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D. R.

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Os vizinhos Santos e Toscano deram-nos música no quintal. Agora dizem "até já" do jardim

Com o país confinado, nos seus quintais (próximos) Ricardo Toscano e Bruno Santos deram concertos diários enquanto a internet transmitia. Este sábado o saxofonista e o guitarrista dizem "até já".

Dois talentosos músicos de jazz portugueses, com carreira consolidada, são vizinhos em Lisboa. Um deles vive com uma conhecida cantora e compositora, com quem tem uma filha. Um dia, em pleno confinamento devido à Covid-19, a cantora pergunta ao marido: que tal os dois rapazes irem para os  quintais, onde até se conseguiam ver (entretanto as chuvas de abril e maio estragaram a vista), e tocarem com distanciamento físico mas juntos, olhos nos olhos? Os vizinhos ouvem à janela, os concertos caseiros podem ser transmitidas pelas redes sociais e até ela pode juntar-se quando a filha deixar — porque não?

A ideia surgiu em março. No dia 17, na véspera de ser decretado o estado de emergência em Portugal devido à pandemia do novo coronavírus, o saxofonista, Ricardo Toscano, o guitarrista, Bruno Santos, e a cantora e compositora, Rita Redshoes (que tem um filha com Bruno Santos, chamada Rosa), anunciavam ao país via internet: dali em diante, todos os dias iam transmitir estes concertos caseiros pelas redes sociais. Chamaram-lhes backyard sessions, sessões de quintal, diariamente iniciadas às 16h.

Durante várias semanas de confinamento, o guitarrista, o saxofonista e mais amiúde a cantora e compositora foram a banda sonora de muitos portugueses: tocaram temas de jazz, canções do universo da música popular (cantada), temas infantis para a filha Rosa. Nos quintais próximos, que um deles apelidou de “Amazónia” pela vegetação e cenário tropical, passaram muitas tardes transmitidas em direto no Facebook e no Instagram.

Em julho, já com as sessões de quintal terminadas, o país a desconfinar e 50 sessões de música ao vivo transmitidas em streaming finalizadas, o projeto — que passou a ser conhecido como “Jazz no Quintal” — mudou de morada: Ricardo Toscano e Bruno Santos passaram a tocar juntos todos os sábados de julho, no jardim do Museu de Lisboa. Desta vez tinham espectadores, mas a entrada, gratuita, exigia reserva prévia para evitar aglomerações excessivas.

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Este sábado, os dois músicos juntam-se pela última vez neste formato para dizer adeus, ou pelo menos um até já, a este projeto de revisitação de standards de jazz em saxofone e guitarra. Para as despedidas, junta-se-lhes Rita Redshoes. O concerto, apesar de esgotado, será transmitido a partir das 16h na página de Facebook da Câmara Municipal de Lisboa.

A última atuação é o pretexto para uma conversa de Bruno Santos e Ricardo Toscano com o Observador. Em entrevista, contam como se lembraram de partilhar com o mundo as jam sessions no quintal, relatam reações dos vizinhos ao longo das últimas semanas, dão conta da surpresa com o impacto da iniciativa nas redes sociais e falam de como as suas backyard sessions poderão ter sido, para algumas pessoas, uma porta de entrada para ouvir música jazz. “Acho que muita gente que nos ouvia, quando ouvia nem pensava ‘estou a ouvir jazz'”, crê Bruno Santos — e subscreve Toscano.

Depois de dezenas de sessões, primeiro nos vossos quintais e depois no jardim do Museu de Lisboa, este sábado é a última — pelo menos programada e com este formato. Já estão com saudades? Ou não faltarão oportunidade para tocarem juntos, não só em palco mas também neste registo mais descontraído?
Bruno Santos — Ainda estamos a viver o momento, vamos tocar amanhã e temos tocado com alguma regularidade, saudades se calhar ainda não é o sentimento certo para descrever. Mas eventualmente é um sentimento que vai aparecer. Se calhar a alguma distância vamos olhar para isto não só com saudade, mas também como uma coisa bastante estranha por um lado, mas ao mesmo tempo muito curiosa.

De facto foi um contexto super… Foram uma série de coincidências, o facto de não podermos sair de casa, de eu e o Ricardo [Toscano] continuarmos a praticar nas nossas salas e quartos mas termos também dois quintais. Enfim, de alguma maneira fomos empurrados lá para fora devido ao contexto em que vivemos. Se calhar isto nunca mais se vai repetir de forma tão natural, pelo menos. Daqui a uns tempos talvez pensemos nisto também com saudades, sim — não dos tempos que vivemos e do que esses tempos tiveram de mau, mas das consequências positivas que também existiram.

