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Imagine-se um cenário em que, em apenas cinco anos, municípios como Vouzela, São Brás de Alportel ou Moimenta da Beira aumentassem o seu número de habitantes numa proporção de 30.900% e assim passassem a ter a população de Madrid. É esta a dimensão do aumento de refugiados que rumaram à Turquia nos últimos cinco anos, como resultado da instabilidade sentida em vários países do Médio Oriente, com predominância para a guerra da Síria.
Vouzela, São Brás de Alportel ou Moimenta da Beira têm cerca de 10 mil habitantes cada — tantos quanto os refugiados que o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) registou como estando na Turquia em 2010. Poucos anos depois, e com o deflagrar da guerra na Síria em março de 2011, o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Ancara diz que tem 3,1 milhões de refugiados dentro da fronteira — aproximadamente o mesmo número de pessoas que vivem na capital espanhola. Entre estes, 2,9 milhões são sírios — ou seja, o equivalente à população de Roma.
O que diz o acordo entre a União Europeia e a Turquia?
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- Todos os “migrantes irregulares” que cheguem à Grécia a partir da Turquia serão enviados para trás;
- Por cada sírio reenviado para a Turquia, os países da União Europeia acolhem outro;
- Em troca, as conversações para a entrada da Turquia na UE serão retomadas; os cidadãos turcos vão poder entrar na zona Schengen (à exceção do Reino Unido) sem visto a partir de junho e a União Europeia vai dar 3 mil milhões de euros (a somar a outros tantos que já tinha transferido) à Turquia para financiar a assistência aos refugiados.
Assim são os números analisados lado a lado. Mas talvez baste olhar para eles de forma absoluta para entender a dimensão da questão: no espaço de uma mão cheia de anos, a Turquia tornou-se no país com mais refugiados no mundo. E, tendo em conta o acordo firmado em março, entre a União Europeia e a Turquia, a tendência será para esse número aumentar.
Contra toda esta situação estão ONGs como a Amnistia Internacional, a Human Rights Watch e também o ACNUR, que têm criticado o programa de reenvio de refugiados para a Turquia, que entrou em prática a 4 de março. E, aparentemente, grande parte dos refugiados também se opõe à possibilidade de serem obrigados a parar o seu êxodo na Grécia para depois voltarem à Turquia. Mas porquê?
“A Turquia está muito longe de ser um país seguro para refugiados”, diz Andrew Gardner, investigador britânico da Amnistia Internacional na Turquia, ao telefone com o Observador. “A Turquia até pode ser considerado um país seguro nos papéis que foram assinados com a UE, mas no terreno a situação é bem diferente.”
Perigoso para entrar…
Segundo Gardner, os problemas começam ainda antes de os refugiados chegarem à Turquia. “O objetivo da Turquia, neste momento, é fechar a fronteira e impedir que as pessoas vão da Síria para lá”, explica.
Neste momento, a Turquia está a construir um muro de cimento com quatro metros de altura e que deverá cobrir os 911 quilómetros da fronteira com a Síria — a 7 de abril, um terço da obra já estava concluída. Enquanto isso, o exército turco está permanentemente de guarda na fronteira com aquele país que vive uma guerra civil. O pretexto oficial é prevenir a entrada de militantes do Estado Islâmico ou da al-Nusra (filial da al-Qaeda) na Turquia, mas a consequência é que os refugiados também acabam por ter mais dificuldades para fugirem da guerra. “E isto acontece ao mesmo tempo que os postos fronteiriços entre os dois países estão a ser fechados”, diz, citando o caso particular do posto de Bab al-Hawa.
O resultado, explica Andrew Gardner, vê-se do outro lado da fronteira com a Síria: “Neste momento estão cerca de 200 mil pessoas a viver na fronteira do lado sírio, em campos improvisados, sem qualquer tipo de organização ou saneamento. Vivem em condições chocantes e com a guerra à porta”.
Mais chocantes são os relatos que dão conta de casos em que as autoridades turcas disparam contra requerentes de asilo enquanto estes tentam atravessar a fronteira. De acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos, que conta com uma extensa rede de correspondentes na Síria, entre dezembro de 2015 e março deste ano morreram 16 pessoas, incluindo três crianças, enquanto tentavam atravessar a fronteira. A ocorrência mais recente foi revelada a 7 de abril, quando um “homem jovem” morreu devido a um ferimento causado por uma bala. Há também quem seja agredido pelas autoridades turcas pouco depois de atravessar a fronteira.
