O Observador publica nas próximas semanas vários capítulos de uma grande investigação sobre organizações com impacto e influência na sociedade portuguesa. Os trabalhos foram realizados com uma bolsa Gulbenkian de investigação jornalística.
Em junho de 2006, a marcha do mundo rural trouxe à capital e à Avenida da Liberdade mais de 18 mil agricultores. Vieram os pauliteiros de Miranda, os grupos de bombos do Minho, vários ranchos folclóricos, campinos, vacas, burros, carros de bois e tratores. Foi o culminar de uma contestação que nasceu de uma onda de protestos em cidades do interior, contra o corte das ajudas agro-ambientais promovido pelo ministro da Agricultura do primeiro Governo de José Sócrates, Jaime Silva.
Hoje já não é a política agrícola comum nem os cortes das ajudas aos agricultores que mais preocupam o setor. Em abril deste ano foi lançado um manifesto em defesa do mundo rural com o apoio discreto de alguns candidatos às eleições europeias. Um alvo evidente, ainda que não identificado, é o PAN, Partido Pessoas-Animais-Natureza, que se consolidou com a eleição de quatro deputados nas legislativas. Mas a nova marcha do mundo rural pelo centro político da capital, realizada em 22 de novembro, ficou longe da mobilização de 2006 promovida pela CAP.
A agricultura tem sido apontada como um dos vencedores da crise e do período da troika, ganhando mais força económica e rendimento. Desde pelo menos 2011 que o valor bruto da produção agrícola tem crescido em Portugal mais ou menos de forma constante, segundo dados da Pordata.
Mas, ao mesmo tempo, o modo de vida do mundo rural está ameaçado por novas visões políticas e sociais. A Confederação dos Agricultores de Portugal é uma das vozes que se levanta contra a crescente força destes movimentos – quase sempre de origem urbana – que defendem a ecologia, os direitos dos animais e a sustentabilidade de um estilo de vida e de uma alimentação que chocam com a tradição e com a recente prosperidade rural.
Qual é força dos que resistem?
Do outro lado estão os adeptos das touradas, da caça, os produtores de carne bovina, os produtores florestais do eucalipto e das culturas intensivas apoiadas no regadio. Atividades que se desenvolvem num território cada vez mais despovoado e ameaçado por secas frequentes.
“Quando se fala naquilo que é o modo de vida das pessoas do mundo rural parece que todos os partidos têm um receio do politicamente incorreto.” (…)“E ninguém se arrisca, sem medo, assumindo que é assim, porque há pessoas que vivem assim, há pessoas que querem continuar a viver assim”. As palavras foram proferidas pelo secretário-geral da CAP, Luís Mira.
Segundo o portal estatístico Pordata, os agricultores portugueses são cada vez menos. Em 2016 eram menos de metade — cerca de 250 mil — dos que existiam em 1989. Mas, por outro lado, são cada vez mais produtivos e com um rendimento líquido mais elevado.
A CAP tem sido, desde os anos 70, a voz da agricultura junto da opinião pública e é a única organização representativa do setor com lugar cativo na concertação social. Com uma presença nacional que se estende por todo o território, incluindo os Açores, a confederação tem sede em Lisboa e centros de informação rural regionais: Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes, Viseu, Guarda, Santarém, Lisboa, Oeste e Beja. Tem centros de formação em Almeirim, Guarda e Norte e uma delegação na Comissão Europeia, em Bruxelas, a capital europeia onde se tomam as grandes decisões para a agricultura.
A CAP representa as federações de produtores florestais, de produtores de frutos e hortícolas, de regantes e bovinocultores, mas também dezenas de associações locais. No total, são mais de 220, com especial incidência em Trás-os-Montes e no Alentejo, entre associações agrícolas, pecuárias, florestais, cooperativas, adegas cooperativas ou federações com cariz setorial e ou regional.
No entanto, não estão disponíveis dados sobre o número final de associados representados por cada uma destas entidades, nem sobre a sua evolução. Segundo os estatutos, confederação também tem associados contribuintes que são empresários a título individual, mas não estão identificados no site.
