É uma operação de segurança sem precedentes. Quatro elementos dos GOE (Grupo de Operações Especiais), fortemente armados, não deixam passar despercebida a figura alta e loira que atravessa o pavilhão 1 da FIL. Mesmo quem não sabe de quem se trata, quer saber. “É a primeira-dama da Ucrânia”, revela aos muitos curiosos o séquito do Governo ucraniano, da embaixada, da Câmara de Lisboa e de jornalistas que segue Olena Zelenska no terceiro dia da Web Summit.
Depois de ter sido a surpresa da cerimónia de abertura, a primeira-dama da Ucrânia voltou à cimeira tecnológica com uma agenda preenchida: conheceu algumas das 70 startups do país representadas na FIL, ouviu Carlos Moedas falar da fábrica de unicórnios, pediu reforços para o inverno, esteve reunida com o presidente da Microsoft e concedeu várias rondas de conferências de imprensa, também fortemente controladas pela segurança. O Observador esteve numa delas.
Por indicação do staff, as perguntas dirigidas a Zelenska deveriam ser sobre a sua Fundação, que se dedica à recuperação da vida dos ucranianos, com foco na saúde mental. A primeira-dama não queria falar de política. Mas num país em guerra, tudo é política. E Olena Zelenska não escapou às perguntas, apesar de se ter esquivado a algumas respostas. “Não sou o presidente Zelensky, não estou a usar uma camisola caqui, por isso não vou responder a isso”, declarou em resposta a uma questão sobre as negociações de paz com a Rússia.
A grande preocupação da Ucrânia neste momento é o inverno que se aproxima. Segundo o vice-primeiro-ministro para a Transformação Digital, Mykhailo Fedorov, que acompanhou Zelenska em parte da visita, 40% da infraestrutura elétrica da Ucrânia foi destruída pelos russos. “A fundação está a fazer o que pode para assegurar que as pessoas sobrevivem ao inverno. Estamos a comprar geradores, cobertores, aquecedores, sacos-cama. Tudo o que é possível para ajudar o país, e sobretudo os territórios ocupados, declarou a primeira-dama, em ucraniano, auxiliada na comunicação por uma tradutora.
Esse também foi um dos propósitos da visita de Zelenska a Portugal. “Ela queria agradecer a ajuda da cidade de Lisboa nestes tempos tão difíceis mas também veio pedir mais ajuda em termos logísticos para o inverno que aí vem”, contou Carlos Moedas aos jornalistas no final da visita que fez com a primeira-dama ucraniana ao pavilhão do país na Web Summit.
“Combinámos que ela me enviava uma lista dos bens essenciais necessários e faço aqui um apelo aos lisboetas e a todos os portugueses, para darmos a ajuda para o que vai acontecer no inverno em cidades que estão completamente destruídas”, apelou o presidente da Câmara de Lisboa.
O pedido voltou a ser feito por Zelenska na conferência com os jornalistas, onde a primeira-dama rejeitou a ideia de que o contexto económico bem como a duração da guerra possam criar “cansaço” na comunidade internacional e, consequentemente, provocar uma diminuição das ajudas enviadas ao país. “Quando me perguntam sobre o cansaço que a guerra causa, eu é que fico cansada”, vincou.
“Claro que nos preocupa, e eu percebo que as pessoas estejam cansadas, mas não conseguem imaginar quão cansados estão os ucranianos. Se nos rendermos a este cansaço, vamos estar a desistir. E eu peço isto repetidamente: não cedam a este cansaço, é um sentimento muito negativo”.
Com os sentimentos negativos de lado, na medida do possível, a primeira-dama ucraniana focou-se sobretudo em histórias de resistência. “Há muita resiliência emocional na Ucrânia. Se procurarem nas redes sociais, encontram muitos memes que brincam com a situação. É humor negro, é certo. As pessoas tiram fotografias de velas e escrevem: ‘estamos às escuras mas ainda conseguimos ver o lado negro dos vossos crimes’, ou então, ‘não temos luz mas vocês não têm alma'”.
A criatividade dos ucranianos em tempos de guerra, ou como lhe chamou na noite de abertura, “um regresso ao passado que não pedimos”, não tem tido limites, revelou. “Como não têm luz, as pessoas em Kiev descobriram que os carros elétricos, como os Tesla, podem ser powerbanks. Então as pessoas juntam-se em comunidade para usar os carros como powerbank. Somos resilientes, temos técnicas de sobrevivência criativas e vamos sobreviver a isto”.
Ciente de estar a falar para um público que veio a uma cimeira tecnológica, Olena Zelenska não deixou passar a oportunidade de mandar uma mensagem às redes sociais que censuram fotografias da guerra por terem alegadamente “conteúdo sensível”. Uma fotografia publicada pela própria primeira-dama da Ucrânia foi censurada. “Não escondam isto. Isto é a verdade e o mundo deve saber”, declarou.
Naquela que é considerada a guerra “mais tecnológica de sempre”, o mundo também ficou a saber que pode “juntar-se à vitória da Ucrânia” através da tecnologia. A garantia foi dada por Mykhailo Fedorov, vice-ministro ucraniano, que também teve uma agenda intensa no terceiro dia da Web Summit. Ainda que sem seguranças. E vestido de Balenciaga.
“Estamos a travar uma guerra contra um inimigo poderoso, o segundo maior exército do mundo. Vocês podem juntar-se à nossa vitória”, declarou no palco principal do evento. “Durante estes oito meses testámos e lançámos diferentes tecnologias no mais curto espaço de tempo possível. Somos o melhor país para vocês desenvolverem e testarem as vossas ideias”, declarou, apelando aos empreendedores para que prestem atenção ao talento para a tecnologia que existe na Ucrânia.
