Como se tem tornado mais evidente nos últimos tempos, o controlo das narrativas históricas tem vindo a condicionar a percepção e o entendimento que temos dos fenómenos políticos. São recorrentes quer a aplicação de filtros ditos “presentistas” que “corrigem”, isto é, manipulam, os acontecimentos passados fazendo-os passar pelo crivo do que hoje é imposto como o “politicamente correcto” quer aplicando-lhes a simplificação reducionista que tudo resume a um jogo de “bons e maus”. E amiúde, quer as tónicas do discurso quer o léxico acabam por influenciar não só os críticos ou detractores de um determinado posicionamento político como por vezes, pela ignorância grassante, até os seus mais encomiásticos defensores.
Nas vésperas das comemorações dos 50 anos do golpe militar de 25 de Abril de 1974, é habitual justificá-lo ainda com a repulsa popular ao regime do Estado Novo que durou 41 anos, de Abril de 1933 a Abril de 1974. Há mesmo nos “sectores burgueses” quem não hesite em adoptar o discurso dos “progressistas” mais extremistas que abarcam num único compasso histórico a situação política que resultou do golpe militar do 28 de Maio de 1926 acrescentando-lhe 7 anos. E assim se chegam aos habituais 48 anos de “salazarismo” quando não de “fascismo”, escamoteando o facto de Salazar, enquanto decisor político, nada ter a ver com aquele golpe militar nem ter sido fascista (ou sequer simpatizante)… a não ser pelos critérios de propaganda estabelecidos nos 2.º e 4.º Congresso da Internacional Comunista. Afinal, grande parte do que iria ficar conhecido como Reviralho nasceu do PREC (Processo Revolucionário em Curso) em que se digladiaram os principais sectores políticos apoiantes do golpe militar de 1926.
A 28 de Maio daquele ano eclodia em Portugal um golpe castrense, como expressão manu militari de “uma grandiosa aspiração colectiva que abraçava a nação de lés-a-lés e a crucificava num desejo sublime de resgate”, como escreveu António de Cértima. Para ele, o 28 de Maio “não resultou daquelas tenebrosas elaborações das alfurjas secretas dos partidos; não foi uma insubordinação militar, foi um levantamento nacional; não foi uma agressão, foi um protesto”. Sobre a aparente apatia inicial do movimento operário organizado, farto da prepotência dos “democráticos”, de entre os diversos grupos e personalidades que apoiaram, ab initio, o movimento do 28 de Maio, incorrendo eventualmente nalguma redução, é possível considerar três grandes linhas de força.
Um conjunto, bebendo na onda europeia dos nacionalismos autoritários, convictamente anti-demoliberal e com laivos anti plutocráticos e anti oligárquicos, julgava necessária a criação de um movimento de massas e de uma organização miliciana que suportassem popularmente uma solução do tipo bonapartista. Os que se encaixavam neste figurino, tinham consciência da inevitável erosão de um poder de natureza exclusivamente militar pelo que haveria que disputar aos “avançados” o controlo do operariado, de modo a criar uma base de sustentação que lhes permitisse lançar-se à conquista integral do Estado. Procuravam recrutar entre os veteranos da Grande Guerra traumatizados pela “guerra sem nexo”, entre os que repudiavam a ofensiva estatal antirreligiosa, no seio dos que ansiavam pela ordem e paz social, nos herdeiros da solução sidonista, ou pura e simplesmente nos nacionalistas que culpavam o parlamentarismo oligárquico pelo caos do país. Pelos seus contornos e praxis era a solução mais próxima do fascismo.
Outro veio político, talvez no extremo oposto, era partilhado exactamente pelos defensores do demo-liberalismo constitucional que, apenas por razões circunstanciais e de praxis política, haviam ficado fartos da hegemonia iníqua e perversa dos “democráticos” jacobinos que tinham vindo a eternizar-se no poder. Para eles, a Situação a sair do golpe só fazia sentido como um estado de excepção, capaz de permitir uma correcção “constitucionalista”, que até admitiam que fosse tendencialmente presidencialista, que pudesse garantir um rotativismo sério e transparente, com o balancé do poder a oscilar periodicamente entre o seu próprio bloco e, eventualmente, os “democráticos”. Eram socialmente conservadores e politicamente liberais, sendo deles exemplo a ULR – União Liberal Republicana de Francisco da Cunha Leal. Após a derrota política no processo revolucionário para que evoluíra o 28 de Maio, seria da futura dissidência desta corrente que sairia o maior esteio do que viria a ficar conhecido por Reviralho.
