baixo. Portanto, acho que se conseguiu. E eu gosto muito do Arvo Pärt — usei-o no Pedro e Inês e várias outras vezes. Isso também ajuda a ter este peso enorme — mesmo que se queira sair dali, não há nada que embeleze, não há nada que leve para outro sítio. A música também está ali a massacrar — está mais para cima, está mais para baixo, é mais ténue, mas está sempre ali. Não dá para acordar para outra coisa, fica-se ali.
Disse que Antes Que Matem os Elefantes era o primeiro espetáculo de que gostava completamente. Ainda sente isso?
Não tem tanto a ver com gostar, foi a estética, o estilo, a cor, o sítio, o lado teatral que aquilo tinha. Gosto muito daquele sítio. Aqui não o fiz, fugi, e quis mesmo fugir. Mas apetece-me, apetece-me aquilo.
Quer lá voltar?
Sim, mas não necessariamente àquele sítio — a um espaço real. Aliás, esta [peça] tem mais palavra do que tinha a outra. A outra tinha uma canção lá no meio! O meu lado teatral não tem a ver com textos — com sub-textos, talvez. Mas sim, houve ali qualquer coisa que estava no sítio certo ou no sítio onde imaginei. Que eu, às vezes, imagino antes de começar — uma coisa, algo –, e depois aquilo realizou-se. E só o vi no primeiro ensaio geral, com luz. Este aqui também tenho uma imagem, uma coisa! Gostava muito de ter aqui esse nenhures.
Síndrome estreia no dia 30 de junho, sexta-feira, no Teatro Municipal São Luiz. Está em cena até dia 2 de julho, domingo. No sábado, há uma conversa com a equipa técnica depois do espetáculo. As sessões são sempre às 21h, à exceção de domingo (às 17h30). Os bilhetes custam entre 12 e 15 euros.