Ricardo Toscano — Concordo. Ainda por cima estava completamente sozinho em casa, aquela era a minha única interação com pessoas. Durante o dia ia ao quintal, tocava com o Bruno, falávamos um bocadinho com os vizinhos. Combinávamos temas para aprender e tocar no dia a seguir. Voltava para casa, ia aprender a tocar esses temas… mantinha-me com objetivos e focado numa coisa positiva.

Isto também ter sido bom para outras pessoas que nos ouviram a partir das suas casas e com os seus telefones acabou por ser uma consequência positiva, mas ao início o intuito não era fazermos isto a pensar noutras pessoas. Simplesmente, acabámos por decidir partilhar com outras pessoas o que nos estava a fazer sentir bem.

"A principal motivação foi tocarmos juntos, pura e simplesmente. A Rita [Redshoes] é que sugeriu que fossemos lá para fora para os quintais, tocar para os nossos vizinhos. Nem sequer estávamos a pensar numa transmissão em Facebook ou Instagram. A dada altura começámos a transmitir as sessões e às tantas assumimos que continuávamos a estar nos nossos quintais, esquecíamo-nos que estava ali uma câmara."
Bruno Santos

Essa era uma das minhas dúvidas: se a ideia inicial tinha sido logo tocar e transmitir online, em direto e em vídeo, estas sessões, ou se chegaram a pensar na hipótese de não as gravar e tocar simplesmente para vocês e para os vossos vizinhos.
Bruno Santos
A principal motivação foi tocarmos juntos, pura e simplesmente. A Rita [Redshoes] é que sugeriu que fossemos lá para fora para os quintais, tocar para os nossos vizinhos. Nem sequer estávamos a pensar numa transmissão em Facebook, ou fosse onde fosse. A dada altura começámos a transmitir as sessões e também assumimos que era uma transmissão em direto com algumas falhas.

No Facebook acabei por deixar todas as sessões que gravei. Até há sessões em que tivemos um falso arranque num tema porque ou não nos lembrávamos de uma secção, ou estávamos a combinar como é que podíamos tocá-lo… às tantas assumimos que continuávamos a estar nos nossos quintais e esquecíamo-nos que estava ali uma câmara. Quem quisesse vir espreitar, quem não conseguia fisicamente ver o nosso quintal, tinha ali o Facebook e o Instagram para poder ver — mas não foi o propósito inicial, partilhar com mais gente.

Portanto foi a Rita Redshoes que sugeriu tocarem no exterior. Como foi essa conversa inicial?
Bruno Santos — Acho que ela sugeriu que fosse para o quintal tocar com o Toscano porque estava farta de me ouvir em casa [risos]. Não, agora a sério: a ideia foi dela, disse-nos: “Vocês tocam aqui todos os dias, praticamente um ao lado do outro…” Porque nós praticamos em salas quase com efeito espelho, estou numa sala e o Ricardo está noutra, que é basicamente em frente mas está separada por duas paredes.

A Rita sugeriu que fôssemos lá para fora porque os vizinhos estavam fechados em casa e nós temos uma série de quintais aqui à volta e uma série de prédios, portanto chegávamos a muita gente. Deu a ideia e depois percebemos que isto tinha graça.

Bruno Santos e Rita Redshoes do lado de cá, Ricardo Toscano do lado de lá

O Bruno Santos chegou a chamar a esse espaço exterior “a nossa Amazónia”, nas redes sociais. E de facto aquele cenário meio tropical era coisa para causar inveja a quem não teve quintais para passar o confinamento, muito menos com aquela música para ouvir à janela….
Ricardo Toscano — Aí tivemos muita sorte, porque há muita gente que não tem quintais…

Bruno Santos — Quando começámos a tocar, conseguia ver o Ricardo no quintal. Agora já não consigo [risos]. Houve aquelas chuvas em março e abril…

Ricardo Toscano — O meu quintal está descontrolado!

Bruno Santos — Continuámos ainda a tocar mas a dada altura já não o via, só conseguia ouvi-lo.

Na primeira sessão transmitida com vídeo, que penso que foi a 17 de março, o Bruno escreveu nas redes sociais que tinham tido vizinhos à janela a ouvir e a dançar e que até a bolo tinham tido direito…
Ricardo Toscano —
 Pois foi, houve um bolo. Foi da vizinha de cima.

