Os liberais gostam de dizer que se sentam aos ombros de “gigantes como Smith, Locke ou Mill”. Mas, durante os dois dias que durou a VII Convenção da Iniciativa Liberal, não se pode dizer que as grandes inspirações do partido tenham entrado no Centro de Congressos de Lisboa. Em contrapartida, não faltaram carneiros, um coronel, arroz de cabidela e muita, muita lavagem de roupa suja.
Prémio “Montagem Sonora”: A Carneirada
Quem costuma participar em congressos partidários sabe que não basta aplaudir e agitar as bandeiras para garantir um apoio robusto: os partidos usam técnicas como distribuir os militantes por pontos estratégicos para aproveitar a acústica das salas e garantir um efeito sonoro impressionante, criando uma dinâmica favorável ao candidato preferido. Neste caso, o facto de parte dos membros participar online dificulta a medição do palmómetro.
Ainda assim, se Carla Castro foi claramente mais aplaudida no sábado, quando fez o seu discurso, ao final da noite os dois principais candidatos decidiram entrar num despique caricato – com os apoiantes dos dois focados em garantir que cada um deles saía a ganhar no campeonato das palmas e dos gritos.
Durante alguns minutos, fizeram turnos no palco para fazerem apelos finais ao voto, com Rocha a acusar os adversários de não perceberem como funciona o partido (e a acumular, assim, alguns apupos) e Paulo Carmona, número dois de Castro, a rematar garantindo que do seu lado “não há carneirada”. Com os apoiantes divididos, os aplausos foram servindo para definir o tamanho das duas trincheiras, cada vez mais distantes.
Prémio “Big Brother”: Cotrim, Mayan e Carla Castro
No Big Brother, os concorrentes costumam garantir que são frontais, diretos, e dizem toda a verdade, por muito que doa aos adversários; e as conversas na IL – que chegaram, nalguns casos, a incluir insultos lançados no púlpito – não foram muito diferentes. E como a Convenção se prolongou muito para lá do tempo previsto — a determinada altura, os membros estavam literalmente impedidos de sair do pavilhão –, a experiência não foi muito diferente da de um reality show.
Nestas coisas, o exemplo costuma vir de cima. E Cotrim Figueiredo esteve à altura. O agora antigo líder do partido desafiou Mayan Gonçalves a dizer-lhe na cara as críticas que fez aos microfones do Observador (comparou o funcionamento da direção cessante à de um comité central). Na TSF, minutos depois, aumentava o tom: “Mayan devia ser homenzinho”. A determinada altura, tornou-se difícil distinguir se era uma discussão entre concorrentes do Big Brother ou entre colegas de partido.
E nem ficou por aqui. A Carla Castro, Cotrim Figueiredo deixou um desafio do género: “Não teve hombridade de me dizer o que pensava na cara. Fiquei desagradado. Não gostei”, sublinhou.
Apesar de tudo, não se pode dizer que o nível de argumentação tenha sido exclusivo de uma das partes. “Um bom ex-líder é um ex-líder calado”, devolveu Miguel Ferreira da Silva, também ele antigo presidente da Iniciativa Liberal. É o que dá conviver 24 sobre 24.
Prémio “Pires de Lima”: Rui Rocha
Será difícil para quem assistiu ao congresso que começou a traçar o destino do CDS – o congresso de Aveiro, que elegeu Francisco Rodrigues dos Santos, em 2020 – não fazer comparações com o que se passou este fim de semana em Lisboa.
Na altura, houve críticas ao poder instalado, que no CDS era representado pelos ‘portistas’ e aqui pela direção de Cotrim, que apoia Rui Rocha; houve farpas aos “barões e caciques” da linha oficial do partido; e houve quem apontasse que os críticos não passam de uma agregação de “ressentidos” – a mesma tese que os portistas defendiam no CDS.
O fim da história que começou em Aveiro é conhecido: Rodrigues dos Santos liderou a revolta das bases e ganhou, mas o CDS saiu do congresso partido ao meio – e embrenhou-se em guerras internas infindáveis até acabar por sair do Parlamento.
Na IL, a candidata que dizia representar as bases não saiu vencedora, mas houve momentos de verdadeiro déjà vu: o momento em que Bruno Horta Soares subiu ao palco para criticar a “ignorância atrevida” dos críticos da direção, lembrando o mérito que teve quem participou na construção do partido desde a primeira hora, foi dos primeiros que mereceram apupos sérios dos críticos da linha oficial.
No CDS, isso aconteceu ao histórico António Pires de Lima, que aconselhou a Rodrigues dos Santos que “apurasse a sua cultura democrática” e chamou “tribo” aos seus apoiantes. Os apupos que ouviu confirmaram aos portistas a sensação com que tinham entrado no congresso: tinham perdido o partido. No caso da IL, a linha oficial continua no poder — mas num partido mais dividido do que nunca.
Prémio “Quem sou, onde estou e para onde vou?”: Simões de Melo
Os apupos estiveram longe de ser uma raridade – até Rui Rocha, um dos candidatos, ouviu alguns –, mas neste ponto é Nuno Simões de Melo quem leva a taça. No final da intervenção polémica e bastante vaiada, houve quem respondesse e a sala aplaudiu: “O senhor está no partido errado.”
