A estratégia de Marta Temido no combate político a Carlos Moedas está a ser contestada internamente. A antiga ministra da Saúde e atual líder da concelhia do PS/Lisboa tem orientado o partido para uma oposição mais moderada, de forma a evitar qualquer tentativa de vitimização do atual presidente da Câmara de Lisboa. Mas há quem, dentro do PS/Lisboa, vá exigindo um combate mais incisivo, um discurso mais fechado, com ideias e propostas definidas para a cidade, capaz de mostrar as diferenças que separam o projeto socialista da coligação Novos Tempos.
“Acho que Marta Temido se compromete pouco e põe pouca coisa em cima da mesa”, diz ao Observador uma fonte do PS na Câmara Municipal de Lisboa. “Mesmo no discurso no congresso, começou cheia de força a atirar a Carlos Moedas e depois não retomou a linha de ataque, limitou-se a uma frase. Podia, nem que fosse, pôr as peças na mesa para que outros [quadros locais] fizessem o combate por ela”, lamenta-se.
No 24.º Congresso Nacional do PS, que decorreu em Lisboa e que teve a antiga ministra como anfitriã, Temido subiu ao palco para defender o legado de António Costa e Medina à frente da autarquia (uma “governação autárquica do PS gravou a marca de políticas progressistas e de uma visão humanista”) e para criticar o “triste efeito da governação da direita”, considerando que Lisboa “revela hoje uma evidente degradação do seu funcionamento”.
Ao Observador, um autarca socialista em Lisboa lamenta a falta de articulações entre os vários atores. “Não existe coordenação entre o PS/Lisboa, as juntas de freguesia e a autarquia”, assinala. A prova, defende, está patente na “forma como se votam coisas diferentes na Assembleia Municipal e na Câmara”. “Na mesma semana, os vereadores da Câmara chumbaram a carta e a Assembleia Municipal aprovou um voto a apelar a que se vote favoravelmente”, sinaliza a mesma fonte.
Para alguns elementos do PS em Lisboa, no entanto, o discurso de Temido ficou aquém do esperado e foi mais uma oportunidade perdida de pressionar Carlos Moedas. Ao Observador, a antiga ministra relativiza as críticas e descarta a responsabilidade que lhe é imputada em relação ao combate político que o PS deve travar em Lisboa. “Não sou candidata autárquica. Numa entrevista em outubro fui questionada sobre se gostava de ter funções autárquicas e disse que sim, mas isso não quer dizer absolutamente nada. Há quem não tenha vida além da política, mas eu tenho, sou administradora hospitalar, vim para a política como ministra da Saúde em 2018 e fiz-me militante do PS em 2021, mas a minha vida não é a política.”
Marta Temido, insistentemente apontada como possível adversária de Moedas em 2025 — a própria já assumiu que “gostava de ser autarca” — diz não ter “qualquer pretensão ou ambição política” e defende que, enquanto líder da concelhia do PS/Lisboa, “tem uma função sobretudo de coordenação interna da linha política e não da responsabilidade política dos seus vários órgãos”.
“É a vez do executivo dos Novos Tempos de governar”
A socialista aproveita também para destacar o “contexto muito específico” em que assumiu funções enquanto presidente da concelhia do PS. Sucedeu a Davide Amado depois de o presidente da Junta de Freguesia de Alcântara ter sido acusado pelo Ministério Público de estar no centro de um esquema de viciação de contratos por ajusto direto que lesou a Santa Casa de Misericórdia. Em julho de 2023, Temido foi a votos e teve 99% — seis meses depois, no entanto, começam a surgir as primeiras críticas internas.
Marta Temido é a prioridade da concelhia PS/Lisboa para integrar lista de deputados
Várias fontes dentro do PS asseguram que, na chegada à presidência da concelhia, a posição de Temido ficou imediatamente clara — a ordem é para que se “aprove o que Moedas apresente” para Lisboa. A ideia é “viabilizar”, “esperar que Moedas incumpra” e, daqui a dois anos, quando a campanha para as eleições autárquicas arrancar, “apontar o dedo” ao que não foi feito, mesmo com a colaboração inequívoca dos socialistas. Nem todos os socialistas em Lisboa, todavia, concordam com a abordagem na oposição “moderada” aos Novos Tempos.
Desde logo, porque a estratégia da antiga ministra coloca em xeque os vereadores socialistas em funções. Como indica ao Observador uma fonte do PS na Câmara Municipal de Lisboa, daqui a dois anos, e verificando-se a candidatura da ex-ministra, Marta Temido “vai querer apresentar a sua visão de cidade”, que será, seguramente, diferente da de Carlos Moedas. Ora, continua a mesma fonte, assinar de cruz as decisões do atual executivo, como parece pretender a antiga ministra, terá um efeito perverso: quando chegar a campanha eleitoral, vai estar a criticar aquilo que o PS na autarquia validou.