Tenho uma curiosidade: no início chegaram a alertar os vizinhos para que fossem à janela ouvir-vos, porque iam tocar, ou foram eles que se foram apercebendo e começando a ir para a janela? Logisticamente, como é que isto tudo foi organizado?
Ricardo Toscano —
Acho que se foram apercebendo. Acho que também só assumimos que íamos fazer isto todos os dias e a uma hora certa depois de algumas sessões. No início foi assim meio relaxado, houve uns dias em que começávamos um bocadinho mais cedo, outros em que começávamos um bocadinho mais tarde… depois é que assumimos que todos os dias às 16h íamos estar ali fora, nos quintais, prontos para tocar.

A malta aqui foi percebendo e depois já sabia, já vinha à janela de propósito só para ouvir o nosso pequeno set de 50 minutos, às vezes uma hora. Mas também tínhamos uma vizinha que não gostava.

Ai sim? Queixava-se?
Ricardo Toscano — Perguntava-nos se não trabalhávamos. Mas não conseguíamos ver essa vizinha, devia ser de um prédio mais distante dentro deste quarteirão. Vinha à janela gritar: ‘mas vocês não trabalham? É isto todos os dias…’. Alguma coisa assim [risos].

Nem teria o mesmo encanto sem ‘haters’…
Ricardo Toscano — É, alguém tem de não gostar.

Logo ao início, quando assumiram o horário diário às 16h, a Rita Redhsoes escreveu nas redes sociais: “Todos os dias pelas 16h daremos música. Bruno Santos na guitarra, Ricardo Toscano no saxofone e eu (sempre que a minha filha me deixar). Estão todos convidados”. Bruno, a Rosa deixou muitas vezes? Aderiu com facilidade à rotina de ter música todos os dias no quintal?
Bruno Santos — Ela está numa fase em que precisa de alguma atenção. O que se passava era: quando a Rita se juntava a nós e começava a cantar, a Rosa ficava um bocadinho invejosa e pedia atenção. Ali a gestão para a Rita era um bocadinho complexa. Entretanto a rotina dela alterou-se um bocadinho. Antes, fazia uma sesta ao fim da manhã. Entretanto começou a dormir mais depois de almoço. Diria que no último mês e meio a nossa sessão coincidia quase sempre com a sesta da Rosa, o que por um lado facilitava mas por outro obviamente tirava alguma graça à sessão: tínhamos sempre aquele momento em que a Rita tentava cantar e às vezes não conseguia e também gostávamos sempre de fazer um tema mais infantil… Nem sempre a Rosa deixava [risos].

"Acho que a grande surpresa destas sessões foi ver que de repente entre quatro ou cinco casas coladas umas às outras a malta começou a relacionar-se. Agora já conheço os vizinhos quase todos... pelo menos aqueles com os quais as minhas paredes coincidem. Há aqui um vizinho ao lado que já quer juntar a malta toda e fazer uma grande festarola no quintal. Isto acabou por aproximar a vizinhança toda, sinto que há um espírito mais de aldeia nestas casas"
Ricardo Toscano

Que reações é que vos foram chegando dos vizinhos, além dos aplausos ou do que ouviam — as palmas, por exemplo — durante as sessões? Receberam mensagens, agradecimentos, algo assim?
Ricardo Toscano — Sim, mais ou menos. Acho que a grande surpresa destas sessões foi ver que de repente entre quatro ou cinco casas coladas umas às outras a malta começou a relacionar-se. Agora já conheço os vizinhos quase todos… pelo menos aqueles com os quais as minhas paredes coincidem, vizinhos de baixo, de cima e do lado, até do outro prédio. Há aqui um vizinho ao lado que já quer juntar a malta toda e fazer uma grande festarola aqui no quintal… acho que as sessões facilitaram isso.

A malta vinha à janela e gostava, depois houve gente a perguntar se já tínhamos tocado juntos alguma vez [risos] ou se de repente tínhamos descoberto que éramos os dois músicos e fomos os dois experimentar isto. Isto acabou por aproximar a vizinhança toda, sinto que há um espírito mais de aldeia nestas casas. Não há, Bruno?