Este domingo, quando o primeiro nome da lista B (crítica da linha oficial do partido) começou a discursar, não demorou para que alguns liberais começassem a agitar-se nas cadeiras.
Quando falou do risco de o partido se tornar uma “melancia azul” – “liberal por fora, bloquista por dentro” – irritou a audiência. Quando criticou quem “tira selfies com bloquistas” e fala como eles, ouviram-se as primeiras vaias. E quando defendeu que as “minorias ativistas” devem ficar a falar sozinhas, esgotou a paciência do público, que o apuparia à saída do palco.
Ainda garantiu que não é “conservador”, gritou “liberdade” e citou Ronald Reagan, na esperança de encontrar terreno comum, mas sem grande sucesso entre os seus pares.
Prémio “Hora CDS”: Os Relógios da IL
Eram 11h13 quando a Convenção da Iniciativa Libera arrancou, altura em que passavam quase duas horas da previsão para o início da reunião magna. A explicação não demorou a surgir: os membros que estavam na sala e os que se juntavam online não eram suficientes para o quórum.
Assim, foi preciso aguardar que os liberais, mais precisamente os que assistiram remotamente, se fossem juntando até atingir o número necessário para avançar — lembrar que todos os membros se podiam inscrever na Convenção e que mais de 2300 o fizeram. Entre o falso arranque e o arranque legal esperou-se quase duas horas.
Mais revelador ainda: de acordo com os planos originais, o líder eleito deveria discursar às 13h30. Depois, passou 14h30. Afinal, prometeram os assessores do partido, seria às 17h30. Acabou por ser bem depois das 18h.
É caso para dizer que regressou a famosa hora CDS, onde os horários em pouco ou nada são cumpridos. O CDS não, mas a hora CDS voltou a ter representação parlamentar.
Prémio “Estrela Michelin”: José Cardoso
“Isto no fundo é tudo arroz.” José Cardoso passou grande parte da campanha a chamar “arroz e arroz” a Carla Castro e Rui Rocha, alegando que eram dois candidatos iguais, desde a linha de onde vinham ao que fizeram nos últimos anos.
Não estava em cima do palco a fazer o jantar, que acabou por ser das poucas coisas que aconteceu a horas, mas trazia receitas para distribuir: arroz malandrinho porque os adversários “copiam as ideias dos outros” ou até arroz de cabidela porque “resolveram acabar a campanha com sangue”.
José Cardoso, que diz ficar à parte das lutas internas, acabou por criticar tudo e todos nas entrelinhas, desde a sugestão de que há “lideranças que secam todos à volta” às acusações de que Carla Castro até se podia “enganar” e estar na direção uns meses, mas preferiu manter-se e esperar pelo momento certo.
Não leva para casa a liderança da IL, perde o lugar no Conselho Nacional que serviu de base a esta candidatura, mas fica com o prémio de estrela Michelin, merecido pela forma como tentou trocar a política por miúdos e trazer a cozinha até à campanha onde houve mais espaço para a lavandaria.
Prémio “5àsec”: Os Barões e as Baronetes
O ambiente aqueceu nas últimas semanas de campanha, Carla Castro chegou até a sugerir a existência de jogo sujo, e, provas faltassem, os dois dias de reunião magna constataram-no.
As intervenções foram-se sucedendo e o tom foi subindo, de parte a parte houve insultos, acusações e até discursos contra “barões e caciques”, contra sucessões dinásticas ou até mesmo declarações de honra e justificações de votos (como o próprio presidente cessante fez, dizendo que tem o direito à opinião e à expressão da mesma).
Ainda houve (poucos) a tentar meter ordem na mesa, mas em cima do púlpito cresciam respostas a intervenções anteriores e o bruá só aumentava: acusações sobre ligações familiares e distribuição de cargos; críticas aos “paus mandados” que seguem a linha da continuidade (palavra de Carla Castro) ou aos “ignorantes” que querem romper com ela (Bruno Horta Soares). Houve assobios, apupos e aplausos, mas no final deste domingo a dúvida que fica é se a roupa ficou limpa para voltar a ser usada.
Prémio “Nobel da Paz”: A Minoria
Infelizmente, não foi possível atribuir este prémio: o concurso não ficou propriamente deserto, mas nenhuma das pessoas que tentaram promover a paz no partido tiveram sucesso nessa missão. De resto, os próprios candidatos falaram bastante em união e diálogo entre fações – mas fizeram-no sempre antes ou depois de lançarem, eles próprios, lenha para a fogueira.
Ainda assim, atribuímos uma menção honrosa a quem tentou avisar o partido para as consequências da guerra aberta em que se meteu, caso, por exemplo, de Artur Pais, que subiu ao palco só para pedir aos colegas que não se dividissem em fações, “tornando impossível o objetivo partilhado” de chegar ao poder.
Mais uma vez, sem efeito. Como desabafava uma participante ao final da noite de sábado, ao subir ao palco: “Sinto que não estou zangada o suficiente para estar aqui…”. A maioria do partido discordaria.