Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Os hospitais do SNS são bem geridos? Esta questão raramente suscita o interesse que deveria nos debates sobre a eficiência e, sobretudo, sobre a performance do SNS. Tipicamente, discute-se o subfinanciamento crónico, a inexistência de orçamentos plurianuais, a fuga de profissionais, entre outros factores que certamente também contribuem para o estado frágil do SNS. E, quando aparece, o mais frequente é surgir sob a forma de discussão, ou braço de ferro, da gestão privada versus gestão pública. E o problema, tal como ele é geralmente colocado, incide na competência dos gestores: se os gestores públicos são competentes ou não, na medida em que as instituições públicas, em comparação directa com as empresas privadas, não conseguem atingir, por regra, o mesmo nível de eficiência nem de produtividade que um hospital em gestão privada (como por exemplo os hospitais PPP).
Como em todas as perguntas difíceis, não existem aqui respostas únicas. Algumas teorias postulam que se trata da incapacidade do sector público de pagar salários elevados, sendo, como tal, incapaz de atrair os melhores. Não é mentira que o sector público, com excepção de alguns subsectores como o da banca, paga abaixo do preço de mercado para uma posição semelhante. Mas experiências de gestores, tidos por competentes, que transitam do sector privado para o público e subitamente perdem o seu élan tendem a contrariar essa teoria. Outras teorias sugerem que o sector público está manietado por interesses políticos e sindicais, servindo como agência de emprego ou de contestação política, o que gera enormes distorções económicas na sua gestão, incluindo a nomeação de pessoas que, sujeitas a concurso, seriam provavelmente preteridas. E, neste caso, não sendo propriamente mentira ou do desconhecimento da maior parte das pessoas, isso apenas explicaria parte do problema.
Há, contudo, uma terceira teoria, que neste ensaio lançamos, e que é mais inusitada do que as habituais. Vamos tentar mostrar que, na verdade, os gestores públicos são autênticos heróis sem capa, que todos os dias têm de lidar com as idiossincrasias de um sector público que funciona administrativamente, e que não dispõe dos mesmos instrumentos de gestão que os seus congéneres do sector privado. Salvo raras excepções, não podem contratar nem despedir, nem podem dar prémios de produtividade para motivar a sua força de trabalho. Em muitos casos não podem sequer escolher os profissionais com que gostariam de trabalhar. As suas relações com os fornecedores são limitadas e são diariamente confrontados com indicações vindas de gabinetes ministeriais. Os seus orçamentos são anuais, por vezes negociados já o ano vai a meio, e incidem sobretudo sobre despesa corrente, pois despesa de capital carece de autorização. Ou seja, impedem qualquer tipo de planeamento e de investimento para lá da gestão do dia-a-dia.
O sector da saúde não é excepção, e será talvez neste sector que a rigidez da administração pública é mais lesiva. Se a falta de autonomia das escolas e a incapacidade de escolher os seus professores pode limitar a qualidade da aprendizagem, num sector em que o tempo é crítico, como é o caso da saúde, a incapacidade de tomar decisões rápidas e eficazes em prol do paciente (e não do cumprimento de processos administrativos) pode ser fatal.
Um modelo (ineficiente) de gestão por despachos e orientações
Não é coincidência que a Administração Pública seja caracterizada por uma carga burocrática elevada, e que sejam recorrentes as queixas sobre o excesso de papéis, carimbos, autorizações e selos brancos necessários para interagir com os serviços públicos. Também não é coincidência que, com demasiada frequência, haja queixas de impessoalidade e de falta de vontade do servente público em resolver o problema do cidadão, apenas porque falta um comprovativo acessório, um apêndice, uma terceira assinatura ou um documento de uma outra entidade pública, que o próprio Estado já tem em sua posse pois é o emitente. Este modelo burocrático foi idealizado por pensadores como o antigo presidente norte-americano Woodrow Wilson, os engenheiros F. Taylor e H. Fayol, e o sociólogo Max Weber, e visava justamente criar um sistema mecanicista de gestão administrativa, onde a previsibilidade e a racionalidade se sobrepusessem à flexibilidade e à adaptabilidade. Os princípios subjacentes a este modelo são o cumprimento administrativo de decisões políticas, sem qualquer margem para discricionariedade; a gestão baseada em documentos escritos e autenticados; um sistema de regras e regulamentações que define as actividades e processos a desempenhar; a organização puramente funcional, estando os departamentos e as pessoas orientadas à sua função; a preferência pela centralização; e, finalmente, a submissão dos interesses individuais na administração da coisa pública ao interesse público.