Bruno Santos — Sem dúvida. Mas houve um ou dois episódios surpreendentes. Um foi: estava em minha casa e o Toscano em casa dele, bateram-nos à porta. Fui à janela e a senhora disse-me: é o do saxofone? Eu disse: não, eu toco guitarra, o saxofone é aqui ao lado. Era uma pessoa que vive dois prédios ao lado, não a víamos quando tocávamos mas veio entregar aos dois uma graçazinha, veio oferecer-nos uma garrafa de vinho. [Ricardo Toscano acrescenta: “Era uma senhora japonesa”]

Também houve um dia em que saí do prédio e tinha um bilhete lá em baixo, na entrada, também de um vizinho — acho que era uma rapariga estrangeira, que dizia que estava cá a viver. Dizia que nos ouvia todos os dias mas não nos conseguia ver e perguntava se podíamos escrever no bilhete os nossos nomes de Facebook para nos encontrar. Também já me aconteceu encontrar um senhor que me perguntou: ‘você é um daqueles do quintal, não é?’ [risos]. As pessoas não nos viam mas ouviam, depois acabavam por saber quem éramos porque se calhar foram ao Facebook ou ao Instagram e viram um bocadinho [dos vídeos].

Para o vosso bem-estar mental, naquele período de maior confinamento — sobretudo no fim de março e ao longo de abril —, quão importantes foram aqueles momentos? Por um lado estavam em contacto com mais pessoas: os vizinhos, aqueles que comentavam as sessões nas redes sociais. Por outro lado, continuavam musicalmente ativos, a tocar com mais alguém em vez de praticarem sozinhos… Naquele momento, isto tudo foi uma ajuda?
Ricardo Toscano —
Diria que sim. Claro que isto é uma situação má e completamente excecional para todos, mas até gostei da parte de ter muito tempo livre para investir na música e praticar. Aquele era o momento do dia em que podia tocar com outra pessoa, neste caso o Bruno, e isso era espetacular. Ao mesmo tempo, saber que havia pessoas que podiam ver isso em direto e que se sentiam mais acompanhadas… foi uma boa consequência. Para mim, as pessoas terem gostado disto e terem acompanhado as nossas sessões foi uma consequência boa, mas ao mesmo tempo também gostei do tempo em que me dispus a praticar e a investigar sobre música e sobre coisas que nem sabia que tinham acontecido e e que existiam. A parte má foi ter uma carrada de concertos que ficaram sem efeito, mas estão a voltar aos poucos.

"Ter a possibilidade de fazer todos os dias uma espécie de concerto foi um luxo. Acho que nunca na vida vou ter um contrato com um clube ou com um teatro para tocar durante três meses quase todos os dias. Nunca vai acontecer. E aqui aconteceu. Foi muito bom, foi incrível."
Bruno Santos

Já havemos de falar sobre isso. Mas antes disso: ter uma pessoa com quem podia tocar foi uma motivação para para continuar a manter a rotina diária, musical?
Bruno Santos — Sendo muito prático, a nossa vida enquanto músicos não mudou assim tanto. Trabalho maioritariamente em casa, pratico em casa — e o Ricardo também. É óbvio que em condições normais saímos de casa uma ou duas vezes por semana para tocarmos com outras pessoas. Essa foi, do ponto de vista profissional, a grande alteração de rotina, continuávamos a praticar diariamente em casa mas corríamos o riso de deixarmos de ter essa parte importante dos concertos. É algo que nos mantém em forma e ativos.

Ter a possibilidade de fazer todos os dias uma espécie de concerto foi um luxo. Acho que nunca na vida vou ter um contrato com um clube ou com um teatro para tocar durante três meses quase todos os dias. Nunca vai acontecer. E aqui aconteceu. Foi muito bom, foi incrível.

Nunca aconteceu, no clima que se via, terem acordado um dia e pensado: “Agora comprometemo-nos a isto e hoje só me apetecia ficar quieto, não tocar, que chatice”?
Ricardo Toscano —
Não sei… Há aquelas sessões que se calhar podem não correr assim tão bem, mas isso só acontece por causa da expectativa e da nossa vontade de tocarmos cada vez melhor. Mas acho que só ter a oportunidade de tocar é incrível. Isto é aquilo que fazemos, que nos faz feliz. Tocar música é uma coisa tão fixe que não sei se houve algum dia em que tenha pensado: ‘agora não me apetece nada ir tocar’. Acho que não. Há concertos de vez em quando que não queremos muito ir fazer, mas acho que nesta situação não aconteceu nenhuma vez, pelo menos comigo.

Bruno Santos — Acho que vou falar por dois: claro que há dias… se o dia está mais cinzento, podemos estar no sofá e pensar: agora tenho de ir para ali. Por outro lado, sabes que assim que começas a tocar ganhas alguma energia. E é bom que os sentimentos antes do concerto não sejam sempre iguais, que às vezes nos apeteça muito e outras vezes apeteça-nos um bocadinho menos. Isso também ajuda de alguma maneira a saber gerir uma série de coisas. Tenho consciência que às vezes podia estar assim um bocadinho mais cansado antes, mas sabia que a partir do momento em que começasse a tocar ia ganhar energia. E também sabíamos que algumas sessões correriam melhor, outras pior, mas isso faz parte, é tudo muito natural. Acho que tivemos sempre vontade de tocar um com o outro e às vezes um contra o outro [risos dos dois].

