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Esmagou os suspeitos da tentativa de golpe de Estado de 15 de julho, ordenou a detenção sumária ou o afastamento de mais de 50 mil opositores e decretou o estado de emergência no país nos próximos três meses. Como é que o presidente Recep Tayyip Erdogan conseguiu tornar-se tão poderoso? Tudo aconteceu em sete passos.
Uma infância devota
Recep Tayyip Erdogan começou a estudar o Corão ainda pequeno, numa mesquita de Kasimpasa, o bairro de trabalhadores humildes onde o pai se estabeleceu quando trocou a costa do Mar Negro por Istambul. A família, marcadamente religiosa, educou os filhos de acordo com os preceitos do Islão.
Erdogan brincava na lama, lançava papagaios e jogava ao berlinde, ao mesmo tempo que aprofundava uma inabalável fé em Alá. Como tinha um ar sério, os outros miúdos chamavam-lhe Irmão mais velho, mas quando chegava a casa beijava os pés ao pai, em sinal de respeito. Ahmet era tão austero que quando soube que o filho dizia palavrões o pendurou no teto pelos braços. O castigo serviu de emenda ao rapaz.
Recep tinha apenas sete anos, mas nunca se esqueceu do dia em que o primeiro-ministro Adnan Menderes foi enforcado. O governo fora eleito de forma democrática e mantivera-se fiel ao laicismo do Estado, embora fosse mais tolerante com a religiosidade do povo do que os seus antecessores. Mas, ao fim de uma década, o regime acabou por se tornar repressivo e Menderes foi deposto por militares dispostos a honrar os princípios estabelecidos por Kemal Ataturk, o pai da pátria. O golpe de Estado foi bem acolhido entre a população — a pena de morte não. “Alguns ficam tristes com coisas como estas e desistem. No meu caso, esta tristeza fez despertar o meu interesse pela política”, disse Erdogan ao New York Times, em 2003.
A extrema devoção do miúdo acabou por conduzi-lo a uma escola mais adequada ao seu perfil, depois de um incidente com um professor de religião que lhe sugeriu que, à hora da oração, se ajoelhasse sobre papel de jornal em vez de o fazer num tapete. Recep recusou-se: não era digno rezar daquela maneira. O professor propôs então ao pai que mudasse o filho para uma escola imam-hatip, estabelecimentos de ensino que dedicavam (e ainda dedicam) até um terço do tempo letivo ao estudo da variante sunita do Islão. Esses anos marcariam de forma decisiva a maneira de Erdogan estar na política.
Militância islâmica
Concluído o ensino secundário, Recep Erdogan ingressou no curso de Gestão da atual Universidade de Marmara — chegaram a circular rumores de que o seu diploma final de curso seria falso, mas ele sempre negou. Na altura, a política turca assistiu ao surgimento do Partido de Salvação Nacional, liderado por Necmettin Erbakan, que assumia as raízes islâmicas e defendia o direito de os muçulmanos expressarem livremente a sua fé. O anterior partido de Erbakan fora banido por apelar ao fundamentalismo religioso.
Para Erdogan, no entanto, nada disto era um excesso. Identificava-se totalmente com o quadro de valores daquele académico que conheceu nos tempos da faculdade. O primeiro passo para se envolver na política foi tornar-se membro da Associação Nacional de Estudantes Turcos, um movimento anticomunista.
Depois, naturalmente, juntou-se ao Partido de Salvação Nacional (PSN). Era tão eloquente que em 1976 foi eleito presidente da secção de juventude da delegação do bairro de Beyoglu, em Istambul. Daí à liderança dos jovens do partido em toda a cidade foi um instante.
O PSN acabaria também por ser proibido depois do golpe de Estado de 1980, mas renasceria uns anos mais tarde com o nome de Partido da Prosperidade. Erdogan admirava tanto Erbakan que lhe beijava a mão. Além disso, deu o nome do mentor a um dos seus quatro filhos (dois rapazes e duas raparigas). A admiração parecia ser recíproca e o líder confiou ao discípulo o comando da distrital de Istambul. Juntos, criaram uma estrutura partidária atenta aos problemas sociais e que tinha como base o apoio dos muçulmanos e dos mais necessitados.
Erdogan considerava esse eleitorado demasiado curto. Quando foi escolhido como candidato do partido às autárquicas de Istambul, entrou na campanha disposto a ganhar, usando todas as armas que tinha à mão, sobretudo o magnetismo irresistível que o caracterizava. “Levou a campanha a bares, discotecas e até a bordéis, e informatizou as sedes de campanha. Fez das mulheres as obreiras da sua organização e chamou homens laicos para ajudar”, escreveu o New York Times. Enquanto Erbakan aparecia como um líder espiritual etéreo, os eleitores olhavam para Erdogan como um deles.