Pese embora este modelo estar a ser gradualmente afastado em muitos países europeus, Portugal continua a aplicá-lo diligentemente. No caso da Saúde, sob a tutela do ministério operam várias instituições com poder efectivo sobre as operações dos hospitais, das quais se destacam a Direcção-Geral de Saúde (DGS), a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), os Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) ou o Infarmed, todos eles sediados em Lisboa, a que ainda acresce o próprio Ministério da Saúde, que em articulação com o Ministério das Finanças também produz despachos. A estes organismos centrais acresce ainda as administrações regionais de saúde (ARS), que também têm interferência na gestão das unidades de saúde. Estes organismos estão diariamente a emitir circulares normativas, despachos e orientações que afectam as operações de todos os hospitais do país, e que por vezes obrigam a um enorme esforço para a sua operacionalização. Para além do esforço, estes guiões administrativos são para serem aplicados de forma transversal, muitas vezes ignorando as especificidades das populações locais e das regiões. É, literalmente, gestão de gabinete.
Em questão não está a existência destes organismos, que obviamente se justifica, mas sim o facto de estarem neles delegados importantes instrumentos de gestão, que por sua vez os transmitem às suas subsidiárias — as unidades de saúde — por despacho. Pior ainda, muitas vezes os despachos, oriundos de diferentes instituições, contêm instruções contraditórias, conflituando abertamente. Não raras são as vezes que ninguém sabe bem como interpretar um determinado despacho, sendo que, em alguns casos, a discussão é puramente jurídica: se houver precedente para interpretar de uma dada forma, então o procedimento ajustar-se-á. A consequência deste modelo de gestão, que em boa verdade é um modelo puramente administrativo, é que as unidades de saúde (com excepção das USF) não têm os instrumentos necessários a uma gestão eficiente.
A ausência de instrumentos de gestão
A administração pública clássica foi garantindo a prestação dos serviços públicos, mas era incapaz de mitigar as críticas que lhe eram geralmente apontadas: as elevadas filas de espera; os horários laborais inflexíveis; a elevada burocracia; ou a fraca produtividade comparativamente com o sector privado. Um mundo digital e global, com populações mais informadas e necessidades mais complexas, exigia uma abordagem mais flexível, capaz de atender a uma realidade dinâmica. No entanto, a lógica mecanicista da administração pública obrigava a moldar os processos de negócio aos processos administrativos, ou seja, não era a máquina burocrática que tinha de se ajustar às necessidades dos pacientes ou dos profissionais de saúde, eram estes que tinham de ceder às manigâncias da máquina burocrática.
Dada a sua ineficiência, o modelo clássico de administração foi sendo gradualmente substituído, a partir dos anos 80, pelo chamado New Public Management, que tem como cânones a aplicação de metodologias de gestão do sector privado, a criação de sistemas de incentivos que motivem os recursos humanos, o controlo financeiro, assim como a eficiência e eficácia no uso dos recursos. Reorienta-se assim o modelo para o alcance de resultados, e não apenas para o cumprimento diligente de processos. O pressuposto base é o de que as instituições públicas não actuam segundo o princípio da escolha racional, procurando alcançar o óptimo, mas sim numa racionalidade limitada, que procura uma resposta satisfatória e não necessariamente óptima (denominada de second-best). Mais, o New Public Management reconhece que é ineficaz a implementação de medidas top-down, oriundas de um gabinete recôndito num ministério e propagada às administrações, e que o foco dos oficiais deverá ser ultrapassar desafios e garantir soluções eficazes, em detrimento de procurar apenas cumprir regulamentos procedimentais, sem preocupação com a satisfação dos utentes.