Falou-se muito nos últimos meses da importância que a arte e a cultura tiveram para as pessoas no período de maior confinamento. Quando começaram estas sessões no quintal, o papel que poderiam ter enquanto artistas, fosse junto dos vossos vizinhos ou de quem vos visse de casa, foi uma coisa em que pensaram?
Ricardo Toscano —
Percebo a pergunta, mas acho que tudo aquilo que aconteceu depois de termos começado a tocar no quintal foi apenas consequência. Acho que nunca fizemos isto a pensar que tínhamos de fazer alguma coisa para as pessoas, que precisavam de nós e precisavam de cultura… tudo o que aconteceu foram consequências.

Houve uma coisa que notei: tenho vídeos publicados no Instagram de alguns excertos das nossas sessões em que tive números de visualizações e likes muito superiores ao que tinha anteriormente. Há uma parte de mim que acha que naquele momento as pessoas tiveram finalmente tempo para ouvir com atenção o que estamos a fazer. Talvez tenham tido mais tempo para ouvir com calma as coisas e se calhar apreciá-las um bocadinho mais. É uma consequência, porque também já fazemos isto [música] há algum tempo…

"Confesso que muitas vezes ficava surpreendido quando acabávamos uma sessão e via tantos comentários [nas redes sociais]. Para mim era surpreendente. Pensava: 'será que fazemos assim tanta diferença para tanta gente? É incrível, isto...' Ficava surpreendido. É difícil ter essa consciência, da dimensão que as coisas podem ter. E é difícil estar ao mesmo tempo do lado de dentro e do lado de fora."
Bruno Santos

Bruno Santos — Percebo a questão, a arte e a cultura são essenciais para a vida e para o dia. Mas às vezes nós como músicos temos se calhar um bocadinho mais de dificuldade em colocar-nos do lado de fora e analisarmos as coisas nessa perspetiva, do impacto ou contributo que podemos dar à importância da cultura e às pessoas. Fazemos isto com muita convicção e muito amor à causa, mas de alguma maneira não temos tanta facilidade de nos colocarmos do lado de fora e percebermos essa perspetiva e a importância que as coisas podem ter.

Confesso que muitas vezes ficava surpreendido quando acabávamos uma sessão e via tantos comentários [nas redes sociais]. Para mim era surpreendente. Pensava: ‘será que fazemos assim tanta diferença para tanta gente? É incrível, isto…’ Ficava surpreendido. É difícil ter essa consciência, da dimensão que as coisas podem ter. E é difícil estar ao mesmo tempo do lado de dentro e do lado de fora.

Ricardo Toscano — Quando estás do lado de dentro, não quantificas o valor que achas que podes ter naquilo, vendo bem as coisas. Estás apenas focado no que estás a fazer, analisas menos. É como acontece com os jogadores de futebol: sabem que valem não sei quantos milhões mas quando estão a jogar à bola não estão a pensar num cêntimo, estão a pensar em tentar fazer o melhor possível ali no campo, naquele momento. É isso que acho que também nós tentamos fazer, mas sem a parte dos milhões.

Ricardo Toscano: o jovem prodígio do jazz já tem um álbum para mostrar

Discute-se muito se o facto de o jazz não ter a popularidade de coisas mais pop e radiofónicas tem a ver com alguma reticência natural face ao jazz ou se tem a ver apenas com as pessoas não serem tão confrontadas diariamente com este tipo de música. O que diziam sobre a quantidade de “likes”, de comentários e de reações… sentem que chegaram a pessoas que em condições normais não iriam procurar por si próprias música jazz, não iriam ouvir os temas que tocavam naquelas sessões?
Ricardo Toscano —
Acho que as pessoas não saberem tanto de jazz e estarem mais disponíveis para ouvir música que é mais popular no momento funciona como a alimentação. Quantas pessoas conhecemos que tenham uma alimentação completamente saudável? As pessoas são mais expostas ao açúcar — se não pensarem sobre isso — do que à proteína e aos alimentos que fazem mesmo bem ao corpo. Acho que as artes estão no mesmo patamar, só que se calhar há mais açúcar em algumas artes do que proteína…

Bruno Santos — Eu e o Ricardo tocamos muitas vezes em formações sem voz, ou pelo menos sem palavras. Por um lado, isto faz com que a música não seja tão imediata. Por outro lado, isto pode ser um bocadinho utópico mas acho que numa sala com mil pessoas onde está um cantor ou uma cantora que está na moda, se de repente tirassem a cantora e se me colocassem a mim e ao Ricardo Toscano a fazer um concerto para o mesmo público íamos conseguir chegar às pessoas. Tenho quase a certeza. Mas não deixa de ser verdade que a música que fazemos é um bocadinho menos imediata.