O terceiro projecto organizava-se à volta de uma eclética solução de compromisso que não sentia ser necessário, nem sequer desejável, uma definição ideológica clara; bastava um ideário simples e inequívoco que funcionasse como menor denominador comum aglutinador. A sua natureza era pretensamente apolítica e mais de carácter cívico e social. O cimento de união sobre as potenciais divisões ideológicas era o “superior interesse nacional”, interpretado por um chefe que supriria, pelo seu carisma patriótico, a ausência do contrato social permanente forjado habitualmente no debate dialéctico dos representantes eleitos, considerado pernicioso pelo seu historial recente. Aceitavam a estruturação do Estado com recurso ao modelo corporativo de inspiração católica e, na gestão governativa, de uma forma pragmática, privilegiavam as valências e as competências técnicas sobre as estritamente políticas.
A harmonização destes três vectores ou tendências nem sempre foi fácil, levando a um ranger, por vezes surdo, mas noutras ocasiões bem ruidoso, das engrenagens constituintes do regime de excepção instaurado pelo golpe-pronunciamento. Mas para todos, por distintas, e por vezes até opostas, razões, era necessário forçar a mudança: os “regressistas” para o parlamentarismo puro, os defensores da solução mais autoritária para o verdadeiro poder marcial cesarista, e os mais moderados ou “centristas”, alicerçados na classe média, para uma enformação constitucionalizante do regime mas sem a desordem e a anarquia associadas ao passado recente. Além das evidentes contradições conceptuais, foi esta divisão que, de certo modo, explica o fracasso da formação de um movimento civil de sustentação do regime. Afinal, o regime ditatorial saído do pronunciamento de 28 de Maio parecia ter sido a praça pública de muitos equívocos.
Comandantes, marechais e a Tuna de Coimbra
No meio desse panorama que lhe era estranho, o homem que mais viria a marcar o século XX português – Salazar – surge na política, pela mão não da solução fascizante mas sim da oposta, a dos liberais de Cunha Leal que tinham em José Mendes Cabeçadas a sua figura de proa. Com efeito, Cunha Leal, na sua obra Coisas de Tempos Idos: As Minhas Memórias assume a responsabilidade pela recomendação do jovem professor de Coimbra (e igualmente de Mendes dos Remédios) ao comandante Cabeçadas. Juntamente com Manuel Rodrigues Júnior, como eram professores da universidade conimbricense e haviam merecido a simpatia dos oficiais sublevados mais jovens, que eram ou haviam sido seus alunos, ficaram jocosamente conhecidos na imprensa como a “Tuna de Coimbra”.
Quando se torna pública a constituição do novo Executivo, muitos oficiais que esperavam estar representados no elenco governamental reagem mal à nomeação de civis. No quartel da Amadora, onde se instalara a 4 de Junho, Gomes da Costa reúne-se com os chefes militares afectos ao movimento, num cenário de assembleia revolucionária. E é lá que a “Tuna de Coimbra” se avista com Gomes da Costa, antes de tomar posse. Depois do encontro, Salazar, alegando um precário estado de saúde e invocando “conselho do médico”, resolve voltar para o Mondego enquanto os outros dois decidem ir para Lisboa e assumir o cargo.
Mas, pressionado por Mendes dos Remédios, Salazar resolve aceitar a nomeação como ministro das Finanças. A 11 de Junho, a notícia é pública e no dia seguinte, Salazar, depois de se ter avistado com Cabeçadas, resolve tomar posse do cargo. Mas a intuição que o levara a afastar-se para Coimbra, receoso do que a instabilidade do clima político poderia trazer, parecia dar razão aos seus receios e hesitações. O ambiente em Lisboa era febricitante e por todo o lado havia suspeitas, manobras de bastidores, intrigalhada. Cabeçadas, herói do 5 de Outubro, resistia, não se resignando a alinhar pela orientação maioritária do movimento militar, que exigia um corte abrupto e inequívoco com o passado político recente. “Sem reparar”, o Comandante “encontrava-se dentro de uma Revolução a representar os inimigos dessa mesma Revolução” como afirmava Cértima.
A 14 de Junho, Gomes da Costa desenvolve, em pleno Conselho de Ministros, um exercício de poder. Em nome do Exército, apresenta e submete à discussão um programa de doutrina e acção política, sob o título “Estatuto Político da Revolução Nacional”, em que se afirmavam as linhas mestras do pensamento regenerador do movimento. Mendes Cabeçadas reage com notório desconforto ao que considera um despropósito e uma desautorização; não só a linha ideológica que constitui a espinha dorsal do documento se afasta bastante do seu republicanismo clássico como o tom e a oportunidade da apresentação lhe parecem resultar de uma calculada atitude de desafio pessoal. A situação tornou-se tensa e melindrosa.