A confederação que leva os milhões dos apoios públicos aos agricultores
João Machado, que esteve mais de 22 anos na cúpula da CAP e que deixou a presidência da confederação em 2017, reconheceu que os anos em que Jaime Silva foi ministro da Agricultura foram os momentos mais difíceis que viveu na direção da organização. “Foi uma luta permanente de vários anos” — entre 2005 e 2009 — e de quebra de diálogo entre a tutela e as confederações, afirmou na altura de fazer o balanço.
Esta relação de conflito aberto terá sido uma exceção nas relações entre a principal confederação dos agricultores e o poder político, em particular com o ministro que ocupa a pasta. Na maior parte das vezes estão do mesmo lado da barricada, seja contra a Comissão Europeia e as políticas da PAC, sobretudo quando estão em causa a redução das ajudas à produção, seja contra políticas mais agressivas de combate às alterações climáticas que comprometem a atividade agrícola.
Os seus estatutos definem que o principal objetivo é de representar os agricultores junto do Estado e outras entidades, mas também prestar assistência técnica, económica e jurídica aos seus associados. Mas é mais do que isso. A CAP funciona como um veículo que faz chegar ao terreno os muitos milhões de euros de fundos públicos que existem para este setor, e que são significativos sobretudo do lado da PAC (Política Agrícola Comum). E, nessa medida, é também uma importante beneficiária e gestora desses valores.
A confederação é uma importante parceira do Estado no desenvolvimento das políticas e na execução de programas de apoio para os agricultores, levando as medidas que estão no papel até aos destinatários finais. Atua como organismo intermediário na consultoria técnica a projetos do Portugal 2020, nas áreas da divulgação, apresentação de candidaturas, pedidos de reembolso e saldos e verificação no local. Participa e promove a participação em feiras a nível nacional e internacional e tem ainda um protocolo com bancos para antecipar crédito aos agricultores, antecipando as ajudas que vão receber do IFAP.
Mas é a área da formação profissional para adultos a que concentra as maiores fatias do dinheiro recebido, com origem no Fundo Social Europeu, e taxas de comparticipação de 85% do investimento total. Estes programas têm como destinatários adultos e jovens de zonas rurais que procuram “suprir os défices de baixas qualificações escolares e profissionais”.
Uma análise às candidaturas aprovadas no quadro do Portugal 2020, revela que os montantes atribuídos à CAP entre 2015 e primeira metade de 2019, ultrapassam os 27 milhões de euros, com o valor mais alto em 2018. Nem todos estes fundos correspondem necessariamente a despesa paga, ao contrário dos montantes contabilizados nas subvenções públicas pela Inspeção Geral das Finanças. E haverá valores que são duplamente contabilizados nestes dois controlos financeiros – e que não deveriam ser somados, até porque têm critérios distintos.
A CAP é também financiada por ser membro da concertação social, com verbas previstas para a capacitação dos parceiros que provêm da Presidência de Conselho de Ministros, mas também de fontes europeias. E este lugar confere-lhe igualmente benefícios fiscais.
Este papel de pivot de dinheiros e políticas públicas que têm como destino a agricultura também é desempenhado pela Confederação Nacional dos Agricultores, uma organização mais associada aos pequenos agricultores e ao minifúndio, e que também recebe fundos do Estado. Já a CAP é mais conectada com os grandes proprietários do sul do país. O seu nascimento é, aliás, marcado por uma fratura na sociedade portuguesa e cuja razão de existir se confunde com a revolta contra a reforma agrária.
Cronologia
De onde vêm as receitas da CAP
A CAP funciona quase como uma extensão do Ministério da Agricultura fora do Estado e, por isso, a sua atividade está muito dependente das funções públicas nesta área e do sucesso das negociações com instituições internacionais. Daí os alertas deixados em fevereiro pelo secretário-geral da CAP, Luís Mira.