No contexto da saúde, o surgimento dos hospitais sociedades anónimas (SA), em 2002, e, posteriormente, a sua conversação em EPE (Entidade Pública Empresarial do Sector Empresarial do Estado), em 2005, visava justamente a empresarialização dos hospitais através da transposição dos princípios do New Public Management. O objectivo era dotar os hospitais de instrumentos de gestão que permitissem acrescentar eficiência, monitorizar e auditar os resultados e introduzir incentivos, sobretudo financeiros, que pudessem motivar os profissionais de saúde a cumprirem as metas.
Desde então, várias iniciativas foram sendo lançadas neste sentido: os hospitais são obrigados a reportar um conjunto muito vasto de indicadores por forma a ser possível acompanhar a produção e a execução financeira; a ACSS tem um site de benchmarking onde é possível comparar indicadores de acesso (listas de espera e tempos de acesso), desempenho e qualidade dos cuidados, produtividade ou custo operacional para as várias unidades de saúde; a Entidade Reguladora da Saúde conduz um inquérito que visa avaliar a qualidade dos cuidados de saúde prestados; o portal do SNS, em parceria com os SPMS, permite acompanhar os tempos de espera para os vários níveis de urgência clínica, entre outros. Tornou-se possível, com isto, ter mais visibilidade sobre as unidades de saúde e sobre a sua actividade em tempo real, permitindo assim às autoridades actuar de forma mais célere.
O levantamento destes indicadores analíticos é um dos principais mecanismos para identificar problemas, mas não é suficiente para os resolver, até porque os incentivos montados recompensam a instituição e não os prestadores, ou seja, os recursos humanos. Isto é, embora até 5% do financiamento dos hospitais esteja dependente dos resultados alcançados ao nível do acesso, desempenho e objectivos económico-financeiros, esses incentivos não são vertidos para os profissionais, pelo que, na prática, os incentivos são inexistentes. Mais grave ainda, e de forma extremamente perversa, hospitais que foram capazes de ter um excedente sofrem por vezes cortes no seu contrato-programa, enquanto que hospitais que empolaram a despesa e contraíram dívida não só não sofrem cortes no seu orçamento, como ainda recebem, mais tarde, pagamentos extraordinários para liquidar a dívida. Neste caso, a ineficiência compensa.
Adicionalmente, são necessários instrumentos que permitam intervir e actuar sobre os problemas — e se os hospitais estão dotados de sistemas de informação para rastrear a mais ínfima informação, carecem ainda de autonomia efectiva. A título de exemplo, os hospitais não dispõem de autonomia para contratar ou despedir os seus recursos humanos, em particular médicos, sem carimbo prévio da ACSS e do Ministério das Finanças, que tem de autorizar previamente a execução da despesa. A salvaguarda é a celebração de contratos uninominais, a tempo certo, ou a contratação de tarefeiros. Estas escapatórias são, contudo, ineficazes, pois não é possível reter os bons nem afastar os maus. Adicionalmente, o valor-hora pago aos profissionais pelo serviço de urgência é tabelado centralmente, ignorando as assimetrias regionais e a necessidade de ajustar o pagamento em função da oferta de profissionais de saúde ou da própria competência do profissional. Perante isto, é inegável constatar que a política de recursos humanos é decidida política e administrativamente pelo Ministério da Saúde, que depois a repercute pelos hospitais.
Por conseguinte, e com excepção das Unidades de Saúde Familiar, as unidades de saúde não dispõem dos instrumentos para motivar os recursos humanos, pagando-lhes, por exemplo, prémios de produtividade. As tabelas salariais estão reguladas administrativamente e a progressão nas carreiras da função pública está congelada desde 2010. Significa isto que um cirurgião altamente produtivo, que cumpre e ultrapassa as metas, ganhará exactamente o mesmo que um cirurgião que reiteradamente adia as suas cirurgias, pondo a saúde dos pacientes em risco. Não é difícil imaginar qual será o desfecho de tal perversidade: desmotivação dos bons profissionais e abandono do SNS.
