Depois da morte de René Goscinny, em 1977, Albert Uderzo continuou sozinho a mítica saga criada por ambos em 1959. Astérix, e o ainda mais popular Obélix, lideraram os gauleses contra os romanos durante dezenas de aventuras. A energia não esmoreceu, nem o número de javalis diminuiu, quando, em 2013, Uderzo escolheu pessoalmente Jean-Yves Ferri e Didier Conrad como substitutos (o criador continuou como mentor e conselheiro até morrer, em 2020.
Chegados a 2023, a coleção atinge o número redondo de 40 títulos e regista uma nova mudança. Fabcaro substitui Ferri no guião, continuando Didier Conrad a assinar os desenhos. Nasce assim Astérix e o Lírio Branco, nas livrarias portuguesas a partir desta quinta-feira, 26 de outubro (publicado pela ASA) e em simultâneo em 20 línguas.
Os dois autores só se conheceram pessoalmente dez dias antes do lançamento do álbum que criaram em conjunto, tendo sempre trabalhado através de email. Fabrice Caro (que assina como Fabcaro) vive no sul de França, enquanto Didier Conrad está instalado no Texas.
A distância não impediu que o trabalho fluísse — aliás, a diferença horária até ajudou, garantem. Astérix e o Lírio Branco tem uma personagem nova, Palavreadus, que ameaça destabilizar a paz na aldeia dos gauleses — e tudo apenas com palavras e pensamentos positivos dignos de um guru. A propagação da nova forma de vida é demasiado rápida e Astérix e Obélix têm de resolver o caos instalado.
Fabcaro e Didier Conrad deixam a sua marca no 40.º álbum mas foram muito cuidadosos em manter todos os detalhes que fizeram de Astérix um fenómeno com 393 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo — como é óbvio, nunca se ignora um banquete na cena final. O Observador falou com os autores a propósito do lançamento de Astérix e o Lírio Branco.
É o 40.º álbum de Astérix, já houve dezenas aventuras. Qual foi a inspiração para este novo livro? Onde se procura a inspiração?
Fabcaro (F) — Há uma espécie de tradição nos livros do Astérix, que alternam uma aventura em viagem, outra na aldeia, viagem, aldeia, etc. Claro que não somos obrigados a cumprir isso mas, neste caso, calhava na aldeia. Portanto, pus-me a pensar no que poderia acontecer que pudesse abalar o sossego da povoação. Uderzo e Goscinny pegavam muitas vezes em algo que estava na moda, algo contemporâneo, mas que tivesse traços intemporais. Tentei pensar em algo do género. Aqui [em França] há uma espécie de vaga, não sei se em Portugal também, de desenvolvimento pessoal, manuais de bem-estar, positivismo, etc. Achei que era um tema atual mas também intemporal. Sempre procurámos viver bem, tentando encontrar uma filosofia de vida, portanto baseei-me nisso. Coloquei essas ideias na aldeia como elemento perturbador que vem alterar um pouco a dinâmica.
Palavreadus é o novo inimigo dos gauleses. Primeiro pensaram numa personagem jovem e depois mudaram completamente de direção. Porquê?
Didier Conrad (DC) — No início parti em todas as direções porque não tinha uma ideia precisa daquilo que o Fabrice queria. Ele disse-me qual seria o papel do Palavreadus, mas eu não sabia como iria utilizá-lo. Mostrei-lhe várias opções para ver a reação dele. Depois, com o editor [Céleste Surugue], partimos de duas caricaturas para termos a ideia de uma personagem real que pudesse servir de suporte. Usamos Bernard-Henri Lévy [filósofo e escritor francês] e um político, Dominique de Villepin, porque são figuras carismáticas que têm uma certa aura. Fiz caricaturas a partir disso e depois percebemos que de Villepin é um político, está muito conotado a isso, as pessoas têm uma ideia muito clara e não podíamos manipulá-lo como queríamos. Portanto, guardámos alguns elementos das caricaturas e criámos uma personagem completamente original. Demorámos um mês mais ou menos até estarmos de acordo.
