Não foi uma decisão fácil a que os pais de Shahreza Hussini Changiz, há pouco mais de um mês, tiveram de tomar.
Vinte anos depois da queda de um regime extremista islâmico que tinha provado ser especialmente cruel para as mulheres e, talvez mais ainda, para o povo hazara, a minoria xiita a que pertencem e que foi perseguida e massacrada pelos estudantes liderados pelo mullá Omar, as forças talibãs tinham acabado de recuperar o Afeganistão. Ainda antes disso, revelaria a Amnistia Internacional, já tinham torturado e assassinado pelo menos nove homens hazaras. O facto de, em Bamyian, também terem feito explodir a estátua de Abdul Ali Mazari, líder histórico da minoria, morto em 1996, também não augurava nada de bom.
Quem podia, estava a abandonar o país. Quem, como eles, não tinha meios para isso, só podia esconder-se e esperar que tudo corresse pelo melhor. Até que, de repente, ali estava uma oportunidade de fuga. Uma organização não governamental americana, em conjunto com várias jogadoras da seleção nacional de futebol a viver no estrangeiro, tinha em marcha um plano para salvar o maior número possível de jovens futebolistas do país — como a sua própria filha, de apenas 15 anos.
Só havia um senão: “Só podiam levar três pessoas”, conta ao Observador, em Lisboa, Shahreza, 16 anos, também ele jogador de futebol, mas num clube de Cabul e não na equipa nacional, como a irmã. “Temos mais quatro irmãos pequenos. Se a minha mãe viesse connosco, o meu pai não conseguia tratar deles. E ao contrário também não era possível”, continua o rapaz, num inglês tímido mas mais desenvolto do que o da maior parte do grupo de 80 afegãos a que Portugal concedeu asilo, no âmbito da referida missão de resgate — “Missão Bolas de Futebol”.
No final, optaram por salvar Shahreza, à boleia da irmã, e por fazê-los viajar na companhia de um tio materno. “Não estava preocupado comigo, mas com eles, que estavam sob ameaça”, reconhece Zaki Raza, que entretanto se aproximou do sobrinho. Quando nasceu, há 25 anos, o país tinha acabado de ficar sob o controlo dos talibãs, mas desse tempo tem poucas memórias. Cresceu livre desse jugo, que terminou quando tinha 5 anos. Estudou no Paquistão, começou a trabalhar como engenheiro de sistemas informáticos, o ano passado, diz, recusou uma oportunidade para ir trabalhar para a Austrália. Agora que os talibãs voltaram a controlar o país, já em Lisboa, prepara-se para começar de novo, com os dois sobrinhos a seu cargo.
“Estou muito feliz por estar aqui e muito triste pelo Afeganistão”
É uma sensação agridoce a que nos transmitem Shahreza, Samira, de 19 anos, e Marjam, sua irmã, de apenas 14. Sempre em inglês, a expressão mais arranhada é um “I’m so happy” — por estarem a salvo, em Portugal, longe do Afeganistão. O pior é o que se lhe segue: “Estou triste porque no Afeganistão estão mais pessoas da minha família, mais amigos. Estou muito feliz por estar aqui e muito triste pelo Afeganistão”, diz Samira Karimyar, que em Cabul estudava Direito na universidade, plano que quer definitivamente retomar assim que for possível, mas em Portugal.
“Vivíamos em Cabul, em Karte Sakhi, mas havia muitas lutas, perto do aeroporto toda a gente estava a lutar, as crianças, as mães e os pais estavam todos a chorar. O Afeganistão está muito perigoso, muito perigoso, Cabul está muito perigoso”, explica. “Para as mulheres é ainda mais perigoso. Os talibãs não nos deixam sair à rua, nem ir à escola, nem jogar futebol”, lamenta ainda a jovem, entretanto interrompida pela irmã.
Cinco anos mais nova, Marjam está ainda a recuperar da euforia que foi abraçar Farkhunda Muhtaj, a insuspeita professora de escola no Canadá que é também a capitã da seleção afegã feminina de futebol — e uma das ativistas que tornaram a “Missão Bolas de Futebol” possível. “Estamos muito felizes, amanhã vamos jogar futebol com a Farkhunda”, diz Marjam, radiante, ao Observador. Quando crescer, diz, com ar subitamente grave, quer ser jogadora de futebol, “como Cristiano Ronaldo”, e “Presidente da América”. Como? Isso mesmo: “Presidente da América”, repete, não vá perder-se nada na tradução.
Ao Afeganistão não tenciona regressar, só lamenta que os familiares e amigos que lá deixou não possam também abandonar o país. “Antes vivíamos em Cabul, tínhamos medo dos talibãs. Queria que todos os meus amigos no Afeganistão viessem para aqui”, ensaia num inglês macarrónico, para depois acrescentar as saudades que tem da tia e do tio, que também ficaram para trás.