O primeiro autarca de Istambul com uma visão pró-Islão
Para grande espanto dos setores laicos da população, Recep Erdogan conquistou a presidência da Câmara de Istambul em 1994, fazendo crescer o receio de que o poder dos islamistas estivesse a expandir-se fora das mesquitas. Erdogan mostrou de imediato que era um gestor com objetivos muito claros: pôs em marcha um plano para melhorar o abastecimento de água à cidade, melhorou a rede de transportes, mandou limpar as ruas e plantar árvores um pouco por todo o lado. Ao mesmo tempo, procurou aproximar-se da população e criou linhas informativas municipais. Os resultados apareceram.
Porém, nem tudo foi bem recebido pela população. Quando proibiu o consumo de álcool nos edifícios da autarquia, chegou a temer-se que fosse fazer o mesmo em todos os restaurantes da cidade. O medo revelou-se infundado. O pior foi quando o partido pediu a Erdogan que fizesse um comício em Siirt, no distrito natal da sua mulher. Nesse dia, o autarca leu um poema antes de falar às massas. A quadra dizia: “As mesquitas são as nossas casernas,/ as cúpulas nossos capacetes,/ os minaretes as nossas baionetas,/ e os fiéis os nossos soldados.”
Ainda que o teor do discurso que proferiu em seguida fosse totalmente diferente, o poema enfureceu os militares, desde sempre defensores da herança de Ataturk. E Erdogan acabou condenado a dez meses de cadeia por incitar ao ódio religioso. Cumpriu quatro, entre março e julho de 1999. Ficou ainda proibido de voltar a exercer cargos públicos.
O caminho até chegar a primeiro-ministro
Quem pensou que Recep Erdogan tinha morrido para a política enganou-se. No dia em que entrou na cadeia, tinha uma multidão à porta para o saudar. Durante esses quatro meses, Erbakan, o seu mentor, nunca o visitou. Houve, no entanto, uma figura que assumiu um papel de grande relevo nos tempos do cárcere. Chamava-se Cuneyd Zapsu, era neto de um famoso poeta curdo e um empresário de peso no ramo dos frutos secos, com importantes ligações a organizações internacionais. Erdogan não lhe pediu dinheiro: queria apenas que ele o ajudasse ao sair do isolamento em que se encontrava, agora que todos o tinham abandonado.
Os dois encontraram-se várias vezes e Zapsu conseguiu convencer Erdogan a afastar-se de Erbakan, a deixar cair o discurso contra o Ocidente e a criar um novo partido que separasse política e religião. Foi isso que Recep Erdogan fez quando saiu da cadeia. Saiu do Partido da Prosperidade e, em 2001, fundou o Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), um movimento democrático que tanto acolhia muçulmanos como ateus, agnósticos e elementos de outros credos. Com ele, estavam Abdullah Gül e Cuneyd Zapsu, entre outros.
Em apenas 16 meses, o AKP venceu as eleições legislativas, recolhendo 34% dos votos e 363 dos 550 assentos parlamentares de Ancara. Em novembro de 2002, pouco dias depois da vitória eleitoral, Recep Erdogan parecia mais o CEO de uma empresa ocidental do que um líder político que estivera preso por incitar ao fundamentalismo religioso. Um perfil publicado nessa altura pela revista Time descrevia-o como um homem elegante, de fato azul escuro e gravata vermelha. O escritório onde trabalhava assemelhava-se ao de um banqueiro e não havia à vista qualquer sinal da sua dedicação a Alá. “Sou muçulmano, mas acredito no Estado laico”, disse então. Vozes mais céticas suspeitaram sempre deste discurso moderado vindo de alguém com convicções religiosas tão marcadas.
Apesar de Erdogan ser o presidente do partido, foi Abdullah Gül que assumiu o cargo de primeiro-ministro, já que ele continuava impedido de concorrer a cargos públicos por causa do incidente do poema. A questão foi ultrapassada quando o AKP alterou a Constituição de forma a que Erdogan pudesse voltar a exercer em pleno a atividade política.
Convenientemente, pela mesma altura, foram descobertas na cidade de Siirt algumas irregularidades no processo eleitoral que acontecera meses antes, dando a Erdogan a possibilidade de se candidatar a um lugar no Parlamento. Ainda antes de assumir a chefia do Executivo, em março de 2003, o presidente do AKP foi recebido em Washington pelo então presidente George W. Bush. A invasão do Iraque estava iminente e o apoio da Turquia era fundamental para viabilizar o esforço de guerra americano. O Parlamento turco recusou-se a autorizar a cedência de bases militares à Força Aérea americana, mas Erdogan permitiu que os aviões usassem o espaço aéreo do país.
