[Texto originalmente publicado a 6 de outubro de 2017, a propósito de uma manifestação contra a estátua do Padre António Vieira, em Lisboa, por homenagear “um escravagista seletivo”. No mesmo local, houve uma contra-manifestação de um grupo de extrema-direita. Republicado a 11 de junho de 2020 quando a mesma estátua foi vandalizada]
Há uns anos, saiu um livro muito curioso chamado Vieira na Literatura Anti-jesuítica. Na linha do livro de Michel Leroy, Le mythe jésuite, este estudo de José Eduardo Franco e Bruno Cardoso Reis também se dedicava à copiosa literatura que, nos séculos XVIII e XIX, sovou a famosa Companhia. Este livro, porém, tem um ponto de partida ainda mais engraçado. Se, como nos faz crer a literatura dos asseclas de Pombal e da República, os jesuítas são a epítome do obscurantismo e da ignorância, se são fanáticos e malvados como nos fazem crer os romances e as notícias conspiratórias, se escrevem mónitas secretas sobre a forma de vergar o mundo aos desmandos das suas perversões, como há de caber o Padre António Vieira em tão negra sotaina?
Há um pressuposto nesta pergunta, ainda antes de se olhar para as perguntas, que julgávamos não precisar de explicação: está no facto de o Padre António Vieira ser uma figura praticamente unânime; um génio da língua para os mais atreitos ao paladar, um defensor dos índios para os humanitários, e um famoso devoto de Santo António para os mais patriotas.
“Descoloniza”. Estátua de Padre António Vieira, em Lisboa, foi vandalizada
Eis senão quando começa a circular pela Internet um folheto, a fazer o maior esforço por se distanciar da correctíssima prosa de Vieira, que abala todas as nossas certezas mais profundas. A ocasião é simples: há pouco tempo, entre esforços conjuntos da Câmara de Lisboa, da Santa Casa da Misericórdia e da Reitoria de S. Roque, decidiu-se que o Largo da Misericórdia ainda tinha espaço para albergar uma figura um pouco mais insigne do que o famoso cauteleiro que por lá é homenageado. Cinzelou-se, então, uma estátua àquele que descreveu um dia da forma mais brilhante a feitura de uma estátua.
Não sabemos se motivados pelo exemplo americano da remoção das estátuas do general Lee, se pelo exemplo espanhol, que tem retirado tudo o que é estátua de Onesimo Redondo ou de Ramiro Ledesma Ramos, os nossos panfletistas manifestaram-se contra a homenagem a uma figura da mesma cepa: “Não aceitamos essa estátua em 2017”, afirmam, com um revolucionário sentido estilístico e uma economia da gramática própria dos mestres latinos; Padre António Vieira foi “um escravagista selectivo”.
Quem leu os libelos de António Sérgio ou de Almeida Garrett contra o Imperador da língua, quem conheceu as intrigas dos Oratorianos e as invectivas de iluminados como Verney, já está habituado a algumas críticas ao Pregador da Capela Real. Que construía magníficos castelos sobre o nada, que a sua prosa era oca, que não soube ou não quis escapar às capciosas malhas da argumentação jesuítica, que torcia a doutrina em benefício daquilo que queria dizer; agora, “escravagista selectivo”?
A expressão, já de si, é curiosa. Em geral, não há esclavagista (ou escravagista, para ser fiel à letra) que não seja selectivo. As pessoas tendem a julgar que elas próprias não servem para escravas; podíamos ter, no entanto, uma distinção subtil entre a escravatura à maneira romana – em que qualquer vencido pode ser feito escravo – e a escravatura moderna, que só considerava legítima a escravatura de outras raças.
Acontece que, com todo o trabalho do Padre António Vieira pela defesa dos índios, com tanta pregação, tanta missiva, tanta diligência, pela sua educação, liberdade e desenvolvimento, ninguém o poderia acusar de esclavagismo neste caso.
Há uma série de historiadores e pensadores zangados que, volta e meia, escrevem longos protestos contra as Reduções jesuíticas e contra a educação dos índios; a pedagogia etnocêntrica dos Inácios seria uma forma de opressão e de diluição da cultura ameríndia, derrotada não pela espada mas pelas palmatórias que lhes ensinavam o catecismo. Por muito que esta acusação tenha o seu quê de cómica, dado que é ensinada em universidades e impressa em livros que nada têm que ver com a cultura ocidental, é um tanto exagerado passar dela ao esclavagismo. Estaremos a falar dos grilhões do cantochão ou das vergastadas da gramática? Estaremos a falar da dissimulação de um Homem torpe, que clamava pela liberdade enquanto inseminava nas pobres cabeças inocentes ideias de subjugação à leitura e à aritmética? Será o professor primário o sanguinolento capataz da era moderna, que ensina às criancinhas os mesmos terrores que ensinava a missionação jesuítica?
O exagero seria demasiado grande, pelo que a expressão “escravagista selectivo” deveria significar outra coisa. Teria de significar, já o vimos, algum tipo de preconceito rácico; ora, quem tem algumas leituras de Vieira e da bibliografia secundária moderna, consegue deduzir da expressão dúbia aquilo de que fala o panfleto. A questão centra-se num dilema hermenêutico que exige alta penetração intelectual. Nos seus Sermões do Rosário, pregados nas festas de Nossa Senhora do Rosário, há três sermões pregados a uma irmandade de escravos em que Vieira fala da condição deles.