Elevando a parada, assumindo-se como verdadeiro dono da revolução, o chefe do movimento militar enviou a Cabeçadas, na manhã de 17 de Junho, uma carta em que lhe retirava o apoio, acusando-o de se ter deixado manipular e manietar por influências hostis ao movimento revolucionário”. Gomes da Costa concluiria o Diktat afirmando: “pelo que me vejo assim dolorosamente coagido a desistir da colaboração de V. Exa..no Governo, cuja presidência assumo a fim de evitar a discórdia que já principiava a fermentar”. Ou seja, o ministro prescindia da colaboração do chefe do Executivo e, na qualidade de chefe militar supremo, passava a assumir a liderança do mesmo. Numa situação altamente volátil e melindrosa, a tensão da espera foi grande, mas a meio da tarde Cabeçadas, “tendo verificado a impossibilidade de resistir à imposição” de Gomes da Costa, respondeu que deixava o Governo, acatando, aparentemente, a inusitada ordem de despejo.
Junto dos outros ministros que entretanto convocara para Sacavém, o General justifica o recurso ao braço-de-ferro com a oposição e obstrução sistemáticas de Cabeçadas às iniciativas do movimento. A “Tuna de Coimbra” fez chegar a Gomes da Costa a sua posição. Numa carta entregue por Manuel Rodrigues, e que parece ter sido escrita por Salazar, fazem saber ao General que lhe “depunham nas mãos os lugares que lhes haviam sido confiados, aguardando a solução definitiva do problema político”. Mendes dos Remédios e Salazar regressam a Coimbra e às aulas na Universidade; Manuel Rodrigues Júnior decide à última hora ficar em Lisboa para ver o que iria acontecer.
Salazar comentará pouco depois: “Não se pode fazer nada em política com o brilho das espadas ou o esgrimir das durindanas, se lhes faltar o brilho das concepções e o firme esgrimir do bom senso, em momentos difíceis e incertos como eram aqueles em que se encontrava a Nação. Então, logo no dia 17, fiz a minha mala, tomei o primeiro comboio para Coimbra e fui dar lições aos meus alunos. Regressou comigo o meu ilustre colega Doutor Mendes dos Remédios. Gomes da Costa ainda me mandou chamar pelo telefone, mas respondi que ia dar uma lição aos meus rapazes e depois faria uma ligação para a Presidência. Liguei, mas disseram–me que já tinham ministro das Finanças. Ai minha Nossa Senhora, que desta já estou livre!”
A continuidade dos militares
Em qualquer movimento revolucionário triunfante, os primeiros tempos são sempre gastos no arrumar das facções e no apuramento de um chefe capaz de sobreviver aos outros. No comando executivo da revolução nacional ir-se-ão sucedendo vários protagonistas apoiantes do golpe. E o primeiro a cair fora o comandante Mendes Cabeçadas, acusado pelos outros de deslealdade por manter ligações activas com os próceres do poder deposto, enredado que estava nas teias republicanas tecidas pelos “filhos da viúva”, designação simbólica da Maçonaria. Mas, mais do que questões de protagonismo ou circunstanciais, o que os separava era sobretudo o que para cada um deles representava a essência do movimento militar. Quando Cabeçadas, a 1 de Junho de 1926, fora ao encontro de Gomes da Costa em Coimbra, nas manifestações públicas de concórdia dos dois líderes ficaram bem explícitas, paradoxalmente, as divergências de fundo que os separavam.
Enquanto o velho general, apesar da forma adventícia como aderira ao movimento, repudiava na íntegra o passado recente “da canalha que arrastou o país à situação em que se encontra”, para Cabeçadas o levantamento militar fora para repor a “genuinidade” das instituições “desrespeitadas pelos maus políticos que têm monopolizado o poder”. Para ele, ligado aos liberais constitucionais, a “coisa” tinha sido mais um golpe de Estado, cirúrgico e reparador. Para Manuel Gomes da Costa, a intervenção dos militares era em si mesma uma solução de continuidade, um corte revolucionário que exigia uma nova ética referencial e novas instituições. A sua linha de actuação política misturava a afirmação cesarista, tão cara aos círculos integralistas, com uma vertente republicana de inspiração social radical.