“Basicamente, o que eles têm pela frente é a perspetiva de poderem ser recebidos com tiros à medida que tentam fugir da guerra”, sintetiza Gardner. A verificarem-se estas ocorrências, a Turquia está em violação do artigo 33º da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, que assinou em 1951, em simultâneo com vários países da comunidade internacional. Naquele capítulo é referido que — com exceção de casos em que o refugiado “seja considerado um perigo para a segurança do país no qual ele se encontra” — nenhum país “expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada”.
… díficil para estar…
De volta aos números. Dos cerca de 2,9 milhões de refugiados sírios que vivem na Turquia, estima-se que uma esmagadora maioria de 90% viva fora de campos de refugiados. “Estas pessoas vivem com dificuldades enormes”, garante Gardner. “Não recebem nenhum tipo de ajuda em termos de subsistência para poderem viver e, embora tenham, na teoria, acesso a cuidados de saúde e educação, a verdade é que muitos deles não beneficiam de nada. Além disso, não têm acesso a trabalho legal”, explica.
No início do ano, o Governo da Turquia abriu a possibilidade de refugiados sírios receberem um visto para poderem trabalhar, caso vivam no país há pelo menos seis meses — mas na prática esta medida teve um impacto diminuto. Segundo o The Guardian, apenas 2 mil sírios receberam estas licenças, ou seja, menos de 0,1% da população de refugiados daquele país. “Arranjar essa licença é um processo burocrático e caro, o que o torna longe do alcance da maior parte das pessoas”, diz Gardner.
Isto não quer dizer que os sírios que estão refugiados na Turquia não trabalhem. Muito pelo contrário. “A única solução que as famílias arranjam é trabalhar em empregos clandestinos, onde são explorados e mal pagos”, diz aquele investigador da Amnistia Internacional. “E como os empregos dos adultos não chegam para cobrir todas as despesas, as crianças também são obrigadas a trabalhar para sustentar a família.” Em fevereiro, o Business & Human Rights Resource Centre (BHRRC) divulgou uma investigação onde determinava que 28 empresas do setor da moda recorriam a trabalho clandestino de refugiados, incluindo a H&M, a Nike, a Primark ou a C&A. A investigação falava de “relatos preocupantes de salários lamentáveis, trabalho infantil e abuso sexual de alguns refugiados sírios a trabalhar sem licença legal”. O BHRRC disse ainda que “algumas empresas estão a tomar medidas decisivas, mas a maioria está a fazer pouco” para remediar a situação.
“Eles pagam-lhes metade de um salário normal, porque sabem que as pessoas estão desesperadas”, diz Anna Tuson, uma neozelandesa que está na direção da Small Projects Istanbul (SPI), uma ONG de apoio a refugiados sírios. “Há uma discriminação bastante clara por parte dos empregadores”, garante, ao telefone com o Observador.
Além de apontar o dedo aos empregadores, Tuson também refere o “falhanço” do Estado turco na sua resposta — ou falta dela — à situação que tem em mãos. Mas faz uma concessão: “Isto é tudo demasiado grande para um só país”.
“Eles precisam de aprender a língua, as crianças precisam de apoio psicológico… Têm necessidades muito particulares, todos eles”, diz a neozelandesa. “E é impossível que apenas um país consiga dar resposta a isto tudo. A Turquia já tinha os seus próprios problemas antes disto acontecer. A Europa terá de fazer mais, terá de enviar mais dinheiro, sim, mas também mais peritos. Caso contrário, este falhanço vai continuar a crescer e a crescer.”
Foi precisamente esse “falhanço” que esteve na origem da ONG Small Projects Istanbul. “Reparámos que havia falhas enormes no que diz respeito aos serviços que estão ao dispor dos refugiados”, diz. “Supostamente eles têm direito à saúde e à educação, mas nada disso acontece. É obrigatório por lei que as crianças vão à escola, mas na verdade têm problemas no momento de inscrição, além de não haver nenhum esforço para eles aprenderem turco”, explica, para depois se repetir: “O Estado turco simplesmente não consegue lidar com isto”.
Ao início, a ação da SPI começou por dirigir-se sobretudo a crianças sírias, mas cedo a direção da ONG percebeu que teria de alargar o espectro para os adultos. Ao todo, servem cerca de 200 pessoas. Além de funcionarem como um ponto de encontro e centro de convívio entre sírios, oferecem ajuda financeira, workshops e também aulas de turco, inglês e alemão.
E, segundo Anne Tuson, há ainda uma outra barreira para os refugiados sírios na Turquia: a crescente discriminação dos turcos. É isso que a sua experiência empírica naquele país, onde vive há três anos e meio, lhe diz. “Quando vim para cá as pessoas falavam dos sírios dizendo ‘eles são nossos primos, precisam de ajuda, também são muçulmanos’ e coisas do género. Havia uma espécie de orgulho por terem um papel importante no panorama internacional”, refere. Mas, devagar, as opiniões foram mudando. “A perceção das pessoas foi-se alterando à medida que começaram a aparecer mais e mais refugiados. De um momento para o outro, ficou claro que esta situação era mais permanente do que temporária.”