“Alguns políticos em Portugal dizem que as vacas voam, mas na realidade as vacas não voam. Para se tirar partido de uma boa negociação em Bruxelas e uma boa aplicação de fundos comunitários é necessário que o Estado funcione bem e que o Ministério da Agricultura seja eficiente. E se a agricultura evoluiu muito, pesa 16% do PIB, o Ministério da Agricultura e o Estado não evoluíram com a mesma velocidade.”
Uma análise mais detalhada às contas da confederação mostra como a eficácia e sucesso dos poderes públicos na negociação de ajudas ao setor agrícola é também fundamental para a saúde financeira da CAP.
Pelos estatutos ,as receitas incluem jóias/quotas, pagamentos pelos serviços prestados a associados ou terceiros, rendimentos de bens e outras receitas eventuais. Os relatórios anuais disponibilizados não distinguem o montante de receitas que corresponde a pagamentos de quotas de associados. Mas pela discriminação feita das receitas anuais, os subsídios obtidos junto de entidades públicas e associados a vários projetos/contratos representam atualmente a parcela mais relevante dos rendimentos da CAP.
Só nas contas de 2016 encontramos a identificação discriminada das fontes desses subsídios e apoios públicos. O IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas) é o principal financiador. O IFAP é um instituto público integrado na administração indireta do Estado, com autonomia administrativa e financeira que funciona nas tutelas de vários ministérios, com destaque para a Agricultura e Finanças. A sua missão é assegurar o funcionamento dos sistemas de apoio e de ajudas diretas nacionais e comunitárias e a aplicação, a nível nacional, das regras comuns para os regimes de apoio direto no âmbito da política agrícola comum (CAP).
Outra fonte de receitas é a exploração do espaço que organiza a maior feira agrícola nacional, a Feira da Agricultura de Santarém, o CNEMA (Centro Nacional de Exposições).
As contas da CAP mostram uma situação financeira sólida, com fundos patrimoniais positivos na ordem dos nove milhões de euros, ainda que a baixar. No período analisado, a confederação só teve prejuízos em 2016, ano marcado por uma queda superior a 30% nos rendimentos. O relatório assinala uma quebra de 3,2 milhões face às receitas previstas no orçamento, que se deveu à não existência de várias ações de formação, confirmando assim o contributo fundamental dos subsídios públicos para os resultados e rendimentos.
Com exceção do ano de 2016, ano que foi adotado um sistema de normalização contabilística e em que o relatório e contas é mais detalhado, as contas da confederação não apresentam muitos detalhes sobre património e receitas e não revelam, por exemplo, o montante de remunerações pagas aos órgãos sociais.
A CAP têm certificação legal de contas feita por um ROC (revisor oficial de contas) que nos anos consultados não apresentou nem reservas nem ênfases. O conselho fiscal também aprovou as contas.
A confederação não tem o dever de entregar contas ao Tribunal de Contas, Governo ou Conselho Económico Social, à semelhança do que sucede com outros parceiros sociais. As contas são enviadas para os bancos e os ministérios que tutelam os dinheiros do setor. A execução dos apoios comunitários que lhe são atribuídos está sujeita à auditoria das entidades financiadoras.
Quem manda na CAP
Tal como outras organizações patronais ou sindicais, não há grande rotatividade no desempenho de cargos dirigentes – não há limite à acumulação de mandatos, nem de idade — e os fundadores tiveram uma presença marcante e longa à frente da CAP.
Com a saída de João Machado, um líder histórico que foi presidente da organização durante 18 anos (e antes quase cinco anos como vice-presidente), a liderança foi assumida por Eduardo Oliveira e Sousa em 2017. O novo responsável tem mais um ano de mandato pela frente. Oliveira e Sousa já tinha feito parte da direção da CAP entre 2005 e 2008 e liderou uma lista única às eleições.
Com 65 anos, nascido em Lisboa, Eduardo Oliveira e Sousa tem origens no Ribatejo, onde, aliás, passou parte da sua carreira. Licenciado em engenharia agrónoma, trabalhou no Ministério da Agricultura e foi diretor executivo da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Sorraia entre 1983 e 2013. Assume a presidência da CAP enquanto presidente da Associação de Produtores Florestais do Concelho de Coruche e limítrofes. Foi também professor assistente na Escola Superior Agrária de Santarém e presidente da ANPC (Associação Nacional de Proprietários Rurais, Gestão Cinegética e Biodiversidade). Enquanto presidente da CAP tem assento na concertação social.