Contudo, o abstruso processo revolucionário que saíra do 28 de Maio faria a sua segunda vítima de peso, desta vez o próprio Gomes da Costa. Ao forçar uma remodelação, com o intuito de afastar alguns ministros conservadores do seu gabinete, acabaria ele mesmo por ter de se demitir perante o bloco de resistência formado por quase todos os outros membros do Governo. Estes tinham sido instigados discretamente por Sinel de Cordes, o verdadeiro cabecilha da facção conservadora do movimento. Na repressão que se seguiu, o periódico A Revolução Nacional, criado como órgão do sector mais bonapartista dos apoiantes de Gomes da Costa, com o tenente Armando Pinto Correia como director nominal (o verdadeiro parece ter sido Rolão Preto, sob os pseudónimos de Plures e Pluribus), foi suspenso, tendo sido detidos os seus responsáveis. Francisco Rolão Preto viu a partir daí a sua intervenção política impedida, censurada ou boicotada. O mesmo aconteceu a outros simpatizantes do Integralismo Lusitano e ao fascista Francisco Homem Christo (Filho), que entretanto regressara do exílio em França para voltar a ser expulso, agora pela gente da Situação.
A errática actuação de Gomes da Costa parecia incapaz de assegurar qualquer rumo programático, coerente e consistente à grande aventura da Revolução Nacional. Depois da autêntica trapalhada em que ele próprio se metera, o impulsivo general tentou contar espingardas que o apoiassem; quando percebeu que não conseguia reunir quase nenhumas rendeu-se à evidência. E a tropa elegia como novo líder e chefe do Executivo António Óscar de Fragoso Carmona, um conservador oficial de Cavalaria com velhas ligações aos círculos “livres-pensadores”.
Congregados face a um mesmo objectivo, a maioria dos oficiais do Exército e mesmo da Marinha, muitos deles da geração que havia participado na Grande Guerra e que se tinham sentido defraudados pelo logro dos governos de inspiração afonsista, apoiara sem rebuço a sublevação do 28 de Maio. A oficialidade estava farta dos políticos, a quem responsabilizava pelo atropelo das regras das promoções e colocações através do descarado favorecimento de amigos e correligionários e pela promoção da indisciplina nas fileiras. E estava agora atenta às manobras de deturpação do “pensamento que levara o Exército a efectuar o movimento que acabava de triunfar, e de ficar o Governo do País entregue a indivíduos com os mesmos vícios políticos e morais de que temos sido vítimas”.
Ideologia, estabilidade e poder
Mas para muitos a questão do regime traduzia-se mais num interregno do que numa abrupta solução de continuidade, como sempre fizeram questão de relembrar e mostrar, comemorando com pompa e circunstância todas as efemérides ligadas ao memorial republicano, nomeadamente o 5 de Outubro. Nem durante os períodos ditatoriais instituídos a seguir ao 28 de Maio, nem durante o Estado Novo que lhes sucedeu, as referências republicanas seriam questionadas. A título de exemplo, é de realçar que quer o monumento ao Marquês de Pombal, velha aspiração da Maçonaria, quer o de homenagem ao grande tribuno republicano e carbonário António José de Almeida foram inaugurados com pompa e circunstância pelo Estado Novo, em 13 de Maio de 1934 e 31 de Dezembro de 1937, respectivamente. E não houve alteração significativa de efemérides nem de toponímia urbana, viária ou monumental ao contrário do que aconteceria após Abril de 1974.
Contudo, além do objectivo circunstancial, não havia entre os golpistas e entre os seus apoiantes qualquer identidade ideológica capaz de dar consistência e estabilidade política mínima ao novo poder. Carmona acabava por corresponder a uma determinada linha de força que pretendia reunir consequentemente o papel autoritário e firme das Forças Armadas com as posições do republicanismo conservador, apoiado pela maioria dos interesses económicos. Mais um guardião do que um aspirante a ditador, o novo líder gozava de prestígio em alguns círculos maçónicos e permitia que, do ponto de vista ideológico, tudo ficasse em aberto. Tanto poderia ocorrer um regresso à ordem constitucional anterior ao golpe, eventualmente com alguma correcção musculada, como a fundação de um novo sistema político.
Todavia, grupos mais radicais, em que pontificavam os chamados “tenentes do 28 de Maio” em que muitos deles eram igualmente estudantes universitários, procuravam impor um caminho mais enérgico e fracturante. Para eles, Carmona, embora prestigiado, era essencialmente um oficial “palaciano”, tolhido “pela sua natural fidalguia”. Pouco depois da subjugação da revolta militar “regressista” de Fevereiro de 1927, o tenente Assis Gonçalves afirmou na presença do vitorioso ministro da Guerra, Passos e Sousa, em quem muitos julgavam poder encontrar o condottiere que lhes faltava: “Temos o braço erguido, a espada ao alto, mas falta-nos uma cabeça que nos comande; temos uma vontade deliberada mas falta-nos um chefe que a dinamize”.