As pessoas estavam mais predispostas a aceitar conhecer este tipo de música, naquele momento? Por haver menos coisas a acontecer, a indústria musical estar mais parada, as pessoas estarem com mais tempo e haver menos oferta? De repente as pessoas foram confrontadas com uma iniciativa como estas, que não tem grande paralelo, que funciona online e que estava acessível numa rede social muito utilizada, ‘mainstream’ se quisermos, que é o Instagram…
Ricardo Toscano —
O tempo, que já é muito relativo, mostrou-se ainda mais relativo nesta quarentena. As pessoas passaram muito tempo em casa e tiveram mais tempo para apreciar coisas, ver coisas, aprender coisas. Houve muita gente que certamente ficou apenas a ver séries, mas se calhar houve também pessoas que aproveitaram o tempo para investigar e aprender coisas novas.

"Acho que muita gente que nos ouvia, quando ouvia nem pensava 'estou a ouvir jazz' [Ricardo Toscano subscreve: 'também acho isso']. Acho que a coisa de alguma maneira passou ali essas barreiras. Parece-me que as pessoas nem pensavam nisso e acho que às vezes isso é o problema, as pessoas pensam demasiado antes ou em vez de ouvir. Há muita gente que me diz: não percebo nada de jazz. Normalmente pergunto-lhes se percebem de rock ou de pop. O ouvinte não precisa de perceber, precisa de gostar, precisa de ouvir e perceber se gosta ou não."
Bruno Santos

Bruno Santos — Acho que muita gente que nos ouvia, quando ouvia nem pensava ‘estou a ouvir jazz’ [Ricardo Toscano subscreve: ‘também acho isso’]. Acho que a coisa de alguma maneira passou ali essas barreiras. Parece-me que as pessoas nem pensavam nisso e acho que às vezes isso é o problema, as pessoas pensam demasiado antes ou em vez de ouvir. Há muita gente que me diz: não percebo nada de jazz. Normalmente pergunto-lhes se percebem de rock ou de pop — e em que sentido percebem. O ouvinte não precisa de perceber, precisa de gostar, precisa de ouvir e perceber se gosta ou não.

Isto pode ter sido uma maneira de as pessoas se depararem com este tipo de música sem pensarem muito no assunto?
Bruno Santos — Exato.

Ricardo Toscano — Também acho que termos tido a iniciativa de partilhar as nossas sessões colocou as pessoas mais em contacto com o nosso processo diário. Malta se calhar de outros estilos musicais.. não quero estar a ser pretensioso em favor do jazz, mas a verdade é que isto é artesanato, passamos o dia todo a aperfeiçoar a técnica e partilhámos esse processo diário.

No caso de um músico jazz, é uma coisa que é possível partilhar. Leva muitas horas e nós partilhámos uma hora dos nossos dias, ao todo 50 horas. As pessoas puderam ver isso ali, sem grandes filtros e sem grandes preocupações nossas com as reações de quem vê. Fico muito contente por ter participado nesta iniciativa. Estou a dizer isto agora, lá está, como uma consequência do que aconteceu, algo que explicar notar neste momento. Quando estava a fazer, não estava a pensar nestas coisas.

Quantos temas tocaram nessas sessões de quintal? Foram perto de 200?
Ricardo Toscano — O Bruno tem uma lista!

Bruno Santos — Documentei isto. Sou um bocadinho preguiçoso a fazer esse tipo de coisas, mas a dada altura pensei: tenho as sessões todas publicadas no Facebook, vou começar a anotar o que tocámos em cada uma das sessões. Isto tinha de ficar escrito nalgum sítio, porque daqui a uns anos ao olharmos para trás vai ser uma coisa muito bizarra. Fiz uma lista.