O principal operacional da confederação é Luís Mira, secretário-geral desde 1999. Antes tinha chefiado o departamento de associativismo da CAP desde 1990. É licenciado em engenharia zootécnica. Desde 2002 que é administrador do IEFP (Instituto do Emprego e Formação Profissional, onde estão representados os parceiros sociais), representante da CAP no Conselho de Estruturas Agrícolas e Desenvolvimento Rural da União Europeia e membro do Conselho Económico e Social português e europeu. É administrador do CNEMA.
A estrutura organizativa da CAP assenta numa assembleia geral, que integra todos os associados e que se reúne duas vezes por ano para aprovar contas e orçamento e de três em três anos para eleger restantes órgãos sociais. Os órgãos sociais incluem ainda um conselho fiscal, constituído por um presidente e dois vogais, e trabalha com um ROC, cuja missão é fiscalizar a atuação da direção e emitir pareceres sobre contas; e um conselho superior onde têm lugar antigos presidentes dos órgãos sociais ou secretários gerais, presidentes das entidades filiadas e outras personalidades da vida agrícola. Tem até 30 membros escolhidos pela direção e propostos à assembleia geral. Este órgão emite pareceres e recomendações à direção.
O principal órgão é a direção, composta por 17 membros e eleita em assembleia-geral. Deste órgão emana uma direção executiva composta por um presidente e seis vice-presidentes. A direção escolhe o secretário-geral.
A importância das vacas
Na direção da CAP estão representadas várias associações, com maior peso para as áreas da produção florestal e de associações do Ribatejo e Alto Alentejo. Entre os 237 associados, quase 50 dedicam-se em exclusivo ou em grande parte à produção pecuária, para além de dezenas de cooperativas e associações agrícolas locais que também representam a parte animal, seja para abate, ou para produtos como o leite e laticínios.
São cerca de 30 as associações ou federações que mobilizam produtores de bovinos ou serviços associados como a sanidade animal. O peso destas atividades ajuda a explicar o alarme quando a Universidade de Coimbra decidiu banir a carne de vaca das cantinas. A decisão, que foi polémica, pode ser vista por alguns como um gesto simbólico, mas é mais do que isso. Os produtores sabem-no e por isso a CAP veio em defesa de uma produção agrícola que é também um modo de vida que se sente em perigo.
“Sem agricultura e sem vacas não se combatem as alterações climáticas”. (…) A agricultura é indispensável à vida humana e ao desenvolvimento das sociedades. É assim há milénios”, escreveu Oliveira e Sousa num artigo de opinião do jornal Público. Para o presidente da CAP, a defesa da agricultura e do mundo rural é a defesa do nosso planeta. “Eliminar a bovinicultura em Portugal não é solução para a emergência climática. Pelo contrário. A bovinicultura nacional, pelas características do seu modelo de exploração, faz parte da solução ambiental”.
Avaliação de transparência
Este trabalho fecha com uma avaliação sobre o nível de informação pública e aberta a todos facultada pela instituição, mas também da resposta dada quando contactada por via institucional (gabinetes de comunicação) para responder a um questionário exaustivo, ou, em alternativa fornecer a documentação que podia conter a informação pedida. São ponderados fatores como a disponibilidade inicial para responder, tempos de resposta, envio de documentos, grau de detalhe nos documentos facultados, disponibilidade para dar esclarecimentos adicionais e necessidade de recorrer à liderança das organizações para desbloquear o processo de envio de informação.
Infografia We Are Singular
Este é o quinto trabalho da série de investigações sobre organizações financiada com uma bolsa da Gulbenkian. Já fora publicados os artigos sobre a Ordem dos Advogados, a Associação Nacional de Farmácias, a Deco, a UGT. O próximo será sobre a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.