O dossier mais premente com que os executivos portugueses há muito se debatiam era o descalabro das contas públicas, sufocadas por um serviço da dívida contraída essencialmente pelos governos de domínio “democrático” para financiar a nossa entrada forçada na Grande Guerra. O ministro das Finanças, Sinel de Cordes, pretendia contratar o empréstimo da avultada soma de 12 milhões de libras esterlinas. Estava convencido de que com esse dinheiro poderia equilibrar a balança de pagamentos, manter a estabilidade do Escudo e promover obras de fomento sem ter de forçar o equilíbrio orçamental. Mas a questão do empréstimo externo estava a tornar-se no pomo da discórdia no seio da Situação. E os jovens tenentes não queriam o velho João Ludovice Sinel de Cordes nas Finanças, que, como comentava Cunha Leal, “tinha alçado as despesas públicas ao nível do exagero”. Preferiam o comandante Filomeno da Câmara, académico de prestígio, ou em alternativa, apesar de civil, Salazar, o jovem professor de Coimbra, que Cabeçadas trouxera efemeramente para o Governo e de que muitos tinham sido alunos em Coimbra.
Além de Oliveira Salazar, com uma série de artigos publicados no Novidades, entre 30 de Novembro e 21 de Dezembro de 1927, também Cunha Leal analisou a questão, criticando publicamente as diligências de Sinel de Cordes, nomeadamente através de uma carta que dirigiu a Carmona e da qual O Século se fez eco. Na missiva, Cunha Leal afirmava que “o empréstimo seria sempre uma humilhação e um risco”, criando uma perigosa vulnerabilidade pela excessiva dependência externa em que o país se iria colocar; um pretexto há muito esperado para «nos roubarem os domínios coloniais, património sagrado que herdámos dos nossos maiores».
Salazar, no princípio de Janeiro de 1928, retomaria o assunto no Novidades com mais um artigo sobre a questão do empréstimo externo e a política financeira do Governo. Dos artigos anteriores, no meio de algumas críticas a Sinel de Cordes, ainda se podia depreender que, por princípio, era favorável à obtenção do empréstimo, embora realçasse que havia que acautelar que as condições da sua aceitação não implicassem qualquer ingerência nos assuntos internos de Portugal por parte de países ou instituições estrangeiras. Com o artigo que publicou a 3 de Janeiro de 1928, Salazar enquistou-se nas questões estritamente financeiras e da sua análise pode já deduzir-se o repúdio pelo empréstimo, sem que antes se procedesse ao equilíbrio orçamental e ao saneamento da moeda.
O general Artur Ivens Ferraz, que fora nomeado a 5 de Janeiro de 1928 ministro das Colónias após a morte inopinada do anterior titular, João Belo, substituiu nas Finanças, interinamente, um esgotado Sinel de Cordes. E foi Ivens Ferraz quem recebeu nos dias seguintes, em Lisboa, os peritos da Sociedade das Nações (SdN) que vieram negociar a concessão do empréstimo. Em entrevista à comunicação social, o economista Louis Paul-Dubois, integrante da comissão técnica, afirmara de forma desabrida que “em muitos portugueses há uma grande ilusão. Não viemos aqui dar nada a Portugal. Viemos para ver se é solvente ou não. Quem tem de pagar os erros do passado e os descalabros do presente são os próprios portugueses”. Três dias depois, Ferraz partiu para Genebra à frente de uma ponderosa delegação que mereceria de Rocha Martins o jocoso comentário de que “eram financeiros em demasia para tão ruinosas finanças”, chefiados por um general “querendo viver bem com os republicanos e fugindo dos monárquicos”.
Autoridade e inflexibilidade
Entre a oficialidade que sustentava o regime persistia a incerteza quanto às verdadeiras capacidades quer do titular das Finanças quer do seu substituto interino para marcar o rumo da recuperação das contas públicas. E os quartéis-generais tinham começado a auscultar a oficialidade sobre a questão do empréstimo, através de Notas-Consultas. Em Caçadores 5, o tenente Horácio Assis Gonçalves, convidado a pronunciar-se pelos seus camaradas afirmara:
“Lemos nos jornais que, dia-a-dia, se estão a fazer financiamentos a empresas que se diz estarem à beira da falência […]. Ora se o empréstimo agora pretendido se destina a isto, ou seja, a cobrir deficits, financiar empresas falidas, pagar vencimentos em atraso ou a aumentá-los, então será imediatamente absorvido em pura perda, e constituirá mais um indesejável encargo, para nós e para os vindouros, e mais uma miserável vergonha de consentir em nossa casa o ‘controlo’ de uma comissão estrangeira de três membros para administrar as receitas consignadas a esse empréstimo.”