Este é o sexto álbum em que o Didier trabalha. Para Fabcaro é o primeiro. Vocês não se conheciam antes, um vive em França e o outro nos EUA. Como é que coordenaram o trabalho?
F — Foi mais ou menos como fazia o Jean-Yves [Ferri, escolhido em 2013 pelo próprio Albert Uderzo para continuar a série]. Não vivemos perto, eu moro no sul de França, o Didier nos EUA, mas correu muito bem. Tivemos uma ou duas reuniões por Zoom para nos coordenarmos e depois foi tudo por email. Eu fazia os storyboards, escrevo os guiões com pequenos desenhos para situar o texto. Via as coisas com o editor e depois enviava cerca de dez páginas ao Didier. A diferença horária acabou por ajudar-nos a sermos mais eficazes, por estranho que pareça. Eu enviava as coisas, ia dormir, e na manhã seguinte já tinha material novo.
DC — Temos a vantagem de não ter um editor normal. [Céleste Surugue] é um fã de BD, conhecia muito bem o trabalho do Fabcaro, conhece-me muito bem, e foi ele que fez a ponte no início e antecipou o que podiam a vir a ser problemas. Bom, agora já nos conhecemos há uma semana e corre bem, podemos comunicar sem intermediário. Mas ele é mais do que um editor, é um amigo, e acho que nos tornamos três bons amigos que têm em mãos algo precioso.
F — É bom ter um olhar externo também, porque não podemos falhar quando estamos a trabalhar um Astérix. Há regras, há coisas que é preciso cumprir e o editor sabe exatamente quais são.
DC — Porque o Astérix vai muito além dos livros, há os filmes, desenhos animados e tudo o resto. É preciso saber o que está a acontecer em todas as frentes para não repetir ideias.
Fabcaro, para si, que acabou de chegar a este universo gigantesco, algo se alterou no método de trabalho?
F — O método não mudou. Tenho uma ideia base, o universo, e parto daí, improviso bastante. Nos meus projetos faço o que quero de A a Z, mas as obrigações não são as mesmas num Astérix. Aqui não podemos fazer qualquer coisa. O que mantive no método foi saber qual o universo e saber mais ou menos para onde queria ir. Depois, improvisei. Isso permitiu-me manter frescura e entusiasmo.
Quando fala das obrigações e regras num Astérix, dê-me um exemplo.
F — Não é uma Bíblia, não há um manual escrito, mas é algo que sabemos também à medida que lemos os Astérix. Sabia que não podia evitar o banquete final, por exemplo. Há jogos de palavras, anacronismos, lutas com os romanos e os piratas. Achei divertido ter tudo isso para respeitar, como se fosse um percurso. Achei muito lúdico.
Na conferência de imprensa sobre o livro, Fabcaro disse que era um [autor] interino. Não prevê fazer mais álbuns?
F — É verdade, a palavra não é muito bonita, mas no primeiro contacto o editor disse-me: “O Jean-Yves está a fazer uma pausa. Queres fazer um álbum enquanto ele não volta?” Portanto, inicialmente foi um contrato oral. Deu-me muito prazer, mas quando o Jean-Yves regressar, cedo-lhe o lugar com muito gosto. Se no futuro houver a possibilidade de fazer outro, claro que sim. Diverti-me muito com este.
Para o Didier, qual é a parte mais divertida de fazer um Astérix? E qual a mais difícil?
DC — O que é mais difícil, e que é inerente ao facto de ser uma série colossal onde há muita expectativa, é termos de investir e trabalhar como se fosse um trabalho completamente pessoal, mas não termos a última palavra. Não decidimos exatamente o que vai acontecer no álbum, mas temos de trabalhar como se fossemos nós a decidir. Quando nos dizem “é preciso mudar isto e isto”, não podemos responder “sim, mas não”, temos de responder “sim, sim”. Temos de nos ajustar a isso e, quando temos um pouco de ego de autor, é o mais difícil. A mim passou-me com o tempo e sei que o Fabrice não tem problemas com isso porque trabalha mais depressa que a própria sombra. Quando acaba uma coisa, está já a pensar na seguinte, não fica doentiamente preso ao que acabou de fazer. Tem uma flexibilidade e uma agilidade que nem toda a gente tem. Eu, pessoalmente, não tenho. Portanto, olho para ele com admiração e é muito bem-vindo porque é exatamente disso que precisamos.