A chefia do Governo
O primeiro mandato de Erdogan no Governo ficou marcado por reformas constitucionais e legislativas em prol dos direitos humanos e das minorias que, ao que tudo indicava, podiam fazer da Turquia um estado mais democrático. Era a época do namoro com a União Europeia e o primeiro-ministro estava disposto a mostrar que tinha para com os cristãos e os membros de outras minorias religiosas uma atitude muito mais benevolente do que outros políticos muçulmanos. A Europa parecia atenta à mudança, de tal maneira que a Comissão Europeia convidou Ancara a dar início às conversações que deveriam permitir a entrada do país na UE. As negociações encalharam no ceticismo de alguns Estados-membros, que fizeram depender a adesão da Turquia de mudanças visíveis em matéria de direitos humanos. O acordo nunca foi possível.
Decidido a resolver os graves problemas financeiros do país, Erdogan tomou medidas para reanimar a economia turca com o intuito de liquidar o resgate que o anterior governo pedira ao FMI. Apesar de várias vozes terem sugerido o reforço do empréstimo, o primeiro-ministro sempre recusou essa solução. Ao mesmo tempo, apostou na melhoria dos cuidados de saúde e das infraestruturas.
Em 2005, procurou aproximar-se das minorias curdas. Em primeiro lugar, permitiu a transmissão de programas no idioma falado por este povo — o que, até então, era proibido. Afirmou também que só um regime mais democrático, e não a repressão, seria capaz de amenizar as diferenças históricas que até então tinham existido. O PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão) ordenou às suas tropas que cessassem fogo, na esperança da resolução do conflito.
Na frente externa, em maio desse ano, Erdogan encontrou-se em Israel com o primeiro-ministro Ariel Sharon e sugeriu que a Turquia fosse o mediador para os conflitos no Médio Oriente. Durante a visita, referiu-se ao anti-semitismo como um crime contra a Humanidade. O primeiro contacto pareceu promissor e o clima manteve-se ameno nos primeiros tempos. Mais tarde, uma série de acções de parte a parte tornariam as relações entre os dois países bastante tensas e só em junho de 2016 foi anunciado um acordo de reconciliação entre ambos.
Se é verdade que o primeiro mandato de Erdogan coincidiu com um período de maior acalmia, a verdade é que chegou ao fim por pressão dos militares que se recusavam a aceitar a nomeação de Abdullah Gül, ex-primeiro ministro, para Presidente. Consciente da enorme popularidade que o AKP conquistara desde que chegara ao poder, Erdogan convocou eleições em 2007. Ganhou com o apoio de turcos, curdos e liberais, que lhe garantiram quase 47% dos votos. Então, com o poder reforçado, nomeou Gül e deu início a um novo mandato muito diferente do primeiro.
Em 2008, 275 pessoas foram constituídas arguidas por suspeitas de pertencerem a uma rede secreta que teria a intenção de derrubar o governo de Erdogan. Entre os envolvidos no chamado caso Ergenekon estava o general Iker Basboug, anterior Chefe das Forças Armadas, que viria a ser condenado a prisão perpétua. Os arguidos negaram sempre a existência de qualquer rede e a oposição encarou a onda de detenções como uma caça às bruxas. Já este ano, 2016, o Tribunal de Recurso da Turquia reverteu todas as condenações, por considerar que a existência da rede clandestina nunca ficou provada em julgamento.
Os relatos de perseguições a opositores, de ataques à liberdade de imprensa e de ameaças contra as vozes críticas tornaram-se cada vez mais frequentes. Por outro lado, Erdogan passou a defender cada vez mais os valores islâmicos em público (como Presidente, diria que nenhum casal muçulmano deve usar contraceptivos e que as mulheres que não têm filhos são deficientes).
Em 2013, por exemplo, o AKP fez revogar uma lei com mais de 90 anos que impedia as funcionárias públicas de usarem véu enquanto estivessem a trabalhar. Os defensores do laicismo viram a medida com preocupação. Para alguns muçulmanos, era apenas uma medida que promovia a liberdade religiosa.
Em paralelo, houve outra questão que se tornou notória: em situações de exceção que pudessem afetar a ordem pública, surgiam rumores de que o governo impunha limitações às redes sociais, como o Twitter, o Facebook e o YouTube. Em 2013, Erdogan reconheceu que considerava o Twitter uma “ameaça à sociedade.” Mais tarde, disse a uma delegação do Comité para a Proteção do Jornalismo que a cada dia era “mais contra a Internet”.