Óscar Carmona acumulava as funções de chefe do Executivo com as de Chefe do Estado, desde o último semestre de 1926. Na sua primeira manifestação de tentativa de legitimação popular, o poder saído do 28 de Maio entendeu por bem sufragar a ocupação da chefia da Nação e para isso foram convocadas eleições para 25 de Março de 1928. Realizado o sufrágio, o general contou com os votos dos inquestionáveis apoiantes da Ditadura, dos nacionalistas, de muitos militantes da União Liberal Republicana e mesmo de parte significativa dos votantes do Partido Democrático de António Maria da Silva. Tendo recebido 761.730 votos, Carmona seria proclamado Presidente da República a 15 de Abril e com esse acto formal teve início o período da chamada Ditadura Nacional. Na tomada de posse, ilustrando o que atrás dissemos sobre o ecletismo da terceira via do movimento militar do 28 de Maio, Carmona discursou, dizendo: “Só peço a Deus que me dê a felicidade de ver reconciliada, em breve, numa perfeita unidade moral, toda a Família Portuguesa”. O Executivo a que até há pouco tinha presidido apresentou formalmente a demissão e Carmona encarregou o Coronel José Vicente de Freitas de formar um novo Governo.
Vicente de Freitas e alguns dos seus ministros tomaram posse a 18 de Abril de 1928, exactamente três anos depois do falhado “golpe dos generais”. A gestão das Finanças Públicas transitou dos executivos anteriores como a questão mais crítica e iria, aliás, marcar o novo regime bem como contribuir sobremaneira para o que lhe sucederia. Para tomar conta dela voltou a falar-se de Salazar, que passara os últimos meses ocupado com a reforma da Caixa Geral de Depósitos. O jovem (29 anos) ministro da Instrução, o Professor Engenheiro Duarte José Pacheco, director do Instituto Superior Técnico, foi encarregado da missão de ir a Coimbra desinquietar o lente de Economia Política e convidá-lo, em nome do presidente do Ministério, para a pasta das Finanças. Salazar resistiu, mas acabaria por anuir e no dia 27 assumiu o cargo. Na cerimónia de posse, dirigindo-se ao Coronel Vicente de Freitas, que, na qualidade de presidente do Ministério o acolhera e se gratulara pela aceitação, disse que “não tem que agradecer-me o ter aceitado o encargo, porque representa para mim tão grande sacrifício que por favor ou amabilidade o não faria a ninguém. Faço-o ao meu País como dever de consciência, friamente, serenamente cumprido”.
Consciente de que quer a sua hesitação em aceitar o cargo quer a intrínseca criticidade do assunto que passava a ter entre mãos o tornavam a “estrela da companhia”, o jovem ministro (38 anos) afirmou que “debalde se esperaria que milagrosamente, por efeito de varinha mágica, mudassem as circunstâncias da vida portuguesa”. Cheio-de-si, acrescentaria que “pouco mesmo se conseguiria se o País não estivesse disposto a todos os sacrifícios necessários e a acompanhar-me com confiança na minha inteligência e na minha honestidade. […] Eu o elucidarei sobre o caminho que penso trilhar. […] Sei muito bem o que quero e para onde vou, mas não se me exija que chegue ao fim em poucos meses. No mais, que o País estude, represente, reclame, discuta, mas que obedeça quando se chegar à altura de mandar”. Salazar encetou “de imediato um rigoroso e austero programa económico e financeiro tendo em vista a reorganização das finanças”. As condições que impusera e que tivera o cuidado de mencionar no seu discurso de posse, sublinhando o facto de que haviam sido aceites unanimemente por todos os colegas do Governo, eram de facto inovadoras se bem que draconianas.
Os reflexos da intervenção autoritária e inflexível de um ministro das Finanças civil, professor de Coimbra, que os afectava com a diminuição efectiva dos salários, não eram de molde a pacificar os espíritos castrenses menos afins à Situação. Mas, a 9 de Junho de 1928, Salazar saberia tirar partido de uma concentração de oficiais da Guarnição de Lisboa que o governador militar, o general Domingos da Costa Oliveira, promovera no quartel-general para que o ministro pudesse agradecer colectivamente os cumprimentos que lhe haviam sido dirigidos por ocasião da sua tomada de posse. No encontro, o ministro das Finanças proferiu um discurso intitulado Os problemas nacionais e a ordem da sua solução. Além de uma rápida análise da situação, elencou as principais linhas de orientação para ultrapassar a crise e justificar os advenientes “sacrifícios salutares” que iriam ser, contudo, “a ascensão dolorosa dum calvário, onde os homens poderiam morrer mas se redimiam as pátrias”.