Estes conhecidos Sermões são o décimo quarto, o vigésimo e o vigésimo sétimo; em todos eles se fala de escravatura; acontece, porém, que como negreiro o Padre António Vieira está longe de ser competente. Começa logo, no décimo quarto sermão, por uma afirmação deste jaez, a propósito de quem são os filhos da festejada Nossa Senhora do Rosário: “Se um destes Homens nascidos de Maria é Deus; o outro Homem, nascido de Maria, quem é? É todo o Homem que tem a fé e o conhecimento de Cristo, de qualquer qualidade, de qualquer nação, e de qualquer cor que seja, ainda que a cor seja tão diferente da dos outros Homens, como é a dos pretos.” Note-se que o Padre António Vieira está a pregar a escravos, que trabalham desumanamente; a ideia é encorajá-los e explicar-lhes que mesmo aqueles que padecem são amados por Cristo. Não está a discutir a condição de escravos; no máximo, estaria a subentender que eles estão numa situação injusta: mesmo aqueles que estão numa situação injusta são amados por Deus. Aliás, nesse mesmo sermão, há uma farpa contra a escravatura. A propósito dos mistérios do Rosário que deviam rezar, Vieira diz: “Os [mistérios] dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que, devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores”.Vieira explica que os Homens são iguais e até condena os que recusam essa igualdade; até dá mostras de uma consciência linguística ao nível dos ademanes do nosso tempo quando, no vigésimo sermão lamenta: “Falando na linguagem da terra, celebram os brancos a sua festa do Rosário e hoje, em dia e acto apartado, festejam a sua os pretos e só os pretos. Até nas cousas sagradas, que pertencem ao culto do mesmo Deus, que fez a todos iguais, primeiro buscam os Homens a distinção que a piedade”.
Ou seja: Vieira afirma e reafirma a igualdade entre todos os Homens, pretos ou brancos, etíopes ou europeus; condena aqueles que escravizam e ainda diz que “preto” ou “branco” é parte da linguagem imperfeita da Terra. Que tipo de esclavagista é este? Que brando racista, em vez de calcar a inferioridade de uma raça, afirma a igualdade entre os Homens? Claro que racismo e esclavagismo não são a mesma coisa; mas, a ser acusado de esclavagista alguém que diz que os senhores deviam tratar os escravos como irmãos, só poderia ser um esclavagista não selectivo: afinal, se todos os Homens são iguais, qualquer um serve.
A acusação, mais comum do que parece, nasce do mais elementar e incompreendido anacronismo histórico. Habitualmente, a acusação de anacronismo serve para encobrir o mal feito noutras épocas; esta posição relativista, no entanto, não é aquela de que falamos. Se, de facto, Vieira defendesse a escravatura, seria um esclavagista; anacronismo, porém, é olhar para um modo de pensar com os olhos de quem não acredita nele. Ou seja, para aqueles que o condenam, Vieira devia bradar contra a escravatura, não como um pregador mas como um revolucionário avant la lettre; os críticos não concebem que um Homem esteja a pregar sobre um assunto acreditando verdadeiramente naquilo que diz; que Vieira diga que não importa a condição deles porque são amados por Deus parece-lhes uma forma de manter manso o rebanho; não lhes parece possível que, em primeiro lugar, Vieira queira oferecer consolo e, em segundo lugar, que não esteja a falar para os patrões.
Isto é: o Padre António Vieira não precisa de explicar aos escravos que a situação deles é injusta; “não há trabalho nem género de vida no mundo mais parecido à cruz e paixão de Cristo do que o vosso em um destes engenhos”. Dizer que o Padre António Vieira era esclavagista é como dizer que era a favor da morte de Cristo. Vieira louva o modo como Cristo se portou numa situação injusta e exorta quem a vive a portar-se da mesma forma, como Boécio fez com a sua morte ou, no exemplo de um gentio, Epicteto com a sua situação. Quer isto dizer que Boécio era a favor da sua morte ou Epicteto da sua escravatura?
Que um materialista não acredite na relevância do modo de viver uma situação é uma coisa; que isso implique que a única coisa a dizer sobre a escravatura é que ela não devia existir já é completamente diferente. Todos os que visitam presos são pela prisão deles?
Vieira, é certo, com o seu estilo entusiasmado, muitas vezes exagera. Faz parte do seu modo argumentativo menorizar tudo para dar relevância àquilo de que fala. Num dos Sermões de Santo António, superioriza-o a Cristo já que, em certa Igreja, S. António converteu três ladrões de uma assentada, enquanto Cristo na cruz só converteu um. Quer isto dizer que acha S. António superior a Cristo? Não, significa que está a falar de S. António. Do mesmo modo, quando fala de índios é capaz de superiorizá-los a todas as raças, e quando fala de escravos é capaz de dizer coisas como esta: “Ninguém haverá que não reconheça e venere na cor negra duas prerrogativas muito notáveis. A primeira, que ela encobre melhor os defeitos, os quais a branca manifesta e faz mais feios; a segunda, que só ela não se deixa tingir de outra cor admitindo a branca a variedade de todas: e bastavam só estas duas virtudes para a cor preta vencer, e ainda envergonhar a branca”.