Estamos a falar de 200 temas, à volta disso. Diria que metade ou mais de metade são temas que ou não sabíamos tocar, ou que tínhamos tocado uma vez ou outra. Foi um desafio, também: assumimos que tínhamos de aprender a tocar um tema de um dia para o outro, com as imperfeições e falhas. Isto funcionou um bocadinho como jam session, uma sessão de estudo, a experimentar e ver como os temas saíam. Além de nos criar um objetivo, também nos dava alguma adrenalina. Havia um bocadinho de stress para nos esforçarmos para tocar como deve ser que era bom. Foi bom.

Houve canções também da Baby TV… quais foram os temas mais fora do jazz que tocaram nestas sessões?
Bruno Santos —
Quando tínhamos a Rita como convidada, tocávamos alguns temas dela — devemos ter tocado uma dezena, ou um bocadinho mais. Fazíamos sempre um tema infantil, da Baby TV ou assim. Depois fizemos uns temas que não são da Rita mas que ela já cantou e que estão associados ao universo dela: Tom Waits, por exemplo. Houve também uma altura que fizemos quatro ou cinco temas que foram hits nos anos 80. Foi numa semana em que eu e a Rita tínhamos colocado uns temas dos anos 80 numa playlist para a Rosa e lembro-me que fizemos…

Ricardo Toscano — A “Isn’t She Lovely”…

Bruno Santos — Exato. Fizemos aquele tema dos Queen, “I want to break free”. Fizemos aquela “Wake me up before you go-go”. Era uma grande misturada. É difícil catalogar, mas fizemos temas do universo jazzístico, temas infantis e canções de alguma maneira mais ligadas à pop.

E como foi passar dos vossos quintais, dessa tal “Amazónia”, para o jardim do Museu de Lisboa, já neste mês de julho?
Ricardo Toscano —
Foi bom. O primeiro foi assim meio estranho porque era a primeira vez que estávamos a apresentar isto fora do contexto habitual. Era um jardim, pronto, por aí estava tudo certo… só que tínhamos pessoas a ver, mais perto de nós. Isso foi a parte mais fixe. Tínhamos ali 45 pessoas ou mais a assistir e ouvíamos palmas de uma forma mais calorosa. Soube muito bem. Depois a outra diferença foi técnica: tínhamos técnico de som, PA. Essa parte foi a mais estranha em relação à nossa logística habitual, mas soube muito bem.

Bruno Santos — Aqui nos quintais trazia a minha coluna e fazíamos o nosso som, acústico. Ali a coisa é um bocadinho mais profissional. Também tivemos o cuidado de não demorar tanto tempo entre temas. Aqui às vezes passávamos quatro ou cinco minutos para decidir que tema tocávamos a seguir ou como o íamos tocar. Às vezes ainda íamos buscar um copo de vinho à cozinha [risos]. Ali fazíamos uma coisa mais estruturada, um concerto corrido e com um set mais organizado. Mas estamos a tocar coisas que fazem parte dessa lista dos 200 temas que tocámos.

Este sábado têm a última sessão, com a Rita Redshoes presente. Estão entusiasmados para “a” última sessão, pelo menos planeada e programada?
Ricardo Toscano — Pois, até parece estranho dizer que é a última sessão… por mim ficava lá o resto do verão a tocar [risos].

O que estão a preparar?
Ricardo Toscano —
Vamos ter alguns temas da Rita, vamos tocar uns cinco ou seis temas daquela nossa lista de standards [de jazz, tocados nas backyard sessions]. Temos um tema da Baby TV, Bruno?

Bruno Santos — Temos se a Rosa estiver acordada e for. Se não, se calhar não faz muito sentido. Mesmo aqui para o museu assumimos que íamos manter o espírito. Não preparámos nada de extraordinariamente diferente. Continuamos a não fazer ensaios para ir tocar, escolhemos só os temas antes e cada um pratica. Temos a preocupação só de, tendo pessoas a assistir, não estarmos ali cinco minutos à conversa, a discutir se vamos tocar este ou aquele.

Ricardo Toscano — Ou a contar histórias [risos].

Bruno Santos — Sim. Mas escolhemos assumir o mesmo mote. Estamos sentados um ao lado do outro, fazemos a lista um bocadinho antes, vemos o que pode fazer sentido e vamos tocando, de maneira muito relaxada e mantendo o mesmo espírito de antes.