Antes, afirmara que “estamos hoje em Portugal numa situação má. Di-lo toda a gente e era escusado: na vida individual e na pública, as dificuldades que dessa má situação resultam sentem-se, palpam-se, todos nós lutamos com elas. Vamos relacionar, para melhor o ajuizarmos, todo esse mal-estar com quatro problemas fundamentais: o ‘financeiro’, o ‘económico’, o ‘social’ e o ‘político'”. E acrescentou: “Advoguei sempre a política de simples bom senso contra a dos grandiosos planos, tão grandes e tão vastos que toda a energia se gasta em admirá-los, faltando-nos as forças para a sua execução. Advoguei sempre uma política de administração tão simples como a que pode fazer qualquer dona de casa – política comezinha e modesta, que consiste em gastar bem o que se possui e não se despender mais do que os próprios recursos”.
Afirmando gradualmente a sua visão sobre o papel do Estado, a 22 de Fevereiro de 1929, em entrevista ao Diário de Notícias, Salazar diria que “para alguns, o Estado é o inimigo que não é crime defraudar; para outros, o Estado deve ser o protector da sua incapacidade e o banqueiro inesgotável da sua penúria”. Terminava a entrevista defendendo a sua actuação como ministro das Finanças, dizendo que “a Nação pode mudar de médicos, mas não está em condições de mudar de tratamento”.
“Política de verdade, política de sacrifício, política nacional”
Quando o chefe do Executivo, Ivens Ferraz, regressou a Portugal, após ter acompanhado o Presidente da República numa visita de Estado a Espanha, foi informado de que ocorrera “uma ruidosa manifestação de apreço, promovida pelas câmaras municipais ao senhor ministro das Finanças”, Oliveira Salazar. Da leitura das suas memórias pode deduzir-se o incómodo, quando não o ciúme, que tal incidente lhe provocou e que desconfiava ter partido do ministro da Justiça, Lopes da Fonseca, que o substituíra interinamente na chefia do Executivo. “Nunca fora consultado sobre a conveniência de realizar tal manifestação, parecendo até haver o propósito dos seus promotores que o presidente do Ministério a ela fosse estranho”, afirma.
Para o historiador César de Oliveira, aquela manifestação marca o início do que designa por “ofensiva de Lopes da Fonseca e Salazar [os católicos] contra a facção mais republicana do governo”. Realizada a 21 de Outubro de 1929, nela se ouviu pela primeira vez a palavra de ordem “Tudo pela Nação! Nada contra a Nação!”. Na ocasião, Salazar pronunciara mais um discurso na sala do Conselho de Estado, agradecendo a Lopes da Fonseca, que o cumprimentara em nome do Governo, e aos representantes das comissões administrativas dos municípios. Intitulada a exposição “Política de verdade, política de sacrifício, política nacional”, Salazar detalhou esses vectores lembrando que “num sistema de administração em que predominava a falta de sinceridade e de luz, […] impunha-se uma ‘política de verdade’. Num sistema de vida social em que só ‘direitos’ competiam, sem contrapartida de ‘deveres’, […] anunciei, como condição necessária de salvamento, uma “política de sacrifício”. Num Estado que nós dividimos ou deixámos dividir em irredutibilidades e em grupos, ameaçando o sentido e a força da unidade da Nação, tenho defendido […] a necessidade de uma ‘política nacional'”. E deixaria lançadas as bases do seu pensamento sobre o futuro político próximo, afirmando que “a reorganização constitucional do Estado tem de basear-se em nacionalismo sólido, prudente, conciliador, que trate de assegurar a coexistência e actividade regular de todos os elementos naturais, tradicionais e progressivos da sociedade. Entre eles devemos especializar a família, a corporação moral e económica, a freguesia e o município”.