Os hospitais carecem também de autorização para realizarem despesa de capital, isto é, investimento em infraestrutura e tecnologia médica. São recorrentes as notícias de um determinado hospital que tem uma ala fechada por falta de verbas ou, mais grave ainda, dispõe das verbas, mas carece ainda do carimbo do Ministério das Finanças, como aliás aconteceu com o IPO Lisboa. A mesma situação passa-se agora no Centro Hospitalar S. João, em que a tentativa de dar alguma dignidade à ala pediátrica do CHSJ, o Joãozinho, que opera em contentores, obrigou a administração a recorrer a mecenas, iniciativa que foi por sua vez bloqueada por decisão política.
Em suma, o gestor público continua a ser pouco mais do que um escriturário, cuja função é aplicar normas e despachos que são criados centralmente. Mesmo o processo de aquisição de matéria-prima fundamental ao funcionamento de qualquer unidade de saúde, como medicamentos e consumíveis clínicos, está envolto num processo extremamente complexo e burocrático, como veremos de seguida.
Uma obra desconhecida de Kafka: o código dos contratos públicos
Mais alongado do que muitas obras de Kafka, o Código de Contratação Pública (CCP) é um dos principais instrumentos da administração pública, estipulando os termos aplicáveis à contratação pública e à natureza do contrato administrativo. Na sua última versão, o Decreto-Lei n.º 111-B/2017 contém 476 artigos, 13 anexos e estende-se por 158 páginas de Diário da República. Dito de uma forma simples, este é o manto de jurisdição que regula a relação entre entidades públicas e os seus fornecedores. A partir daqui nada é simples: a aplicação do CCP é um processo complexo e penoso, e a interpretação da letra da lei divide-se entre o domínio jurídico e o criativo.
Na tradição da administração pública, o CCP procura regular por via legal e top-down a forma como as mais diversas instituições públicas, desde escolas a hospitais, estabelecidas em todo o ordenamento territorial, podem estabelecer uma dada relação comercial com outros prestadores, privados ou públicos, nacionais ou estrangeiros. Ou seja, o mesmo bloco legislativo aplica-se, com algumas nuances, para comprar uma máquina de ressonância magnética ou para adquirir cápsulas de café. Além de dar emprego a muitos juristas, existem objectivos práticos para a existência de um CCP, entre os quais tornar os procedimentos mais transparentes, reduzir o clientelismo, expor o nepotismo, evitar o favorecimento de algumas entidades e de interesses particulares, e ainda aproveitar o poder negocial das administrações públicas, que em alguns casos são quasi-monopsónios, para obter melhores preços.
De certa forma, o CCP tem sido capaz de (pelo menos) dificultar abusos e atropelos éticos e até legais, embora seja notório que não evita de todo a sua ocorrência, como aconteceu com a compra dos autocarros dos Transportes Urbanos de Braga ou com os contratos viciados do Turismo do Norte. Por outro lado, torna a vida das instituições públicas, e em particular dos hospitais, numa verdadeira trama kafkiana. Para ilustrar a entropia gerada pelo CCP, considere-se a aquisição de um qualquer fármaco novo por parte de um hospital. Se tal ocorrer num hospital privado, o processo decorrerá, grosso modo, da seguinte forma: o médico identifica a necessidade e solicita ao serviço aquele fármaco; o director de serviço, validando o pedido, remete-o para o departamento de compras, que, dependendo do montante, carecerá de autorização do departamento financeiro. Para casos muito específicos, o pedido passará pelo Conselho de Administração, caso contrário poderá ser expedido directamente. O departamento de compras contacta então o(s) fornecedore(s) e coloca a nota de encomenda. A correr mal e metendo feriados pelo meio este processo demorará uma a duas semanas.