"Como músico, se não tocas não ganhas — e se não ganhas, não comes. Foi duro. Não me posso queixar porque de certeza que existem pessoas que viveram e vivem numa situação muito pior do que a minha. Não me faltou comida, sítio para dormir, água quente ou eletricidade. Mas é muito chato, foi muito mau. Acredito que perdi uns dez concertos, daqueles bons."
Ricardo Toscano

Há pouco falavam de concertos cancelados. Estamos na fase do início da retoma dos espetáculos, mas que impacto teve a paralisação do setor nas vossas vidas? Ou, por outras palavras, quão dura foi — foi contornável, foi preciso ginástica para contornarem a quebra de rendimentos?
Ricardo Toscano —
Como somos músicos e vivemos dos concertos… felizmente tinha algum dinheiro dos concertos que tinha feito. E foi uma boa altura para fazer algumas cobranças mais antigas, coisas que ainda não me tivessem pago. Mas como músico, se não tocas não ganhas — e se não ganhas, não comes. Foi duro. Não me posso queixar porque de certeza que existem pessoas que viveram e vivem numa situação muito pior do que a minha. Não me faltou comida, sítio para dormir, água quente ou eletricidade. Mas é muito chato, foi muito mau. Acredito que perdi uns dez concertos, daqueles bons.

Agora felizmente estão a ser reagendados alguns concertos, mas também já perdi concertos novos por causa do reagendamento de um concerto que era suposto ter acontecido em maio. Há aqui coisas que se estão a ajustar e que vão exigir tempo, mas felizmente já estão a voltar os concertos, a atividade está a voltar. Mas acredito que se para mim foi mau, imagino que para pessoas que numa base normal possam ter menos trabalho do que eu…

Bruno Santos — Comigo foi igual, à volta disso [dez concertos perdidos]. Alguns concertos foram adiados por um ano, o que é bom. Tinha algumas coisas com o meu irmão [o também guitarrista André Santos], com [o projeto que têm a dois] Mano a Mano. Tínhamos algumas coisas agendadas, bons concertos. Mas em relação a estes meses em que parámos, tenho a certeza que havia muita gente em piores condições do que eu. Além de ser, como o Ricardo, músico freelancer, estou há alguns anos como diretor pedagógico da escola do Hot Clube. A escola continuou a sua atividade em modo online. Nessa vertente continuei a trabalhar e isso para mim foi importantíssimo, porque tinha ali um rendimento que não perdi, pude continuar a trabalhar nessa área. Também tinha algumas poupanças…

A dada altura, também deixámos [Bruno e Ricardo Toscano] um link para as pessoas que quisessem dar as suas contribuições e recebemos muitas contribuições de muita gente, que nos ajudaram a fazer aquelas coisas pequenas que são necessárias todos os dias: ir ao supermercado, fazer compras, etc, etc. Recebemos ainda algum dinheiro com isso e foi uma ajuda muito grande, mesmo. Mas sei que há pessoas que passaram e passam tempos muito, muito complicados. Ainda não se percebeu bem o que vai acontecer no futuro, percebemos que há uma abertura e que as coisas começam a retomar mas esta reabertura ainda é muito recente. Vamos ver, esperemos que as coisas agora vão sempre melhorando.

Os quintais de Bruno Santos (e Rita Redshoes) e Ricardo Toscano, a sala virtual de concertos mais frequentada do confinamento português

Havendo uma retoma mas com restrições — por exemplo, menor lotação nas salas. Isso não afeta só os empresários e promotores de concertos, pois não? Também vos afeta enquanto músicos e artistas, presumo.
Bruno Santos —
Claro. Já que falei do Hot Clube: um sítio como o Hot Clube depende da bilheteira. Paga aos músicos um valor mínimo independentemente do dinheiro da bilheteira, tem esse compromisso, paga mesmo que a casa esteja vazia. Mas depende da bilheteira, não tem qualquer tipo de apoio. Num sítio destes, faz muita diferente poderes pôr 20 pessoas naquela sala ou poderes pôr as 90 ou 100 que normalmente vão lá todas as noites. É uma diferença brutal. O que aconteceu foi que o Hot Clube reduziu brutalmente a programação, está a fazer um concerto semanal em live streaming mas com 20 ou 30 pessoas a ver aquilo.

No meu caso, já tive uma ou outra proposta que mostra que as coisas mudaram. Está tudo bem, não me importo de fazer isso, é basicamente receber mais ou menos o mesmo cachê mas fazendo duas noites de concerto ou duas sessões com intervalo em vez de apenas uma. Está tudo bem, percebo perfeitamente e acho que temos de dividir um bocadinho o mal pelas aldeias. Não me importo de em vez de fazer um concerto de uma hora, fazer dois concertos de 50 minutos cada. Voltamos a encher a sala e em vez de fazermos um concerto para 100 pessoas, fazemos dois para 50 de cada vez. Está tudo bem, é o que é, tem de ser.

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