Fedorov foi mais longe e não censurou “imagens sensíveis”. Mostrando ao público presente uma fotografia de um soldado russo, indicou que o rosto no ecrã era de um saqueador, que enviou para a Rússia 66 quilos de roupa roubada da Ucrânia. Seguiu-se a fotografia do irmão, um soldado russo que enviou para casa vários bens roubados, como ecrãs LED. “Podia dar-vos centenas de nomes. Conseguimos identificar cada um deles graças à inteligência artificial. Eles são criminosos de guerra, não são meros ladrões”.
Desfiando todo o potencial da tecnologia e o papel que esta está a ter na guerra, Fedorov falou ainda do exército de IT (tecnologias de informação) que repele ciberataques, dos drones que têm um papel “importantíssimo”, e do Starlink de Elon Musk, que permite ao país ter internet desde 26 de fevereiro. “O Starlink mudou esta guerra. Estou grato a Musk pela resposta imediata”. Na conferência de imprensa que deu de manhã, já tinha garantido que falou com o novo dono do Twitter sobre a continuidade do Starlink na Ucrânia e que a resposta foi a de que “está tudo bem”. Não saiu do palco sem voltar a relembrar que “vocês têm uma oportunidade de salvar vidas”. E recebeu a maior ovação de pé que o Altice Arena viu hoje.
As preocupações de Paddy Cosgrave e as ambições de manter a Web Summit uma “Suíça”
A conferência de Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit, é já uma espécie de tradição da cimeira. Os voluntários da sala de imprensa não deixam que os jornalistas esqueçam que o “patrão” do evento vai falar. E num dia em que a Ucrânia foi o tema forte, Cosgrave não podia ignorá-lo. Deu os parabéns às forças de segurança portuguesas e reconheceu a dificuldade da operação. “É extremamente complexo e têm de gerir o acesso ao local do evento. São medidas de segurança que nunca tinham sido implementadas num evento desta dimensão”, confessou.
Paddy começou por fazer um balanço da edição deste ano – “esticada até ao limite”, a “usar todas as áreas possíveis” da FIL e não só – mas depressa a conversa ganhou tonalidades de planos para o futuro.
O principal rosto da cimeira tecnológica já pensa na edição de 2023 e está disposto a permanecer em Lisboa para lá de 2028. “Estamos aqui até 2028 e vejo-nos a ficar aqui além disso.” Mas não escondeu a preocupação com as questões de espaço. “Estou preocupado com os limites de espaço, temos de ser muito cuidadosos para não sobrelotar o espaço ao ponto de ser perigoso”, partilhou.
O próximo ano promete trazer vários desafios a Paddy Cosgrave, a começar pela estreia da Web Summit no Rio de Janeiro. Mas o irlandês quer mais, muito mais. Aliás, não escondeu a ambição de fazer com que a marca seja conhecida noutros continentes. “A ambição é a de tornar a Web Summit ainda mais global do que já é.”
Para isso acontecer, disse que já existem conversações a decorrer com delegações do Dubai e do Médio Oriente. A novidade foi que já tem pelo menos um intervalo temporal para o evento em África. Ou, pelo menos, uma ambição, explicando que tem esperança de levar o evento até África “em 2025 ou 2026”. Em resposta à imprensa asiática, até partilhou a existência de “conversações para potencialmente fazer algo em Pequim”. “Quero que o mundo seja o mais aberto possível.”
Enquanto estas ambições não se materializam, há pelo menos uma vontade que Paddy Cosgrave tem por agora, a de tentar fazer com que a “Web Summit permaneça como uma espécie de Suíça [neutral] durante três dias”. Pouco tempo antes do evento, a organização retirou o convite aos responsáveis do Grayzone [um site gerido por um jornalista norte-americano que é associado à extrema esquerda], após críticas de que o site estava a propagar narrativas anti-governo da Ucrânia. “Percebemos a reação de muitos à presença da Grayzone em Lisboa e prometemos ter uma abordagem a temas cruciais sobre a liberdade de expressão e plataformas tecnológicas com mais cuidado”, explicou a Web Summit em comunicado, a 26 de outubro.
Cosgrave abordou o tema e referiu que alguns “jornalistas expressaram nojo” por a sua organização ter “censurado jornalistas” ao retirar o convite à Grayzone. O responsável da Web Summit tem consciência de que não é possível agradar a gregos e a troianos, mas deixou no ar algumas ideias. “Eles [Grayzone] não foram retirados do Spotify, continuam no Twitter.” “Quero continuar a ser a Suíça”, repetiu. “Há um equilíbrio, estamos a tentar pôr toda a gente na tenda”, exemplificou sobre a vontade de ter vários pontos de vista diferentes.
Não foi só o site Grayzone a ser alvo de contestação. Também Noam Chomsky, um dos destaques do último dia desta edição, foi alvo de críticas. “Vou dizer isto muito publicamente: algumas altas figuras tentaram cancelar [a participação] de Noam Chomsky. E dissemos que não.” Lembrou que é importante começar a discutir “quais são os parâmetros aceitáveis” para o discurso, sublinhando que é importante “levar o assunto a sério”.
A sétima edição da Web Summit em Lisboa termina esta sexta-feira. O último dia traz ao palco principal o inventor da World Wide Web, Tim Berners-Lee, Naomi Gleit, da Meta, e também Noam Chomsky, linguista e filósofo. Cabe mais uma vez a Marcelo Rebelo de Sousa encerrar o evento. No ano passado, o Presidente português despediu-se da plateia com a ambição de ter 100 mil pessoas na cimeira em 2022. Apesar de ter recorrido a estruturas temporárias para aumentar o espaço, Paddy Cosgrave não fez a vontade a Marcelo – resta saber o que é que o chefe de Estado ambiciona este ano.