O Presidente de 77 milhões
Ao fim de 11 anos como primeiro-ministro e sem poder candidatar-se a um quarto mandato como chefe do Governo, em 2014, Recep Erdogan decidiu concorrer às primeiras eleições presidenciais diretas da Turquia. Venceu com quase 52% dos votos. No primeiro discurso depois da eleição, comprometeu-se a ser o presidente dos 77 milhões de turcos e não apenas daqueles que o tinham escolhido. No entanto, não abdicou de citar o Corão: “Não cederemos àqueles que atacam o nosso apelo à oração!”, disse o recém-eleito Presidente. “Allahu Akbar!”, respondeu a multidão.
Para os milhares de pessoas ali reunidas, aquele homem era muito mais do que um Presidente: era o herói que permitira ao povo recuperar uma herança islâmica que fora silenciada pelas reformas de Ataturk, em nome da modernização e laicização do Estado.
Erdogan disse desde o primeiro momento que queria exercer o seu mandato de Presidente até ao limite das competências previstas pela lei. E deixou claro que contaria com o seu partido para implementar um sistema presidencial no país. A vitória do AKP nas eleições de novembro de 2015 poderia facilitar essa ambição, já que, para isso, é necessário alterar a constituição. Em teoria, essa mudança só será possível com o voto de 330 dos 550 deputados do Parlamento. O AKP conquistou 317 mandatos. Entretanto, em maio desde ano, o primeiro-ministro Ahmet Davotoglu demitiu-se do cargo e foi substituído por Binali Yildirim, fundador do partido e aliado de longa data de Erdogan.
Depois dos acontecimentos de 15 de julho, no entanto, não restam dúvidas sobre quem manda, realmente, na Turquia. Se a passagem para um sistema presidencial já despertava receios relativamente ao autoritarismo de Erdogan, a forma como esmagou a tentativa de golpe militar e mandou deter, suspender ou afastar mais de 50 mil pessoas causam muitos receios sobre o futuro da democracia no país.
Desde que assumiu o cargo de Presidente, Erdogan leva ainda mais a sério a promoção da cultura islâmica. Uma das medidas que tem vindo a pôr em prática é o favorecimento da proliferação de escolas religiosas, incluindo imam-hatips, estabelecimentos onde uma parte do currículo é dedicada ao ensino da religião, semelhantes àquele onde o próprio Erdogan estudou.
Quando o AKP chegou ao Governo, em 2002, havia 650 mil alunos inscritos nestas escolas em toda a Turquia. No final de 2014, segundo a revista Newsweek, o valor estava perto de um milhão — 9% de todos os estudantes entre os 10 e os 18 anos. O Ministério da Educação defendeu-se sempre dizendo que se tratava apenas de uma resposta à procura crescente por este tipo de escolas.
No início do século XX, a reforma de Ataturk proibira as madrassas e remetera o ensino religioso para os estabelecimentos privados. O pai da pátria estava convicto de que a escola pública devia ser laica. Erdogan discorda. “Queremos criar gerações piedosas”, disse num congresso de jovens militantes do AKP. Apesar de, em setembro de 2012, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem ter condenado a Turquia por obrigar os alunos do segundo ciclo a frequentar uma aula de religião por semana, um Conselho para a Educação apoiado pelo governo recomendou que esse tempo de estudo do Islão fosse alargado: em vez de começar no segundo ciclo, deveria iniciar logo no primeiro ano de escolaridade.
A implacável purga depois da tentativa de golpe
Na noite de 15 de julho de 2016, um grupo de militares pôs em marcha uma tentativa de golpe de Estado para derrubar Recep Erdogan, que provocou a morte a 294 pessoas. Numa noite, o Presidente garantiu que tinha retomado o controlo da situação. Não esperou para pôr em marcha um plano implacável destinado a esmagar quem ousara fazer-lhe frente.
Acusou os seguidores do clérigo Fetullah Gülen, exilado nos Estados Unidos, de estarem por detrás da revolta. Gülen, por seu lado, nega ser o mentor do golpe. Dado o amadorismo das operações, há quem coloque a hipótese de elas terem sido forjadas pelo próprio regime para justificar a purga que fez desde então. Os líderes internacionais apelaram a Erdogan para não usar este pretexto como forma de consolidar o poder.
Erdogan parece estar pouco preocupado com a opinião da comunidade internacional. Desde o golpe de Estado decretou suspensões e mandou deter pessoas indiscriminadamente, decapitando alguns dos mais importantes setores da sociedade, entre os quais o militar, o judicial e o educativo.
Numa entrevista concedida à CNN, Erdogan admitiu que não exclui a hipótese de condenar à morte os “terroristas” que considera responsáveis por um “claro crime de traição.” Para “erradicar a organização implicada na tentativa de golpe de Estado” e “remover a ameaça” rapidamente, Erdogan anunciou que o Parlamento turco aprovou o estabelecimento do estado de emergência no país nos próximos três meses. Os deputados votaram ainda a favor de uma suspensão parcial da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Agora está tudo nas mãos de um homem que nasceu pobre e se fez sultão.