Numa conferência pública, Cunha Leal defendeu o primado do fomento económico que, segundo ele, geraria os recursos para o saneamento financeiro com menor soma de sacrifícios. Para Salazar, isso era uma mera ilusão; não se conseguia construir uma economia senão sobre uma base financeira sã e séria. Tal como o economista Jacques Rueff (que integrara a missão da SdN que viera a Portugal) diria mais tarde, “pretender principiar pela economia é não conseguir nada: nem economia, nem finanças…”. Perplexo e irritado com os ataques de Cunha Leal, Salazar refutou os termos da conferência de Leal numa nota oficiosa, publicada a 7 de Janeiro de 1930 na imprensa de Lisboa; instigado mais uma vez «pela catequese persistente e mal-intencionada do seu mentor financeiro [Quirino de Jesus]”, segundo Cunha Leal. O líder da ULR não desistiu e, considerando-se “asperamente censurado”, voltaria à carga, procurando publicar no dia seguinte um artigo ainda mais contundente contra o “ditador das Finanças”. Para ultrapassar a proibição da Censura, Cunha Leal solicitou os bons ofícios do próprio Salazar (a quem deu a conhecer previamente o teor do texto) para que requeresse ao presidente do Ministério [Ivens Ferraz] a autorização devida, tendo Salazar anuído de imediato.
Já não era apenas uma diferença técnica na abordagem ao problema crucial do país, mas a definição de barricadas políticas irreconciliáveis. Segundo Cunha Leal, ou ele era dispensado do cargo público que detinha (governador do Banco de Angola) ou Salazar se demitia. A embrulhada transferiu-se para o seio do Conselho de Ministros, onde parte do Governo se colocou implicitamente do lado do dirigente liberal. O ministro das Finanças, sentindo-se desautorizado, acabou por pedir a demissão, no que foi acompanhado apenas por Lopes da Fonseca. Mas o seu prestígio dava-lhe já muito peso e Carmona decidiu, em alternativa, demitir todo o Governo a 11 de Janeiro de 1930. Para a presidência do Ministério nomeia então o general Domingos Oliveira, até aí comandante militar de Lisboa.
Entretanto, Manuel Gonçalves Cerejeira fora entronizado Patriarca de Lisboa, sucedendo a D. António Mendes Bello. Perante este acontecimento, Salazar viu na ascensão do seu amigo e camarada do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) um estímulo para a prossecução autónoma do seu próprio destino e estatuto político. A investidura de Cerejeira seria também o vértice incontornável de dois percursos institucionalmente divergentes, facto que Salazar irá deixar bem vincado, dois anos e meio depois, quando assumir a presidência do Ministério. O próprio Cerejeira tinha já consciência desse gradual afastamento, como confidencia ao seu antigo camarada Diogo Pacheco de Amorim, cúmplice das “guerras” de Coimbra, aquando de um pedido de clemência a Carmona, a favor de Cunha Leal e de Moura Pinto, nas costas de Salazar.
Mais tarde, em Julho de 1932, por ocasião dos cumprimentos protocolares do primeiro Executivo que irá dirigir, Salazar dir-lhe-á discretamente: “Manuel, a partir deste momento os nossos destinos separam-se completamente. Eu defendo os interesses de Portugal e do Estado, e os interesses da Igreja só contam para mim enquanto se conjugarem com aqueles, e apenas nesta medida. E o Estado é independente e soberano”. Apesar de ser mais a percepção pública, alimentada pelos sectores anticlericais da Situação e do Reviralho, do que condição real, havia-se instalado a impressão de um crescente protagonismo público e influência da Igreja Católica. Mas como lembra José Adelino Maltez, Vicente de Freitas e Salazar tinham acordado em 1928 que “nada se conceda à Igreja mas que nada se lhe retire do que [já] lhe concederam os políticos [no sistema da I República]”.
Eventualmente inspirada no modelo regeneracionista da Unión Patriotica da Ditadura militar espanhola, em Julho de 1930 surgira a UN – União Nacional, sob a presidência de José Vicente de Freitas, à altura presidente da Câmara de Lisboa. À organização estava vedado “imbuir-se do espírito de partido porque seria criminoso e, além de criminoso, seria ridículo, acrescentar, aos que já existem, o partido dos que não querem partidos”. Com o crescente apoio dessa plataforma política, congregante das bases de apoio ao rumo pressentido em Oliveira Salazar, o peso potestativo deste tornara-se incontornável. O reservado professor de Coimbra mostrava-se apto a reunir, sob a sua influência, republicanos conservadores, monárquicos, integralistas, católicos sociais e mesmo alguns antigos sidonistas. E, não menos despiciendo, parecia ser capaz de enfrentar com sucesso os rubros ventos que sopravam de Espanha, ameaçando a tão almejada paz social com a contaminação do vírus revolucionário fomentado em Portugal pelos “avançados”, designação por que eram conhecidos entre nós os anarquistas e os comunistas. Menos de três anos depois, após plebiscito de uma nova Constituição, era instaurado o Estado Novo.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico