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"Os Vampiros": redesenhar uma história da Guerra Colonial

A nova novela gráfica de Filipe Melo e Juan Cavia faz uma travessia entre a Guiné e o Senegal em 1972. Falámos com os autores sobre a ideia, o processo e as influências que a geraram.

Uma esplanada e uma tarde em Lisboa. O português Filipe Melo e o argentino Juan Cavia, que veio passar alguns dias a Portugal, acabaram de ver pela primeira vez as cópias de Os Vampiros, o novo livro de banda desenhada assinado pelos dois. O objeto em si é bem maior e pesado do que qualquer dos quatro volumes de As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy — e bem mais sério e com muito menos piada (de propósito). Melo diz: “Não é tão fácil falar deste trabalho ou promovê-lo, acho que é um bocado o lugar-comum que se vê aqueles escritores pretensiosos a dizer e que eu odeio ser… mas tudo o que quero dizer está no livro”.

CAPA

“Os Vampiros”, de Filipe Melo e Juan Cavia (Ed: Tinta da China)

Com uma história passada em plena Guerra Colonial, ao longo de dois dias em 1972, esta novela gráfica segue um grupo de soldados que vivem os horrores do conflito enquanto tentar viajar da Guiné-Bissau para o Senegal. Segundo Filipe Melo, o nome tem três interpretações, mas ele “não quis deixar claro em qual das conotações se baseia”. Por um lado, há a canção de José Afonso: “Aquela em que Zeca canta ‘eles comem tudo e não deixam nada’.

Por outro, “há um grupo de comandos real que combateu mesmo na Guiné e se chamava Vampiros”. E, por fim, há os monstros clássicos, mas o autor adverte que o livro “é uma tremenda deceção para quem estiver mesmo à procura de vampiros”. Não há aqui, portanto, uma vontade de fazer dinheiro à custa de uma moda, até porque já iriam uns anos atrasados.

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Os autores

E quem é esta dupla? Filipe Melo é, claro, um pianista, argumentista e muitas outras coisas, que desde 2003, ano em que escreveu e produziu “I’ll See You in My Dreams”, uma curta-metragem de zombies – sete anos antes da popularidade de “The Walking Dead” –, se tornou também um nome a ter em conta na ficção e humor português.

Seguiu-se “Um Mundo Catita”, uma minissérie televisiva, a já mencionada saga de BD “Dog Mendonça e Pizzaboy” e “Uma Nêspera no Cu”, o altamente bem sucedido podcast com Nuno Markl e Bruno Nogueira, cuja segunda temporada começou recentemente. Aliás, esta semana, quando foram postos à venda bilhetes para uma versão ao vivo no Coliseu de Lisboa para 15 de Setembro, foi preciso abrir outra data no dia seguinte.

Já Juan Cavia é um ilustrador e diretor de arte (há pouco tempo tornou-se também realizador, diz ele que por “mero acaso”) que trabalha em publicidade e fez cenografia para filmes do seu país natal como “O Segredo dos Seus Olhos”, que venceu o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2010, bem como “Metegol”, do mesmo realizador, Juan José Campanella.

"Aprendi mais com este livro do que com qualquer outra coisa. Aprendi que escrever uma história ou um guião é profundamente difícil e sempre me tinha parecido uma coisa relativamente fácil"
Filipe Melo

Ambos têm tendência a vestir camisas e casacos e calças que aparentam ser de fato, esteja ou não calor, e ambos puxam um pelo outro. “Foi um trabalho muito intenso em termos de exigência mútua, a um nível que não tínhamos nos outros”, explica Cavia. Na dupla, Melo faz mais a parte da escrita, enquanto o colega argentino ilustra, mas na prática estão ambos bastante envolvidos nas tarefas um do outro. Tal como em “Dog Mendonça e Pizzaboy”, a ideia original era fazer um filme – e o guião desse filme até ficou em terceiro lugar no concurso GUIÕES 2014. Estava escrito desde 2010, antes do segundo volume da saga que fizeram ter saído, mas, diz o ilustrador, “o trabalho concreto de desenhá-lo só começou no ano passado e durou quatro ou cinco meses”.

Jogos de guerra

O grande desafio foi o de transformar a história em algo pessoal. Melo nasceu em 1977, Cavia em 1984 (e bastante longe). Nenhum deles viveu a Guerra Colonial. Tiveram de se meter na pele das personagens e, acima de tudo, fazer mais pesquisa do que tinham feito antes. Melo falou com vários ex-combatentes, reuniu histórias – e usou várias delas – e percebeu, durante as primeiras entrevistas que gravou, que as partes mais interessantes estavam fora das respostas e dentro de um discurso livre, quando ele próprio não estava a prestar atenção. “Algumas das conversas eram muito mais interessantes do que uma história de terror clássico com monstros”, conclui.

6 fotos

Além disso, Filipe Melo recorreu a várias outras fontes. Documentários como “A Guerra”, de Joaquim Furtado – “está brilhante”, diz — “uma série de livros” e ainda um blog: Luís Graça & Camaradas da Guiné. “É uma espécie de encontro de ex-combatentes online. Foi aí que encontrei alguns retratos mais gore que saíram no Correio da Manhã, que publicava relatos das experiências dos soldados. Ali se vê como é que pessoas que não escrevem contam a guerra e como é que falavam. Ajudou-me muito”, explica.

Encontrou gente com quem falar ao lançar um repto entre as pessoas que conhecia: “Quem é que conhece alguém que esteve na Guiné nos anos 70?”. E conseguiu. “Foi curioso conversar com quem esteve no início da guerra e no final e é completamente diferente. Tenho a impressão que houve muitas mudanças – e obviamente não vivi este período, tudo o que tenho é uma impressão ténue do que se terá passado. O soldado normal foi perdendo alguma da convicção que tinha inicialmente. E muita gente tinha uma convicção profunda no que estava a fazer e tiveram uma experiência, não posso dizer que foi boa. Mas veem-se com estrategas, apaixonados da guerra, militares, que encontraram ali um propósito”, continua.

Essa mudança deu-se sobretudo quando as forças do PAIGC, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, “tiveram acesso a armamento, especialmente anti-aéreo”: “Aquilo começou a ficar muito mais duro, via-se que as pessoas ficaram traumatizadas. Ouvi histórias, que nem sequer pus no livro, sobre o que se passou depois. Uma das pessoas que mais contribuiu para este livro, um senhor chamado Fernando Líbano, veio para cá, entregou a farda e disse que nunca mais queria ouvir falar daquilo. Nunca percebeu que estava traumatizado até ver um filme com alguém no meio do deserto, cheio de sede, e não consegue beber água. Começou a ter um ataque de pânico. Sempre que vê alguém com sede isso gera uma ansiedade tremenda. Ele relaciona isso com um período em que esteve dois dias sem beber nada e viu homens a alucinarem com a Virgem Maria e a gatinharem pelo chão sem dizerem coisa com coisa.” Outra parte importante da pesquisa foi perceber a idade dos envolvidos. “Estamos a falar de miúdos, de 21 ou 22 anos. Quer dizer, o que é um miúdo de 21 ou 22 anos hoje? Está no Sudoeste, na Zambujeira do Mar, a ver o Agir”, diz.

Os pequenos grandes detalhes

Filipe Melo tinha medo de não acertar nos pormenores. Para isso, não falou só com ex-combatentes portugueses. “Comecei a investigar o Amílcar Cabral e só descansei quando mandei o livro à filha dele, que conhece muito bem a herança do pai. Falei com ela porque queria que o livro fosse sobre a guerra e não sobre uma visão portuguesa ou guineense da guerra. Qual não foi a minha surpresa quando, pensando eu que ela ia dizer que ia contra tudo o que o pai representava, ela diz que [o livro] era uma ótima reflexão sobre o que é a violência da guerra, mas que nas bases do PAIGC não havia lâmpadas fluorescentes”. Já agora, esse pormenor não foi fácil de mudar: “Quando começámos, o Filipe dizia-me que dentro do quartel tinha de haver lâmpadas fluorescentes, porque era um clima frio e eu, como diretor de arte, tinha uma dúvida: não sei se funcionavam com geradores. Ele disse que não importava. Depois de ter feito tudo e pintado, disse que era preciso mudar. Eram 70 páginas, porque o livro se passa maioritariamente em dois cenários: a selva e um quartel”, explica Juan. “Chamámos o nosso velho amigo dos tempos do Pizzaboy, Santiago Villa, para mudar isso. Foi como o Mr. Wolf do “Pulp Fiction”, se o creditássemos seria como amigo e corretor de lâmpadas”, diz Filipe.

"Ouvi histórias, que nem sequer pus no livro, sobre o que se passou depois. Uma das pessoas que mais contribuiu para este livro, um senhor chamado Fernando Líbano, veio para cá, entregou a farda e disse que nunca mais queria ouvir falar daquilo"
Filipe Melo

Por falar em referência cinematográficas, os livros de As Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy tinham introduções assinadas por realizadores como John Landis, George A. Romero e Tobe Hooper, aqui não há nada disso: os dois queriam que o livro tivesse só a história. Mas a influência do cinema está lá. “É bastante cinematográfico, é menos banda desenhada do que o ‘Pizzaboy’: não quebra a quarta parede, os desenhos não saem por fora dos painéis”, diz Juan. “Os segmentos de sonhos são quase em 8mm”, diz Filipe. Quanto à inspiração, alguma dela vem, como em “Dog Mendonça”, dos filmes dos anos 80. Com “Predador” à cabeça, mas não só. “Estava a ver muitos filmes de terror clássico, como ‘Deliverance’ [‘Fim-de-Semana Alucinante’]. Não é bem de terror, mas tem a ideia da clausura e estava muito interessado em explorar isso”, acrescentando que o que vai buscar aos filmes é a estrutura: “Gosto muito de estudá-las, acho que é válido copiar estruturas, não ideias”.

“Vimos muitos filmes de guerra”, conta Melo, que menciona até “’Non’, ou A Vã Glória de Mandar”, de Manoel de Oliveira, que tem uma parte que lida com a própria Guerra Colonial. “O filme do Terrence Malick, ‘The Thin Red Line’ [‘A Barreira Invisível’]. Acho que o Juan desenhou isto tudo ao som da banda sonora desse filme”. “É o filme que mais se centra no ponto de vista dos soldados, que não sabem quem está ali, o que estão a fazer ou o que se vai passar. Sentes que estás com eles. Isso acontece aqui”, diz o colega sul-americano. “No fundo, o livro pega na estrutura clássica de filmes de terror e na tradição de construção de histórias de medo que numa fase inicial talvez fosse mais clara”, mostra Filipe. “Fomos distorcendo essa estrutura.” Outro ponto de referência, um filme que surgiu meio do processo de trabalho e deu alguma dessa confiança, foi “O Homem Duplicado”, adaptação do livro de José Saramago feita pelo canadiano Denis Villeneuve.

Como sempre mas não muito

Ao ser diferente do que veio antes, e ao não estar ligado à série B e ao humor – e especialmente aos dois ao mesmo tempo –, ambos sentiram que não tinham “uma rede de segurança” como no que faziam antes. E, desta feita, diz Filipe, “confiámos muito mais na pessoa que lê, nos outros livros escrevíamos tudo de forma a que fosse claro e toda a gente percebesse as nossas piadas e personagens”. Mas mesmo que as piadas não existam em abundância, os dois tiveram a preocupação de ter momentos que evitavam que “fosse sempre tudo solene”, explica Juan. Até porque, esclarece Filipe, não pode ser sempre tudo soturno: “Não é assim. Se nos mandassem aos três para a guerra, provavelmente iríamos estar 80% do tempo a dizer merda. E quando se leva uma coisa muito a sério corre-se o risco de tudo se tornar uma piada gigante”.

filipe_juan_desenho

Os autores, Juan Cavia e Filipe Melo, num desenho dos próprios, feito especialmente para o Observador

Neste livro, dizem os dois, estavam muito mais expostos. Se alguém dissesse que os diálogos do “Dog Mendonça” eram estúpidos isso podia ser um elogio ou uma ofensa, aqui “uma má piada é uma má piada e uma má cena é uma má cena.” Daí a preocupação em acertar. “Aprendi mais com este livro do que com qualquer outra coisa. Aprendi que escrever uma história ou um guião é profundamente difícil e sempre me tinha parecido uma coisa relativamente fácil”, conta Filipe. Foi uma tarefa quase obsessiva: “A dada altura, a pessoa perde a consciência de que é só um livro, e um livro de banda desenhada, que especialmente num mercado como o nosso vai ser lido por pouquíssimas pessoas. Isso é talvez o mais bonito, perceber que o trabalho chega a um ponto em que a coisa assume uma importância pessoal muito grande, apesar de ser algo pequeno que no geral não tem importância nenhuma. Sentia mesmo que qualquer coisa que estivesse mal neste livro iria prejudicar o meu futuro. Então gerou-se uma obsessão doentia que tudo ficasse o melhor possível”. Cavia concorda: “Estou a olhar agora para o livro, recebemo-lo há 15 minutos e tinha tanto trabalho em cima e tenho a sensação de que fiz tudo o que pude, tudo o que se podia fazer”. Resta ver como será recebido noutras tardes, noutros sítios que não esta esplanada.

“Os Vampiros” é apresentado este fim-de-semana: sábado no Festival Internacional de Banda Desenhada de Beja, domingo na Feira do Livro de Lisboa. Está à venda a 1 de junho.

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