Ao contrário de Shahreza e da irmã, que estão a passar pelo trauma da separação dos pais e do resto dos irmãos, Marjam e Samira tiveram a felicidade de poder sair do país com toda a família — pai, mãe e dois irmãos mais novos. “O meu pai era um homem de negócios e a minha mãe era doméstica”, conta Samira, para explicar depois que, à luz da tradição afegã, são “uma família pequena”.
Desde que todo este pesadelo começou, só tiveram de estar separados durante as três semanas que passaram escondidos num hotel em Mazar-i-Sharif, no norte do Afeganistão, à espera de luz verde para finalmente poderem sair do país, primeiro para a Geórgia, depois para Portugal. E, mesmo assim, estavam à distância de um único corredor, homens para um lado, mulheres para o outro.
Três semanas em dois quartos de hotel, com os talibãs à espreita
Ao todo, a “Missão Bolas de Futebol” retirou do país 80 pessoas, 26 jovens futebolistas afegãs e as respetivas famílias. Durante as semanas que precederam a fuga, conta Shahreza, estiveram escondidos em apenas dois quartos de hotel.
Perante a nossa incredulidade, o rapaz pede caneta e papel e começa a desenhar: primeiro um retângulo que representa o hotel, depois dois quartos, separados por um corredor. Aponta para um, “Homens”, e depois para outro, “Mulheres”. Desenha as casas de banho, uma para cada divisão, numa das pontas dos quartos, e a zona de chuveiros, no lado oposto. “Aqui, na rua, havia um mercado. Os talibãs andavam na rua, para a frente e para trás, sempre que iam ao mercado, comprar alguma coisa, o dono do hotel mandava-nos esconder. Se os talibãs nos encontrassem íamos ter problemas”, recorda Shahreza, que perdeu a conta às vezes que receberam ordem para se esconderem numa divisão posterior aos quartos.
“Os talibã não nos deixavam jogar futebol”. Relato de um jovem afegão acolhido em Lisboa
Ao longo desses dias de espera, garante o rapaz, que diz que dormia no chão, com uma almofada e um cobertor, comida pelo menos nunca faltou. “Comíamos no quarto também, tínhamos comida boa: às vezes comíamos arroz ou feijão e às vezes um prato que temos no Afeganistão que se chama qabili.” Considerado o prato nacional afegão, o qabili palau é um prato de arroz com carne de borrego e passas. Os quartos que Shahreza descreveu ao Observador seriam muito provavelmente camaratas. As raparigas, em número muito superior, pelo menos tinham beliches para dormir.
O pior da longa espera, que ninguém tinha como saber se iria ou não ser bem sucedida, foi arranjar forma de ocupar os dias. E manter um grupo de 80 pessoas, a maior parte delas crianças ou adolescentes, minimamente sossegado e silencioso. A partir do Canadá, Farkhunda Muhtaj foi essencial: todos os dias fazia uma chamada por zoom, para tentar dar ânimo e esperança às raparigas, que só esta quarta-feira teve oportunidade de conhecer pessoalmente, junto à Torre de Belém, em Lisboa.
“Foi uma jornada emocional, estas raparigas passaram por tanto e eu estive sempre a acompanhá-las, passaram por tantas experiências, foram tão resilientes, conhecê-las finalmente pessoalmente foi emocionante. Sei o que elas passaram, estou tão orgulhosa delas, elas merecem isto. E vão ter um futuro fantástico aqui”, disse a capitã da seleção afegã aos jornalistas portugueses.
Para trás, ficaram as sessões de ioga, o exercício mais silencioso possível, que Farkhunda as pôs a fazer inúmeras vezes nesses dias, e os trabalhos de casa que lhes passou, para tentar fazer com que o tempo passasse mais rápido. Apesar de Portugal lhes ter concedido asilo, Shahreza, Marjam e Samira não sabem ainda onde vão viver — continuam na pousada da juventude, em Lisboa, onde o grupo foi alojado no domingo, 19 de setembro, depois de aterrar em Portugal, mas o Governo já fez saber que as várias famílias resgatadas pela missão vão ser distribuídas pelas várias regiões do país.
De camisa branca e colete típicos do país onde nasceu, Shahreza, bem mais atilado do que os 16 anos poderiam prever, diz que pesquisou Lisboa na internet e que o resultado o satisfez: “Vi que as pessoas são simpáticas, o tempo é muito bom e que é uma cidade onde os turistas vêm para visitar”. Fica a faltar o resto, os pais e os quatro irmãos, que permanecem na capital afegã e já começaram a sofrer represálias pela fuga dos filhos mais velhos do país. “Liguei ao meu pai para saber como estavam as coisas no Afeganistão”, conta ao Observador. “Disse-me que toda a gente sabe que a minha irmã é jogadora de futebol. Os talibãs foram à nossa casa e perguntaram ao meu pai onde é que nós estávamos. Ele disse que os filhos tinham ido para outro lado e eles bateram-lhe. Estou preocupado com a minha família. Os talibãs foram a nossa casa e bateram no meu pai.”