Além disso, entre os elementos do PS na autarquia, há quem vá lamentando que Temido, cuja principal e única experiência política é de gabinete ministerial, não envolva mais gente na tomada de decisões. “Naquilo que é estratégico, o PS local não pode deixar de ter as suas ideias. O processo tem de ser muito mais consensualizado do que decidido por um”, argumenta a mesma fonte.
Em contrapartida, Marta Temido entende que o papel da concelhia do partido se fica pela “harmonização das linhas políticas” e coloca a responsabilidade do lado dos vereadores, deputados municipais e autarcas, que “têm de responder perante quem os elegeu”. “A presidente de concelhia tem uma função sobretudo de coordenação interna do partido e não da responsabilidade política dos seus vários órgãos”, argumenta.
A líder do PS/Lisboa não assume diretamente ter optado pela tal linha moderada em relação ao executivo de Carlos Moedas, mas assinala a importância de “respeitar a legitimidade democrática de quem foi eleito”.”É a vez do executivo dos Novos Tempos de governar a cidade”, recorda. “Os lisboetas nunca perdoariam o PS se não respeitássemos aquela que foi a sua escolha.”
A dirigente socialista não tem dúvidas de que os vereadores e deputados municipais têm assumido o seu papel, mesmo que com “estilos variados, uns mais agressivos, outros mais pausados”. “Não considero que este membros estejam a defraudar as expectativas dos lisboetas, acho que estão a fazer o seu papel de oposição, embora compreenda que haja quem tenha outra posição”, salvaguarda.
Evitar a vitimização de Moedas
Noutra perspetiva, um outro dirigente socialista relativiza o desconforto interno que se vai sentido em reação a Marta Temido e à estratégia da atual líder da concelhia do PS/Lisboa. Manteve-se a responsabilidade e a serenidade necessária para que exista um adulto na sala. “Se o PS votar contra a não captação do IRS dos lisboetas, por exemplo, as pessoas vão receber zero e isso é grave”, defende.
“O PS é um partido plural e com opiniões para todos os gostos. Ao contrário de outros partidos, não as abafamos”, continua este dirigente socialista, reconhecendo, ainda assim, que há quem defenda “que o PS deveria ter uma postura mais aguerrida e mais combativa” a Carlos Modas, e outros que vão pendido uma “postura mais colaborativa com Carlos Moedas”. “Cada cabeça sua sentença”, remata-se.
Já sobre a forma como a oposição é recebida pelo atual presidente da autarquia, este dirigente socialista argumenta que o líder social-democrata é exímio na arte da “vitimização“, mesmo com a viabilização socialista da maioria das propostas, pelo que “se de um momento para o outro o PS começasse a votar contra”, o efeito seria precisamente aquele que se quer evitar com a estratégia prosseguida por Temido e pelos órgãos locais — colaborar e apaziguar para não dar armas futuras à recandidatura dos Novos Tempos.
Temido não se prendeu a Pedro Nuno nem a Carneiro. E manteve tudo em aberto
Marta Temido é, até ao momento, o nome mais falado no PS para se candidatar à Câmara de Lisboa e o novo secretário-geral do PS já afirmou que daria uma “excelente” autarca. Na sua intervenção no congresso socialista, a ex-ministra assegurou que o partido “está unido” com Pedro Nuno Santos, colocando-o ao lado de históricos líderes socialistas, de Mário Soares a António Guterres. “Eles representam o socialismo em que acreditamos”, apontou a socialista que, em 2021, quando ainda era ministra teve honras de receber o cartão de militância das mãos do então primeiro-ministro.
Foi António Costa que a nomeou como ministra e o ato simbólico abriu caminho para a consolidação da independente nos quadros do partido. Ao Observador, um autarca do PS lembra que, no recente ato eleitoral interno, após a demissão de António Costa, Temido pôs-se fora do debate, “na expectativa de ver o que acontecia” e “não quis apoiar ninguém”, nem José Luís Carneiro nem Pedro Nuno Santos, mesmo que praticamente “todo o secretariado [de Temido] tenha apoiado” o ministro da Administração Interna do atual Governo demissionário.
A neutralidade nas últimas diretas evitou irritantes com Pedro Nuno Santos e faz de Temido um trunfo para todas as eventualidades. Pedro Nuno Santos pode olhar para a antiga ministra da Saúde como possível candidata a deputada, a Bruxelas ou — e esse parece ser o cenário mais provável nesta altura — como possível candidata à Câmara Municipal de Lisboa. Resta saber se vai conseguir continuar a segurar o aparelho do partido na capital.
Ainda assim, Marta Temido acabou por ser aprovada como primeira prioridade para integrar a lista de candidatos a deputados pelo círculo eleitoral de Lisboa pela Comissão Política da Concelhia socialista da capital. A votação desta sexta-feira, no entanto, esteve longe de ser unânime: o conjunto de nomes, encabeçado por Marta Temido, foi aprovado por maioria, com 30 votos a favor, mas houve 12 votos contra, dois nulos e um branco.