Consideremos agora o caso de um hospital público. De forma análoga ao hospital privado, o processo inicia-se com um levantamento de necessidades, processo que é escalado ao director de serviço. Aprovado o pedido e expedido para o departamento de compras, começa então a aventura. Em primeiro lugar, é preciso verificar se aquele fármaco já está coberto por um Acordo Quadro ou pela Central de Compras. Caso não esteja, é feita então a consulta dos fornecedores e aberto o período para a recepção de propostas. Se as propostas forem superiores a 30 mil euros é necessária a validação do Conselho de Administração (processo que se poderá alongar até que este se reúna novamente). As propostas recepcionadas são depois avaliadas por um júri, que deve conter membros externos à instituição e que tem de se juntar para o efeito. Depois de escolhida a melhor proposta (que na maior parte dos casos só pode atender ao preço como principal critério de escolha, desconsiderando, como tal, a diversidade e complexidade de fármacos e consumíveis clínicos), segue-se um período de audiência prévia de cinco dias em que os fornecedores poderão contrapor a decisão do júri. Caso as propostas estejam igualadas no preço, faz-se um sorteio presencial para escolher o fornecedor. Finda a audiência prévia, é consultado o departamento jurídico para garantir que todo o processo decorreu de acordo com os trâmites da lei. E se acha que agora o pedido segue para o departamento financeiro para autorizar a nota de encomenda, desengane-se. Se o valor total exceder os 350 mil euros, o que é perfeitamente banal em grandes hospitais que adquirem em grandes quantidades, então o pedido será remetido para o Tribunal de Contas, que nunca demorará menos de um mês a pronunciar-se. Em suma, se tudo correr bem e não for necessário consultar o Tribunal de Contas, então o processo poderá estar concluído em 2 meses. Caso contrário, serão necessários 3 meses — na melhor das hipóteses. Três meses — 90 dias — para ser possível comprar uma matéria-prima crucial para a prestação de cuidados de saúde.
Efeito prático disto? Reiteradamente, porque a emergência clínica assim o exige, os hospitais acabam por ter de recorrer ao subterfúgio dos ajustes directos, contratando directamente a uma farmácia e pagando o dobro, o triplo, quando não o quádruplo do preço. A outra alternativa é recorrer à linha telefónica e inquirir os hospitais das redondezas, em busca daquele que possa ter o fármaco necessário. Mais grave ainda, a morosidade deste processo leva os hospitais a adquirirem quantidades substanciais, o que tem dois grandes problemas: pode ser um enorme constrangimento logístico e financeiro, empolando os níveis de inventário; e prende o hospital àquele fármaco, quando, entretanto, pode surgir um biossimilar a uma fracção do preço. Assim, e pese embora a prática médica por vezes condicionar as escolhas dada a complexidade dos factores que determinam o tratamento, o CCP obriga às mesmas escolhas.
Os diversos governos têm tentado corrigir o CCP, tentando melhorá-lo por forma a evitar o recurso aos ajustes directos e outros subterfúgios legais que, na prática, subvertem o próprio CCP. Sem que surpreenda alguém, a solução encontrada é geralmente a de acrescentar ainda mais legislação a um manto já complexo de centenas de artigos e cláusulas. Criaram-se, por exemplo, tectos financeiros que limitam os montantes que poderão ser adjudicados, em cada ano, a cada empresa. Consequência? Empresas que excedem os novos limites de contratação directa começaram a criar outras empresas para poderem continuar a fornecer às entidades públicas, e com total conivência das próprias entidades públicas, até porque estas entidades preferem trabalhar com aquele fornecedor. Note-se que, em muitos casos, isto não se deve a conluio ou favorecimento, acontece em todos os sectores e em todas as empresas ter uma relação preferencial com um determinado fornecedor porque este cumpre os prazos, pratica melhores preços, tem melhor tempo de resposta, a assistência é melhor, entre outros motivos perfeitamente legítimos. Ou seja, o problema não foi resolvido, tendo acrescentado uma (ainda) maior carga burocrática que obriga instituições e empresas a criatividade contabilística e jurídica.