É um projeto ultra secreto. Como é que vocês fizeram para manter tudo apenas entre vocês?
DC — Estou protegido por duas coisas. Vivo nos EUA e lá o Astérix não é este fenómeno. Além disso, já não tenho muitos familiares vivos, portanto não tenho problema desse lado.
F — Tive a sensação de viver dentro de um [filme de] James Bond, foi peculiar. A partir do momento em que soube que ia fazer o álbum até isso ser anunciado passou um ano. Portanto, vivi um ano com este segredo que me queimava a língua.
Seguem a linha de Goscinny e Uderzo, obviamente, mas a vossa identidade também tem de estar presente nos livros. Onde podemos encontrá-la?
F — A ideia era essa, estar ao serviço do Astérix, respeitando todos os códigos. E penso: se me vieram buscar, é porque acham que tenho algo a dizer. Mas não podemos armar-nos em espertalhões, temos de ter cuidado com isso, tem de ser na dose certa para que continue a ser um verdadeiro Astérix. A minha contribuição talvez se veja em pequenos detalhes do texto. Às vezes tentava qualquer coisa e passava, espetacular. Há uma cena do Obélix em cima das carrinetas [a imitar trotinetas], é uma sequência muda com quadrados repetitivos, é uma coisa que tenho tendência a fazer no meu trabalho, que não é muito Goscinny, mas passou. Há alguns detalhes, mas não podem poluir, temos de colocar o nosso ego em segundo plano para que seja um Astérix.
DC — É um pouco diferente para mim, na medida em que é uma BD muito clássica na narrativa e na técnica. Não há muitas pessoas que pratiquem este tipo de BD, por isso é que também sou assim, este velho, para o fazer. Venho de uma geração que lia estes livros em criança, que aprendeu todos estes códigos e praticou-os. Essas memórias servem-me de bússola. Quando tenho de tomar decisões, vou buscar essa emoção. Há mais margem de manobra no guião porque os desenhos estão muito mais presentes na cabeça das pessoas, não podemos desviar-nos. Neste caso, o trabalho que o Fabrice fez na Boapinta e no Matasétix é muito particular porque nunca os vimos assim, num plano puramente emocional. Normalmente representam um estatuto: ele é o chefe da aldeia, ela é a primeira dama. Pela primeira vez, vemo-los na intimidade, como casal. De repente, vemos esta Boapinta que é muito positiva, vemo-la maravilhada pelas suas qualidades e pelo facto de chegar a Paris e ser aceite. Vemo-la com os olhos luminosos e isso é uma novidade.
Ela tem algo a dizer em vez de ser apenas “a mulher de”?
F — É isso, exatamente.
DC — Ao mesmo tempo, ela é muito positiva. Viamo-la sempre muito agarrada aos seus privilégios, ao estatuto. E o Matasétix, de repente, quando já não tem a companheira, regride completamente, até o apetite perde. Portanto, nunca os vimos assim, mas é perfeitamente coerente com as personagens, apenas as vemos noutro ângulo.
Fez algum tipo de pesquisa ou releu os álbuns antes de começar este Astérix, Fabcaro? Ou pelo, contrário, não quis que isso o influenciasse?
F — Leio Astérix desde sempre, acho que no primeiro devia ter uns sete anos. É uma tal escrita de génio, a de Goscinny, que os relemos a vida toda. De vez em quando pego num álbum e leio, por isso não precisei de ir rever a matéria. E também não queria deixar-me influenciar.
Didier, dos seis em que já trabalhou, qual foi o álbum que mais gostou de fazer e qual o mais difícil?
DC — Pela história e pelas piadas, foi este [o que mais gostei de fazer], e também foi aquele em que me diverti mais. Pelo desenho puro é o álbum anterior [Astérix e o Grifo], tinha todo um universo diferente a desenvolver. Também gostei muito do Astérix e a Trânsitálica, tinha corridas de cavalos, era muito dinâmico, foi muito prazeroso de fazer.