Segundo uma sondagem divulgada no final de 2015, 84% dos turcos estão preocupados com a chegada de mais refugiados sírios ao país. E há quem expresse essa preocupação de forma bastante concreta. Foi o caso dos pais que se manifestaram em frente a uma escola primária recentemente construída em Kilis, cidade na fronteira com a Síria. O ajuntamento começou porque a escola, que funciona em dois turnos, daria lugar a aulas para crianças sírias à tarde. “A escola é nossa por direito, ficaremos com ela [nem que seja] à força”, gritavam em uníssono. Também houve quem dissesse: “Esta escola foi feita para nós. Não queremos que as crianças sírias sejam educadas aqui. Queremos que os nossos filhos sejam educados. Os sírios que vão para a escola onde iam antes”.
Está longe de ser um caso isolado. “Muitas das crianças sírias com quem nós trabalhamos na SPI são gozadas pelos outros meninos na escola, são vítimas de bullying de forma quase constante”, garante. “Até já houve casos em que os professores exigiram que os alunos sírios fossem expulsos. E eles assim deixam de ir à escola, simplesmente.”
Daí que, admite Anne Tuson, sejam frequentes os casos de sírios que estão na Turquia e que querem sair de lá. “Muitos deles dizem-me ‘já não consigo lidar com isto, pensava que vinha, que ia recomeçar a minha vida, mas aqui isso parece impossível’.”
… e obrigados a voltar.
Além dos relatos de requerentes de asilo sírios que são recebidos a tiro pelas autoridades turcas, a Amnistia Internacional tornou públicas várias histórias de refugiados que dizem ter sido reenviados para os países de onde tinham fugido — a maior parte da Síria, mas também do Afeganistão.
“As denúncias que temos falam de pessoas que foram reenviadas sumariamente para campos do lado da fronteira síria, incluindo menores”, explica Andrew Gardner, da Amnistia Internacional. “Conhecemos, entre tantas outras, a história de um rapaz de 12 anos que foi enviado com dois tios de volta para a Síria, enquanto os pais dele ficaram na província de Hatay [no sudoeste da Turquia, na fronteira com a Síria]. Neste momento, sabemos que estão num campo improvisado junto à fronteira, do lado da Síria. Quando lá chegaram deram-lhes um único cobertor, mais nada. Têm vivido à custa da caridade dos outros. Vivem miseravelmente.”
De acordo com os “vários relatos” que chegam à Amnistia Internacional, o modus operandi por detrás dos alegados reenvios de refugiados para os seus países de origem é recorrente. “Geralmente são pessoas que não estão registadas e que são apanhadas precisamente no momento em que estão prestes a tentar sair da Turquia. São apanhados em Izmir [de onde partem muitas embarcações para as ilhas gregas] ou junto à fronteira com a Bulgária”, explica Gardner. “O problema é que eles não estão registados porque as autoridades turcas não lhes permitem esse mesmo registo.”
A 18 de março, quando a UE firmava o acordo com a Turquia, a Amnistia Internacional reportou a situação de cerca de 30 requerentes de asilo afegãos — inclusive crianças — que foram detidos em Izmir por não terem visto de refugiados. Foram-lhes retirado os telemóveis, levaram-nos até Istambul e, de seguida, foram colocados num avião que partia para Kabul — a capital do Afeganistão, de onde tinham fugido aos talibãs. Pelo meio, terão sido forçados a validar com uma impressão digital documentos onde referiam que saíam da Turquia de forma voluntária.
A Amnistia Internacional, que soube deste incidente após ter entrado em contacto com um membro do grupo, pediu satisfações à autoridade turca para as migrações, que reconheceu que 27 afegãos fizeram aquele trajeto, mas de forma voluntária. Além disso, aquele órgão garantiu que eles nunca tinham pedido asilo na Turquia.
Em comunicado, o Ministério dos Negócios Estrangeiros turco negou as acusações de estar a reenviar refugiados para os seus países de origem, onde podem correr risco de vida. “As alegações não refletem, de todo, a realidade” lia-se naquela nota. “É triste que este tipo de notícias seja partilhado com o público de uma forma tão intensa.”
Andrew Grandner discorda. “São relatos muito consistentes”, afiança. “E é preciso sublinhar que são relatos independentes. A informação é detalhada, consistente e, em muitos casos, estamos a falar de pessoas que não têm acesso aos media e que nem estão perto umas das outras no momento em que são detidas. A ideia de que tanta gente pode inventar a mesma história tantas e tantas vezes não é credível.”