Questões para reflexão: é possível reformar a Administração Pública?
Constatamos, portanto, que o sector público é gerido por decreto, a partir de gabinetes, geralmente sediados em Lisboa. À luz desta realidade, os gestores públicos não são mais do que administrativos que implementam os processos, não dispondo de autonomia para a gestão plena dos seus recursos. O modelo de New Public Management, que visava reproduzir a gestão empresarial no contexto público, apenas criou estruturas, nunca lhes conferindo poder efectivo. De nada serve que um hospital tenha um Conselho de Administração quando, primeiro, esse Conselho de Administração está limitado ao cumprimento administrativo de processos; e, segundo, quando esse Conselho de Administração é nomeado por despacho político, o que leva muitas vezes à secundarização do mérito e da competência em primazia do compadrio.
Resta, assim, perceber como será possível reformar este modelo. Existem duas posturas distintas quanto à forma de resolver os problemas enunciados, que são uma pequena fracção de todos os problemas com que as unidades de saúde têm de lidar no seu dia-a-dia. Por um lado, existe a facção dos optimistas, que acha que o problema se resolve fazendo e refazendo leis, escrevendo e revogando artigos. Por outro lado, os pessimistas, que acham que o modelo é ingovernável, gerando enormes ineficiências e desperdício de recursos, por muitos ajustes, decretos e despachos que possam ser feitos.
A ideologia de cada um inquinará certamente a preferência, mas a tendência em vários países ocidentais, essa, tem sido a de reduzir o papel do Estado enquanto prestador em sectores concorrenciais ou semi-concorrenciais, reorientando-o para as suas funções de financiador e regulador. Não por acaso, muitos países da Europa, como é o caso da Bélgica, Holanda, França ou Suíça, têm sobretudo um modelo de prestação privada de cuidados de saúde, mesmo nos casos em que o financiamento é público. Mesmo no caso de países com sistemas de saúde similares ao nosso, como é o caso do Reino Unido, actividades como a logística hospitalar, que vão desde a compra e armazenamento até à entrega nos serviços, foi completamente externalizada para a DHL e agora para a Unipart Group. O modelo das PPP permite justamente isso: enquadrar no direito privado, fora das condicionantes do direito público, as instituições de saúde, dando-lhes toda a autonomia que desejam para cumprirem os seus objectivos. Ao Estado caberá apenas auditar os resultados, garantir a qualidade dos mesmos, e pagar, ou não, em função dos objectivos alcançados. Exactamente em igual sentido foi feita uma enorme reforma no ensino superior, conferindo o estatuto de fundação às universidades para que, desta forma, possam dispor de mais autonomia. Isso permite, por exemplo, que estas possam gerir os seus recursos humanos sem carecerem de autorização do ministério, conquanto respeitem a regra de fixação da massa salarial.
O modelo das PPP não é a única forma de dar mais autonomia, porém. As Unidades de Saúde Familiar do tipo B funcionam sob apertados critérios de performance, que permitem remunerar os profissionais de saúde em função de indicadores de qualidade, mas também de produtividade. A vantagem é a autonomia destas unidades, que gerem os seus recursos como entenderem, mas que têm incentivos para que o façam de forma eficiente. Um estudo da Coordenação Nacional para a reforma do SNS estima que o custo por utente inscrito numa USF-B é de 257 euros, enquanto que num Centro de Saúde convencional é de 290 euros.
Não sendo perfeito, este modelo permite efectivamente trasladar os princípios da gestão privada para a administração pública, aproximando-se, de facto, do New Public Management.
Mário Amorim Lopes é Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Porto, Assistente Convidado na Católica Porto Business School, Investigador no INESC-TEC, membro do Parlamento da Saúde, doutoramento na área de Gestão e Economia da Saúde.